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Súmula impeditiva

José Barcelos de Souza

Escrevendo nesta coluna sobre a chamada súmula vinculante, salientamos que a pretensão de seu estabelecimento em nosso direito encontra obstáculo na Constituição, por vincular o juiz, isto é, sujeitá-lo a acatar a jurisprudência do Supremo Tribunal, diferentemente da súmula comum, que não passa de um mero rol da jurisprudência ali predominante.

sexta-feira, 24 de setembro de 2004

Atualizado em 23 de setembro de 2004 10:23

Súmula impeditiva

José Barcelos de Souza*

Escrevendo nesta coluna sobre a chamada súmula vinculante, salientamos que a pretensão de seu estabelecimento em nosso direito encontra obstáculo na Constituição, por vincular o juiz, isto é, sujeitá-lo a acatar a jurisprudência do Supremo Tribunal, diferentemente da súmula comum, que não passa de um mero rol da jurisprudência ali predominante. Por causa dos inconvenientes que a aprovação da súmula vinculante na emenda constitucional de reforma do judiciário traria, tem-se falado na adoção, em lugar dela, de outra espécie de súmula, denominada impeditiva de recurso, que supostamente seria mais bem aceita.

Essa outra espécie de súmula, porém, seria também perniciosa, já que, como seu próprio nome está dizendo, impediria um recurso que a contrariasse. Desse modo, se o juiz não fica proibido de julgar como entender acertado, como ocorreria com a súmula vinculante, por outro lado a parte que perdeu não poderá bater às portas de um tribunal superior no caso de existir súmula contrária a seu alegado direito. Fica, como se vê, restringido seu importante direito de recorrer. No crime isso é mais perverso, porque pode estar em jogo o direito constitucional a ampla defesa ou o direito à liberdade.

Nociva será também a súmula impeditiva de recurso porque por meio dela o tribunal superior, ao forçar e impor um determinado entendimento acaba legislando por via oblíqua. Isso é antigo na Justiça. O imperador romano, que não era bobo, baixou um edito segundo o qual não se interpretaria lei clara. Foi exatamente para evitar que o tribunal, a título de interpretar a lei, legislasse, usurpando-lhe a função.

É o que, aliás, já vem ocorrendo entre nós, porque uma súmula comum, não só do Supremo Tribunal Federal, mas também do Superior Tribunal de Justiça, já pode em certos casos surtir o efeito de uma "Súmula impeditiva de recurso", instituição que, sem alarde, já entrou, sem aquela denominação, para nossa legislação ordinária.

De fato, lá está numa lei de maio de 1990, sobre os procedimentos naqueles tribunais, que o relator negará seguimento a pedido ou recurso que, dentre outros casos, contraria, nas questões predominantemente de direito, súmula do respectivo Tribunal. E dessa maneira se reprime um recurso, ainda que contra uma decisão injusta ou ilegal. O objetivo da lei, sem dúvida, é diminuir o número de recursos.

E súmulas têm proliferado ultimamente. No fim de 2003 o Supremo editou, só em matéria criminal, nada menos que 36 súmulas. Vou mencionar duas delas, não só porque legislam contra entendimentos de grandes juízes do próprio Supremo Tribunal Federal, mas também porque, legislam contra a própria Constituição, limitando o uso do habeas corpus, coisa mais própria de ditadura e de estado de sítio.

Veja-se uma dessas súmulas recentes, a de número 691. Segundo ela, se em um tribunal superior for negada liminar pedida em habeas corpus, não adianta ir pedi-la ao Supremo Tribunal Federal, porque nesse caso ele não deve tomar conhecimento do pedido. Como não há outro meio para se conseguir a liminar, fica tudo por isso mesmo.

Um entendimento desse não deveria ser colocado na súmula, não só porque tira do cidadão o direito de defender sua liberdade individual, mas também porque lá mesmo, naquele Tribunal, há opinião contrária, do preclaro e festejado Ministro Marco Aurélio. Mencione-se, ainda, um outro caso. Impetrado um habeas corpus ao Supremo Tribunal para cancelar uma condenação em perda de função pública, baseada em dispositivo legal já revogado, o acórdão negou o habeas corpus, ao fundamento de que o meio escolhido para defesa do alegado direito mostrava-se inadequado.

Esse entendimento agora foi para a súmula, com o número 694. Entretanto, como havia contra ele um notável voto vencido proferido pelo insigne e culto Ministro Sepúlveda Pertence, mostrando que o meio utilizado era adequado, fica difícil entender como o acórdão entrou para a súmula.

O projeto de reforma do Judiciário precisa cuidar é da abolição da súmula impeditiva. Porque, se é boa para diminuir os serviços de tribunais, é ruim para o cidadão.
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*Professor titular das Faculdades de Direito da UFMG e da Milton Campos, Subprocurador-Geral da República aposentado e diretor do Departamento de Direito Processual Penal do IAMG - Instituto dos Advogados de Minas Gerais







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