Fora da lagoa
Quem nunca a viu, e só a conhece de ouvir falar, ao vê-la assim, parada em sua pose de eterna indefesa, até se surpreende, num misto de compaixão e respeito, com a mansidão do seu olhar
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
Atualizado em 17 de outubro de 2008 12:19
Fora da lagoa
Edson Vidigal*
Quem nunca a viu, e só a conhece de ouvir falar, ao vê-la assim, parada em sua pose de eterna indefesa, até se surpreende, num misto de compaixão e respeito, com a mansidão do seu olhar.
Nós os humanos de bom coração, e gente sem bom coração não passa de gente hipócrita e estúpida, nós os humanos de bom coração, nos acostumamos a essa humana mania de nos apiedar dos que se mostram frágeis e indefesos.
Mostrar-se coitado em alguns momentos faz parte de uma arte. Não de uma arte que se aprenda porque a dissimulação convincente é própria dos que não tem caráter e que, por isso, podendo se amoldar a qualquer situação, quase sempre se dão bem.
Quando chegam querendo uma coisa ou você concede logo, ou fica muito esperto para poder avaliar a intensidade da picada que o escorpião vai desferir depois, ou o melhor mesmo, amiga, amigo, é sair de perto, é cair fora e não ter que amargar o indelével arrependimento.
Você vai se dar conta de sua imprudência e, mesmo depois de ter escapado com vida, ainda cobrará mil perdões a si mesmo pelo grave pecado de ter contrariado a sua intuição.
É como se você andando por um caminho, de repente, ouvisse aquele aviso do anjo da guarda dizendo volta oh cara, não vai por aí, ou então pula esse córrego, ou ainda segue pelo atalho, e você cheio de si, muito dono de si, não ouve a voz interior e se entrega à imprudência que não tem freios.
Muitas vezes é porque você se encanta e encantado quem é que acha que ainda precisa de alguma coisa? Quer é viver o quanto antes o seu encanto, alcançar o quanto antes as promessas do encanto. Até esquece que a lucidez já existiu, que se ela não está é porque de tão cansada dormiu. Mas não morreu. A lucidez não morre.
Lendas correm o mundo e não é de hoje e desde os gregos tentam explicar pelas ações dos seus deuses as razões da vida, louvando a coragem, o bem se impondo sobre o mal.
Tem a lenda da serpente. Aliás, são inúmeras as lendas sobre serpentes. Desde aquela danada da tentação do Paraíso, ê minha filha, falou a serpente à coitada da Eva, ê menina, prova deste fruto aqui, que não está proibido coisa nenhuma, hoje está até em liquidação aqui nessa feira livre.
E aí a Eva achando boa aquela coisa da macieira, repassou-a ao companheiro Adão e aí, amiga, amigo, lá foram as inocências descambando para os parreirais e para as oliveiras.
E daí que nunca antes na história do Paraíso tantas coisas horrorosas aconteceram, inveja de irmão e os descendentes todos condenados a ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Condenação esta, aliás, que para muitos desses descendentes ainda não transitou em julgado.
Para os que ainda tem medo procuram se mostrar como se fossem o demônio do poço, aquele bicho da mitologia grega, um cão de monstruosa cabeça e muitas cobras ao redor do pescoço, que fazia plantão, montando guarda no reino subterrâneo dos mortos.
Ou a Hidra de Lerna, a cobra aquática de muitas cabeças, incansável no flagelo. Talvez essa comparação seja mais pertinente. Sempre que Hércules decepava uma cabeça, duas surgiam em seu lugar.
Mas agora, por estas bandas, nada disso vem ao caso. A cobra que resta é aquela de duas cabeças. E a venenosa já começou a devorar a si mesma. É uma cabeça comendo a outra.
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*Ex-Presidente do STJ e Professor de Direito na UFMA
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