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A Defensoria Pública como instrumento de efetivação dos direitos humanos

Não me incluo entre os que proclamam com orgulho: sou defensor público. Mas lhes confesso e a seu Padroeiro Santo Ivo, entre as paredes deste belo auditório que hão de guardar nosso segredo a vozes, que a figura do defensor público sempre foi objeto de meu mais acendrado respeito, tanto mais porque, desde quando escancarei os olhos para as iniqüidades de um mundo perverso onde me coube nascer e viver, esta tem exercido sobre mim um enorme fascínio, o que atribuo não apenas à sua missão constitucional de assegurar aos que comprovarem insuficiência de recursos, o acesso à Justiça (incluída a Justiça social, pilar da cidadania, erigida como valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos"1), um mister que se agiganta num país de analfabetos, no qual midiaticamente se nutre sob a capa do assistencialismo uma infame exclusão sócio-econômica, senão também ao fato de que nunca deixou de ressoar nos tímpanos de minha memória, como um chamamento à consciência e à luta, a advertência de Ovídio, tão incômoda quanto intensamente desafiante, de que o tribunal está fechado para os pobres.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Atualizado em 12 de novembro de 2008 13:28


A Defensoria Pública como instrumento de efetivação dos direitos humanos

César Barros Leal*

"Há em nossa sociedade uma classe desvalida, necessitada, pobre e abandonada. Esta classe está nas entranhas de nossa sociedade, é a classe mais numerosa, é nosso povo, é nossa sociedade mesma: compõe-se de todos aqueles infelizes que, não tendo tido a sorte de herdar um patrimônio, nem a fortuna de adquirir educação, se encontram submissos na ignorância e na miséria, se vêem desnudos e famintos, por todas as partes humilhados; em todas as partes oprimidos. Sobre esta classe recai comumente não só o peso e rigor das leis senão também, e isto é mais terrível, a arbitrariedade e injustiça de muitas autoridades e de muitos dos agentes policiais."

Ponciano Arriaga

1. Considerações primeiras

Não me incluo entre os que proclamam com orgulho: sou defensor público. Mas lhes confesso e a seu Padroeiro Santo Ivo, entre as paredes deste belo auditório que hão de guardar nosso segredo a vozes, que a figura do defensor público sempre foi objeto de meu mais acendrado respeito, tanto mais porque, desde quando escancarei os olhos para as iniqüidades de um mundo perverso onde me coube nascer e viver, esta tem exercido sobre mim um enorme fascínio, o que atribuo não apenas à sua missão constitucional de assegurar aos que comprovarem insuficiência de recursos, o acesso à Justiça (incluída a Justiça social, pilar da cidadania, erigida como valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos1), um mister que se agiganta num país de analfabetos, no qual midiaticamente se nutre sob a capa do assistencialismo uma infame exclusão sócio-econômica, senão também ao fato de que nunca deixou de ressoar nos tímpanos de minha memória, como um chamamento à consciência e à luta, a advertência de Ovídio, tão incômoda quanto intensamente desafiante, de que o tribunal está fechado para os pobres.

Nesta estação de tempo em que se busca, a duras penas, estruturar e aprimorar a defensoria pública da União e de numerosas entidades federativas, fortalecendo-a como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, em harmonia com o art. 134 da Carta Cidadã (clique aqui)., impõe-se disseminar, em todos os segmentos da sociedade, a consciência de que uma Defensoria enfraquecida repercute necessariamente na aplicação claudicante das leis, na fragilização das instituições, no declínio dos indicadores sociais, no menoscabo aos direitos fundamentais dos cidadãos e na conseqüente vulneração do Estado Constitucional e Democrático de Direito.

Valorizar a Defensoria Pública, outorgando-lhe efetiva autonomia funcional, administrativa e financeira, reconhecida pela Emenda Constitucional n. 45/2004 (clique aqui), alçando-a ao patamar do Ministério Público e da Magistratura (instituições com as quais forma um triângulo eqüilátero, em expressão de Amélia Soares da Rocha2), reconhecendo sua importância num agrupamento de prioridades que abarque por igual a segurança, a saúde e a educação, constitui um dever impostergável de todo governante que se insurge contra as desigualdades e persiga, compromissado com os objetivos maiores do Estado Brasileiro, o bem-estar de todos e o desenvolvimento humano e social, pautando suas políticas públicas pela promoção de uma sociedade livre, justa e solidária.

A não ser assim, ter-se-á tão-somente o discurso supérfluo dos que, em sua acentuada miopia intelectual, são incapazes de perceber o alcance de uma assistência jurídica integral e gratuita, prestada judicial e extrajudicialmente, tal como o define a Lei Maior, a milhões de pessoas necessitadas, sem acesso à generalidade dos bens e dos serviços básicos para uma vida decente, que carregam consigo como um estigma, um ferrete, o labéu da hipossuficiência, do baixo nível de instrução, da míngua de perspectivas de ascensão social, e para as quais a plena igualdade de direitos, bem como o princípio da dignidade humana, fundamento esta da própria república federativa, são postulados de uma utopia que se pretende seja real.

Nobres os que, no exercício quixotesco de sua função, malgrado a ausência de condições, a mesquinhez de vencimentos, a insuficiência de servidores (e aqui me permito objetar, toda excepcionalidade guardada, a contratação nestas circunstâncias de advogados privados), armam-se da "serena coragem" de que nos fala a Oração do Defensor, da autoria de Paraguassú Eleres, e assumem com a obstinação dos justos e a rebeldia dos insubmissos a responsabilidade de universalizar, efetivar e cotidianizar os direitos e garantias individuais, melhorar os índices de desenvolvimento social, levar a cabo programas de educação em direitos humanos, expandindo uma atenção otimizada aos que dela dependem cabalmente e a encaram, por isso mesmo, como derradeira instância de defesa e asseguramento da cidadania, confiando em sua aptidão para lhes tornar acessível a Justiça e salvar as barreiras dominantes, erguidas pela potestade e pela prepotência dos mais fortes.

Evoco neste instante as palavras de Cinthia Robert e Elida Seguin, em seu livro Direitos Humanos, Acesso à Justiça: Um Olhar da Defensoria Pública:

"Na luta pela defesa do Homem algumas Instituições são representativas do patamar de desenvolvimento alcançado. Entre essas, a Defensoria Pública exsurge como um marco da possibilidade de ser garantido ao pobre o Acesso à Justiça e à busca por uma prestação jurisdicional isonômica. O princípio da igualdade entre as partes é densificado pela atuação institucional, fazendo com que uma pessoa não dependa de sua fortuna para ter seus direitos reconhecidos e que se deixe de fazer Justiça em virtude da pobreza do titular do direito."3

2. O Direito Internacional dos Direitos Humanos

Louve-se nossa Constituição Federal que, ao instituir o direito fundamental à assistência jurídica, colheu inspiração no Direito Internacional dos Direitos Humanos, mais precisamente nos instrumentos universais de proteção desses direitos, entre os quais sobrelevam a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os Pactos Internacionais de Direitos e a Convenção Americana de Direitos Humanos (o Pacto de San José), em cujos enunciados se funda o ideal da acessibilidade da Justiça, extensivo a todas as pessoas, indistintamente, em particular às que carecem de meios para contratar um advogado particular e de assumir os gastos de um processo, sem prejuízo para sua subsistência e de sua família, mas confiam na disposição do Estado de lhes prover uma atenção apropriada, no contexto da ampla defesa e do devido processo legal, até o último grau de recurso, impedindo que o catálogo de direitos repouse no panteão das letras mortas, fazendo, ao revés, vivente o direito vigente.

Em boa hora transcrevo o voto exarado pelo Dr. Antônio Augusto Cançado Trindade, relativo à Sentença de 2 de setembro de 2004, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso Instituto de Reeducação do Menor versus Paraguai:

"A Corte Interamericana reconheceu a importância do direito de acesso à justiça; tanto é assim que, desde sua Sentença de 3.11.1997 (parágrafo 82), no caso Castillo Páez versus Peru, até a presente data, reiteradas vezes assinalou que o direito de toda pessoa de acesso a um recurso simples e rápido ou efetivo perante juízes ou tribunais competentes que a amparem em seus direitos fundamentais (art. 25 da Convenção) 'constitui um dos pilares básicos, não só da Convenção Americana, senão do próprio Estado de Direito em uma sociedade democrática no sentido da Convenção'."

3. A Defensoria Pública no âmbito prisional

Conquanto seja diversificada a função do defensor público (na área de família, da infância e da juventude, dos direitos do consumidor, da execução criminal, bem como no cível, na fazenda pública, em acidentes de trabalho e na previdência e assistência social), onde mais se divisa a necessariedade de sua atuação é na ambiência do cárcere, este território de ninguém, esquecido pelos homens, desaguadouro dos males da justiça criminal, habitado em sua maior parte pelos despossuídos, pelos miseráveis, pelos "pobres dos pobres, o que abona a imagem de uma Justiça para marginalizados e traz à memória o poeta argentino José Hernández, em sua obra prima El Gaucho Martín Fierro ('Para ele são os calabouços, / Para ele as duras prisões; / Em sua boca não há razões /Embora a razão lhe sobre; / Que são sinos de pau / As razões dos pobres'), reforçando o apotegma citado por Alejandro H. Bringas e Luis F. Roldán Quiñones: 'No cárcere se castiga a pobreza, não o delito.'"4 Para eles, "...os filhos de ninguém, os donos de nada", de que nos fala Eduardo Galeano em El Libro de los Abrazos), muitos deles autores de fatos delitivos cometidos em flagrância, alguns de bagatela"5, o defensor público é o guardião que lhes oportuniza acessar os benefícios da lei e afiançar a igualdade processual (equality of arms) no itinerário da execução.

A defesa dos cativos colide, porém, com a insuficiência desses profissionais, que, faltos de recursos (estruturais e materiais), são de regra impotentes para atenderem adequadamente, como a consciência e o padrão elevado de profissionalismo lhes ditam, a uma demanda cada vez mais crescente.

Alhures, discorrendo sobre a imprescindibilidade dos defensores públicos, transmudados em agentes transformadores da sociedade6, mensageiros da eqüidade e da esperança, aos quais impende abrir o tribunal aos pobres, na dicção de José Afonso da Silva7, aduzi que "sua ingente tarefa é defender zelosamente os presos, com fundamento no axioma de que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário as lesões ou ameaças ao direito e que todos os seres humanos, sem distinção, com assento no princípio constitucional da igualdade, devem ser respeitados e viver ao abrigo do Estado."8

O Dr. Sergio García Ramírez, em voto concordante à Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre Medidas Provisórias no caso do Cárcere de Urso Branco, de Porto Velho, Rondônia, datada de 7 de julho de 2004, advertiu:

"Está pendente, em termos gerais, uma imensa obra reivindicadora dos direitos humanos nestas instituições, praticamente aonde quer que se vá. Esta situação não somente milita contra direitos fundamentais senão põe em cheque a Justiça penal em seu conjunto, uma de cujas expressões mais dramáticas - não a única, evidentemente - é a privação de liberdade. Esta coloca a quem a padece a mercê das circunstâncias, que podem chegar a ser anárquicas, se não intervier o Estado para impedi-lo e organizar a vida em reclusão. O discurso e as normas penitenciárias se chocam brutalmente com a realidade de muitas de nossas prisões. Isto deve mudar, logo e profundamente."

Ao defensor público, indo além de sua função meramente jurisdicional, incumbe cobrar do Estado as medidas necessárias para que este adeque as condições do encerro aos standards sobre a matéria referidos pelas Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos e outros documentos de defesa dos direitos humanos, de caráter e relevância universais.

4. Considerações finais

Aos que comparecem a este Congresso, vindos de diferentes regiões do país, relembro a lição do bretão Santo Ivo: "Jura-me que sua causa é justa e eu a defenderei gratuitamente." Em seu talento, em sua combatividade na luta pelo Direito, na "retidão de sua consciência, muito mais importante do que o tesouro do conhecimento"9 em sua crença na corporificação dos sonhos, reside a razão do triunfo da dignidade sobre a ignomínia e o segredo das transformações que hão de sepultar as injustiças do presente. Para isso se faz preciso ter esperança num amanhã menos desonroso, aquela esperança, em palavras de Schiller, cujo "brilho mágico entusiasma os mais moços e não é enterrada com o ancião, pois este, quando extenuado encerra o curso da vida, ainda a planta sobre o túmulo."

A vocês, sobretudo recém ingressos nesta fascinante carreira, endereço as palavras de Julio Hernández Plieto, em "Cartas a un Joven Defensor de Oficio":

"A defesa dos pobres implica o privilégio de abraçar uma cruzada constante contra as travas e iniqüidades que se opõem à Justiça, em desfavor dos menos favorecidos, e de privilegiar, ao mesmo tempo, nossa classe profissional em sua transcendência histórica, a tal grau que se houvesse outra vida, sem dúvida ter-se-ia que vivê-la como advogado lutando por esses propósitos, e quando nosso filho, parafraseando Couture, nos peça conselho acerca de seu futuro, será uma honra - estou seguro disso - sugerir-lhe que exerça a defensoria pública."10

Senhoras e senhores. À prestação jurisdicional (a que muitos pretendem equivocadamente restringir a ação da defensoria pública) se soma, a bom juízo, a efetividade de uma defesa bem mais ampla que abarque, sob o signo da solidariedade, a promoção da justiça social. Não é suficiente apenas afirmar que a instituição, olhos e ouvidos dos excluídos, é um instrumento de efetivação de seus direitos humanos; é preciso avançar - este é o grande desafio, máxime das novas gerações - e diminuir o descompasso existente entre o Brasil legal e o Brasil real, entre os ideais da democracia e da paz social e a realidade de milhões de brasileiros que aspiram a uma cidadania plena.

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1 A esse respeito: "O que se busca com a atuação dessas instituições é a realização da Justiça, tomado esse termo não apenas no sentido de Justiça de estrita legalidade, de Justiça jurisdicional, mas de Justiça abrangente da eqüidade, da legitimidade, da moralidade." (FERREIRA, Sérgio D'Andrea, in NEDER Suely Pletz. Defensoria Pública - Instituição Essencial ao Exercício da Função Jurisdicional pelo Estado e à Justiça. Brasília: Câmara dos Deputados, Consultoria Legislativa, 2002).

2 ROCHA, Amélia Soares da. Defensoria Pública e Transformação Social. Revista Pensar, v. 10, n. 10, p. 1-5, fev. 2005, Fortaleza.

3 ROBERT, Cinthia Robert e SEGUIN, Elida. Direitos Humanos, Acesso à Justiça: Um Olhar da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 8. Leia-se também esta citação de Diogo de Figueiredo Moreira Neto: "Sem Defensoria Pública, parcela substancial, quiçá majoritária da sociedade estaria condenada à mais execrável sorte de marginalização, além das que já sofrem, a econômica e social: a marginalização política. Condenados, os necessitados a serem cidadãos de segunda classe, perpetra-se o mais hediondo dos atentados aos direitos, liberdades e garantias constitucionais, impossibilitando que na sociedade brasileira se realize o Estado de Direito - pela ilegalidade sem sanção, se afirme po Estado Democrático - pela cidadania sem ação; e se caminhe para o Estado de Justiça - pela imoralidade sem oposição" (grifos nossos). (Idem, p. 204)

4 Trecho do livro Viagem pelos Caminhos da Dor: A Execução Penal na América Latina à Luz dos Direitos Humanos (Casos do Brasil e do México), p. 179, em vias de publicação.

5 Idem, p. 236.

6 Dos mesmos autores: "Os Defensores Públicos, além de Operadores do direito, por terem oportunidade de lidar com uma camada mais desprotegida e desinformada da população, são também agentes de mudança, atuando numa educação informal do povo para conscientizá-lo da cidadania que possuem. Ao informar a parte de seu direito o Defensor Público faz mais do que apenas defender um direito subjetivo, ele muda paulatinamente uma consciência social." (Idem, p. 225)

7 Leia-se: "Quem sabe se fica revogada, no Brasil, a persistente frase de Ovídio: Cura pauperibus clausa est. Ou as Defensorias Públicas federal e estaduais serão mais uma instituição falha? Cabe aos Defensores Públicos abrir os tribunais aos pobres, é uma missão tão extraordinariamente grande que, por si, será uma revolução, mas, também se não cumprida convenientemente será um aguilhão na honra dos que a receberam e, porventura, não a sustentaram." (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 588)

8 OLIVEIRA DE BARROS LEAL, César. Viagem Pelos Caminhos da Dor: Execução Penal na América Latina à Luz dos Direitos Humanos (Casos do Brasil e do México). Tese de doutorado (Universidade Nacional Autônoma do México). Texto mimeografado, p. 251.

9 Osorio y Gallardo, citado por DÍAZ, Hermínio Huerta, em "Cartas a un Joven Defensor Público". Publicação da Suprema Corte de Justiça, México, 2001, p. 79.

10 Idem, p. 279.

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*Procurador do Estado do Ceará, Doutorando em Direito pela Universidade Nacional Autônoma do México, Professor aposentado da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e Presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos






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