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Você doaria os órgãos de seu parente?

Diferentemente de Romeu e Julieta, Abelardo e Heloisa, Tristão e Isolda, o recente e trágico episódio ocorrido em Santo André, em que a adolescente Eloá Cristina Pimentel foi baleada na cabeça pelo seu ex-namorado, após ter sido mantida refém por mais de 100 horas, traz lições inesgotáveis tanto para o aperfeiçoamento do serviço policial responsável pela negociação e convencimento do autor da infração, como, também, pelo demonstrativo inegável de solidariedade humana por parte de seus pais.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Atualizado em 5 de novembro de 2008 11:48


Você doaria os órgãos de seu parente?

Eudes Quintino de Oliveira Júnior*

Diferentemente de Romeu e Julieta, Abelardo e Heloisa, Tristão e Isolda, o recente e trágico episódio ocorrido em Santo André, em que a adolescente Eloá Cristina Pimentel foi baleada na cabeça pelo seu ex-namorado, após ter sido mantida refém por mais de 100 horas, traz lições inesgotáveis tanto para o aperfeiçoamento do serviço policial responsável pela negociação e convencimento do autor da infração, como, também, pelo demonstrativo inegável de solidariedade humana por parte de seus pais.

E é sobre o sentimento altruísta, consistente em doar os órgãos e tecidos humanos, que se finca este artigo. De nada adianta agora comentar a respeito do homicida, que, como o dançarino africano de nome Vincentius, tinha como sonho viver eternamente na boca do povo. O ato ignóbil por ele provocado fez calar a voz do povo, que, emudecido na sua vala de impotência, exige a realização de uma imediata justiça.

É muito difícil para o familiar decidir a respeito da doação de órgãos e tecidos de um ente que faleceu, às vezes prematuramente. Em primeiro lugar, porque nunca pensou sobre tal possibilidade e, em segundo, porque carece de informações a respeito do ato. Na realidade, o sentimento que aflora de imediato é para que fique intocável o cadáver, de tal forma que ele represente sempre a imagem última do familiar falecido. Se o homem ainda não se encontra preparado para a vida, muito distante se encontra da morte. Daí o dilema crucial em autorizar a retirada de órgãos. Esquece-se, no entanto, que veio do pó e a ele retornará.

Se o familiar, em vida, deixou transparecer que tinha intenção de fazer a doação de seus órgãos, a decisão fica mais fácil. Os responsáveis pela autorização não se inibirão e prontamente assinarão o termo médico. Do contrário, sempre ocorrerá uma junta familiar para decidir a respeito da doação. É sempre um momento difícil porque concorre com o evento morte, em que, por ironia, o paciente ainda registra batimento cardíaco. Dá-se a impressão que é um apressamento da morte, uma modalidade de eutanásia. Na verdade, é a oportunidade única para se decidir a respeito da doação, pois o paciente já expirou em razão da falência do tronco cerebral. A vida se esvaiu e no leito há um corpo movido a uma propulsão biológica conduzida, por tempo limitado. A morte determina o divórcio inevitável da pessoa e da sua vida biológica. Morre a pessoa e assume o cadáver.

Mas a doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano em vida, que compreende somente órgãos duplos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não acarrete prejuízos e riscos ao doador, deve seguir rigorosamente as normas legais existentes a respeito. O ser humano não exerce com exclusividade a propriedade de seu corpo. Se for maior, capaz, poderá dispor gratuitamente para fins terapêuticos ou para transplante em cônjuge ou parentes consangüíneos até o quarto grau. Se pretender beneficiar outra pessoa, deverá obter autorização judicial, justamente para se evitar a comercialização paralela de estruturas humanas.

Tal fato, por si só, faz incrementar o suprimento de órgãos para transplante, pois o número de pessoas aguardando nas filas é bem superior à oferta de órgãos e acarreta o surgimento do mercado de órgãos humanos. Apesar da Organização Mundial de Saúde (OMS) repudiar o comércio paralelo, observando a regra inscrita na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no sentido de que o corpo humano e suas partes são bens extra commercium, sem qualquer perfil comercial, é notório o crescimento de grupos que se dedicam a este tipo de atividade ilícita. O relator de um comitê do Parlamento Europeu, citado por Leo Pessini e Christian de Paul de Barchifontaine, escreveu: "O tráfico organizado de órgãos existe, da mesma forma que o tráfico de drogas... Envolve a matança de pessoas para remover órgãos que podem ser vendidos para obter lucro. Negar a existência de tais atividades seria negar a existência de fornos e câmaras de gás durante a Segunda Guerra Mundial" (Problemas atuais de Bioética, 7.ed. rev. e ampl., São Paulo:Centro Universitário São Camilo: Edições Loyola, 2005, p.346).

Quando se tratar de doação post mortem a situação é outra. A morte ocorre com a falência da atividade encefálica. Distante já o conceito de que a morte se dava com a parada do batimento cardíaco. Os romanos, por suas características sentimentais, cantavam o coração como o símbolo do amor, enquanto que os gregos, mais racionais, elegiam o cérebro como o administrador geral do corpo humano. E com razão eles. A volição, as ordens, a manipulação de todo sistema nervoso, dos órgãos sensoriais, são ditadas pelo cérebro. Denominavam nous o espírito infinito e independente que representava a inteligência, a mente ou o intelecto, figurando como governador dos seres viventes.

No Brasil, em razão do alto índice de criminalidade urbana, compreendendo aí também as mortes provenientes do trânsito, é representativo o número de casos de morte encefálica, mas é decepcionante o número de doadores. Segundo José J. Camargo, Presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica, estima-se que temos a ocorrência no Brasil entre 60-70 casos de morte cerebral por milhão de habitantes por ano e de 4-6 doadores por ano. As campanhas realizadas neste sentido não surtiram o efeito desejado, pois a população não foi orientada e nem instruída de forma correta a respeito deste gesto de generosidade. Basta ver que o artigo 4.º da Lei 9.434/97 (que trata da doação de órgãos e tecidos humanos - clique aqui), admitia a possibilidade da doação presumida de órgãos e tecidos, bastando o cidadão fazer constar da sua Carteira Nacional de Habilitação se era ou não doador. E, quantas pessoas, mal informadas e temerosas, não se declararam doadoras. A Lei 10.211/2001 (clique aqui) alterou esta opção e prevalece agora somente a vontade do cônjuge ou parente até o segundo grau. Mas, mesmo assim, a população está carente de informação a respeito. Temos a lei que possibilita a doação dos órgãos, mas seu mecanismo não atingiu o destinatário, muito menos seu espírito de solidariedade.

Pois bem. Decretada a morte encefálica pelos exames neurológicos realizados por dois médicos não participantes das equipes de captação ou transplante, sendo um deles neurologista ou neurocirurgião, é feita a comunicação à Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos do Estado, que indicará o nome do receptor, devidamente cadastrado. Tal procedimento, conhecido por transplante ou transplantação é o ato cirúrgico pelo qual se insere num organismo denominado hospedeiro, um tecido ou órgão, colhido de um doador e evita a indicação de beneficiários por parte dos familiares. A doação, em sua essência, é ato que transcende a generosidade humana e pode ocorrer, por ironia do destino, que o órgão venha a ser transplantado em um inimigo do doador.

No caso da menina Eloá, os pais concordaram com a retirada do coração, pâncreas, rins, fígado, pulmões, córnea e a doação a pessoas até então desconhecidas. O ato é nobre e se sustenta como referência de solidariedade a ser seguido. O corpo humano é repositório de órgãos que conseguem realizar a substituição com considerável margem de sucesso, proporcionando ao homem, desta feita, uma melhor qualidade de vida. O homem, ser pensante, pode ser lobo do próprio homem, mas o cadáver se apresenta como oferenda a quem de seus órgãos necessitar.

São múltiplas e contempladas Eloás que circulam já sem restrição de saúde, carregando cada uma delas um fruto do altruísmo paterno, exemplo digno de ser seguido. O corpo humano, indiscutivelmente, é uma obra maravilhosa, que se divide e se multiplica. A título de curiosidade, Heloá, em hebraico, significa Deus.

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*Advogado, Promotor de Justiça aposentado e Reitor da Unorp






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