A lei da "super-receita" e a procuradoria-geral da fazenda nacional
O presente apontamento cuida da seguinte situação: uma lei estabelece que, a partir de determinada data, um órgão da administração pública receberá um universo de atribuições transferidas de outro órgão que, dentro dos padrões brasileiros, estava estruturado.
quarta-feira, 15 de outubro de 2008
Atualizado em 14 de outubro de 2008 12:23
A lei da "super-receita" e a procuradoria-geral da fazenda nacional: hipótese singular de inconstitucionalidade
Clèmerson Merlin Clève*
Cláudia Honório**
O presente apontamento cuida da seguinte situação: uma lei estabelece que, a partir de determinada data, um órgão da administração pública receberá um universo de atribuições transferidas de outro órgão que, dentro dos padrões brasileiros, estava estruturado. Em tese, o aumento de atribuições é incensurável. Todavia, cotejando a disposição normativa com a realidade, de ausência de condições materiais e humanas, a legitimidade da norma pode ser questionada. A temática que enseja reflexão é a possibilidade de se declarar a inconstitucionalidade de uma norma em decorrência de condições fáticas não satisfeitas de modo adequado, nos termos como supostos pelo legislador.
Para tanto, analise-se a Ação Direta ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, objetivando a declaração de inconstitucionalidade do artigo 16, § 1º, da Lei 11.457/07 (clique aqui). Os fundamentos indicados foram:
(i) os princípios do Estado de Direito e do devido processo legal (arts. 1º, caput, e 5º, LIV, respectivamente, da Constituição Federal), especificamente o postulado normativo da razoabilidade como congruência;
(ii) o princípio da continuidade do serviço público; e
(iii) o princípio da eficiência administrativa (art. 37, caput, CF).
O Sindicato dos Procuradores da Fazenda Nacional - SINPROFAZ, teve admitido seu ingresso no feito na qualidade de amicus curiae, prestando esclarecimentos para auxiliar o julgamento da causa. A íntegra da petição apresentada pode ser conferida aqui. São os argumentos principais suscitados pelo Sindicato o objeto das observações a seguir pontuadas.
Nos termos do art. 16, § 1º, da Lei 11.457/07 (Lei da Super-Receita)1 as dívidas ativas do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE passam, a partir de 1 de abril de 2008, a integrar a da União. Sabe-se que o órgão competente para representar a União na execução de sua dívida ativa é a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, conforme dispõe o art. 131, § 3º da Constituição Federal. Interessa, portanto, perquirir se a Procuradoria tem condições de assumir o volume de trabalho decorrente da implantação da Super-Receita.
Nesse sentido, importa acentuar as difíceis condições de trabalho vivenciadas na PGFN. Limitações orçamentárias e de outras ordens dificultam o desenvolvimento das funções. As estruturas físicas são insuficientes e inadequadas, os recursos humanos são escassos, o volume de trabalho dos Procuradores é invencível.
A PGFN não apresenta, como sabia o legislador, condições operacionais para executar a dívida ativa da União no montante estipulado pela Super-Receita. Apesar da importância da carreira, o que há, de fato, é uma fragilidade organizacional que envolve insuficiência de elemento humano e subdimensionamento da estrutura administrativa contrastando com a magnitude das tarefas, que impactam substancialmente os interesses da coletividade.
Comparando o cenário de condições de trabalho esboçado com as novas atribuições decorrentes da efetivação da Super-Receita, fácil perceber que a agregação de atribuições torna a rotina de trabalho do maior órgão jurídico de cobrança do país insustentável.
Apenas com a efetiva concretização das medidas previstas pela lei será possível o atendimento de forma plena e eficiente das novas atribuições conferidas à PGFN. Para se ter uma dimensão real da situação, informe-se que, com a transição para a Super-Receita, a Procuradoria da Fazenda Nacional recebeu cerca de 300 mil novos processos já no primeiro mês, sendo manifestamente insuficiente sua estrutura para lidar com tal volume de feitos.
É possível defender, portanto, a necessidade de intervenção do Poder Judiciário para corrigir a equação "lei aprovada - realidade", à qual não se ateve o legislador. Por esta razão, aponta-se a inconstitucionalidade de parte do § 1º, do art. 16 da Lei 11.457/07, no que concerne ao momento da transferência integral do acervo da dívida ativa do INSS e do FNDE para a União.
Frente ao quadro fático referido, nota-se que o termo inicial, fixado no § 1º do art. 16 da Lei nº 11.457/07, para a transferência de dívidas de outros órgãos para a dívida ativa da União é incompatível com os princípios constitucionais da proporcionalidade, da razoabilidade e da eficiência, eis que provoca aumento do volume de trabalho da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional sem que ela possua, ainda, condições estruturais para assumir tal encargo.
Importa ressaltar que o escopo da Lei 11.457/07 foi reorganizar a Administração Fazendária Federal por meio da criação da denominada "Super-Receita", com a simplificação de processos e outras medidas de eficiência, que permitiriam incrementar a arrecadação correspondente a tributos federais. O que justificou a medida, conforme sua exposição de motivos, foi a "busca da eficiência da máquina arrecadadora".
O princípio constitucional da eficiência impõe o aperfeiçoamento dos serviços prestados, buscando otimizar os resultados e atender o interesse público com os maiores índices de adequação, eficácia e satisfação possíveis. Assim, a Administração Pública deve estar atenta às suas estruturas, evitando a manutenção de entidades que não atendam aos anseios da população2.
Para verificação da adequada conformidade da norma ao princípio constitucional da eficiência, os efeitos da aplicação da lei são de suma importância. Nesse sentido, diga-se que as mudanças provocadas pelo § 1º do art. 16 da Lei 11.457/07 em relação à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional são inconciliáveis com a referida busca de maior eficiência.
A migração da atual dívida ativa do INSS e do FNDE para o sistema de dívida ativa da União deve ser acompanhada da "necessidade de adaptação, desenvolvimento e modernização das suas [PGFN] atividades frente aos novos desafios atualmente caracterizados na fiscalização e cobrança dos tributos federais". A própria exposição de motivos da lei previa readequação da infra-estrutura da PGFN frente ao alargamento de suas atividades. Contudo, não foram tomadas as providências necessárias.
A análise da situação fática criada pela aplicação do § 1° do art. 16 demonstra, portanto, verdadeiro contraste entre o ideal imaginado pela norma (eficiente busca de arrecadação, incluindo modernização da infra-estrutura da PGFN) e o mundo dos fatos, de transferência de considerável volume de trabalho para a PGFN, a partir de 1 de abril de 2008, sem estrutura suficiente para atendê-lo. Tal contraste implica ofensa ao princípio constitucional da eficiência, que merece ser sanada pelo Judiciário3.
Ao lado da prestação eficiente, o Estado não pode descurar da contínua prestação de seus serviços à sociedade, em razão do dever de proteção do interesse público. Sendo a função da PGFN essencial à justiça, não pode ser negligenciada pelo Estado. Caso mantida a migração para a PGFN sem o oferecimento das condições materiais para atender a esse alargamento de afazeres, simplesmente estará criado cenário de impossibilidade fática de desempenho desta função essencial à justiça. E tal resultado é extremamente prejudicial não só para o Estado como também para a sociedade, pois é de todos o interesse na proteção dos recursos públicos. Portanto, pode-se cogitar que o termo inicial fixado desrespeita também o princípio da continuidade do serviço público.
Cabe evidenciar, ainda, que o prazo estipulado no § 1º do art. 16 da Lei 11.457/07 ofende também os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
O termo inicial estabelecido no § 1º do artigo 16 da Lei 11.457/07 não passa no teste da proporcionalidade sem mostrar incompatibilidade. Seu defeito é não ser meio adequado para alcançar o fim pretendido pela norma: maior eficiência na administração e arrecadação de tributos federais.
Com efeito, determinar que a partir de 1 de abril de 2008 ocorreria a transferência integral, para a dívida ativa da União, das dívidas do INSS e do FNDE, ocasionando aumento no volume de trabalho da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, sem que existam condições fáticas para a realização deste trabalho, é nitidamente violar o princípio da proporcionalidade. Sobrecarregar um órgão (transferindo mais de 300 mil feitos) operando já em condições humanas e materiais insuficientes é absolutamente inadequado, ainda mais caso se pretenda, com isso, alcançar maior eficiência. Trata-se de disparate a ser corrigido pelo Judiciário.
Considerando que o termo estabelecido no § 1º do art. 16 da Lei 11.457/07 não é adequado, diga-se também que não se reveste de razoabilidade.
As normas devem recorrer a um suporte empírico existente. Significa dizer que a normativa deve ser examinada com seu entorno. Considerando o necessário exame da razoabilidade, no sentido da congruência da norma com a realidade, tem-se que a norma impugnada, apesar de prever adequadamente a transferência de administração judicial de receitas para a União, a cargo da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, não pode ser aplicada a partir do prazo que estabelece, pois a razão que motiva a própria regra - a eficiência - será violada se isto ocorrer.
O legislador considerou que até 1 de abril de 2008 teria sido providenciada a readequação da estrutura da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional frente ao maior volume de trabalho. Todavia, não foram implementadas as medidas para tanto, medidas estas previstas na própria lei (arts. 18 e 194). Dos 1.200 novos Procuradores necessários para fazer jus ao novo volume de trabalho, apenas 316 foram nomeados5. Ainda, segundo dados estatísticos, há 605 Varas Federais instaladas em todo o país, somadas a 139 Juizados Especiais Federais6. Por outro lado, em nítida discrepância e insuficiência, existem somente 73 Procuradorias Seccionais da Fazenda Nacional.
No ano de 2001, a média de ocorrências por Procurador da Fazenda Nacional atingiu a cifra de 6.031 expedientes per capita, índice que vem aumentando significativamente a cada ano7. Em 2006, cada Procurador era responsável por 9.610 expedientes. Com o início da transferência do acervo de dívidas para a União, em abril de 2008, foram transferidos à PGFN mais de 300 mil novos feitos. A partir de então, o que se observa é o incremento progressivo no número de feitos. Assim, o § 1º do art. 16 ora em questão, especificamente quanto ao termo determinado, não é compatível com a realidade desrespeitando, portanto, o princípio da razoabilidade.
Deste modo, até que sejam implementadas as condições materiais necessárias para a atividade dos Procuradores da Fazenda Nacional, o dispositivo não pode surtir efeitos. Nesse sentido, ganham relevância os precedentes em que o Supremo Tribunal Federal verificou a compatibilidade de uma norma com a Constituição considerando as condições fáticas de implementação do programa normativo (HC 70.514/RS e RExt 147.776/SP)8.
Pelos argumentos tecidos, pode-se concluir pela inconstitucionalidade da expressão "A partir do 1º (primeiro) dia do 13º (décimo terceiro) mês subseqüente ao da publicação desta Lei" contida no § 1º do artigo 16 da Lei 11.457/07.
Defende-se como momento adequado para as transferências de que trata a lei para a dívida ativa da União aquele decorrente da efetiva reestruturação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, nos moldes dos artigos 18 e 19 da Lei 11.457/07 (preenchimento de ao menos 1200 cargos de Procuradores da Fazenda e implantação de 120 seccionais da Procuradoria). Assim, restará protegido o sistema constitucional, por meio da adequação do ato normativo à realidade dos fatos.
______________
1 CAPÍTULO II - DA PROCURADORIA-GERAL DA FAZENDA NACIONAL: "Art. 16 - A partir do 1º (primeiro) dia do 2º (segundo) mês subseqüente ao da publicação desta Lei, o débito original e seus acréscimos legais, além de outras multas previstas em lei, relativos às contribuições de que tratam os arts. 2º e 3º desta Lei, constituem dívida ativa da União. § 1º A partir do 1º (primeiro) dia do 13º (décimo terceiro) mês subseqüente ao da publicação desta Lei, o disposto no caput deste artigo se estende à dívida ativa do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE decorrente das contribuições a que se referem os arts. 2º e 3º desta Lei." -g.n.-
2 Conforme Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO, "Presumidamente, toda ação, seja pública ou privada, deve ser eficiente, de outro modo não atingirá o resultado que dela se espera. Mas este logro de resultados, que até certo ponto possa ser meramente dispositivo na gestão privada de interesses, é rigorosamente mandatório, quando referido à gestão de interesses públicos pelo Estado" (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo: legitimidade, finalidade, eficiência e resultados. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 126. Grifamos).
3 Reforçando a afirmação, MOREIRA NETO (Ibid., p. 130) defende que "a obrigação de atingir resultados qualificados pela legitimidade e pela eficiência, tanto nos meios quanto nos fins, que efetivamente executem as diretrizes constitucionais, possa ser objeto de controle judicial." Ocorre que "é dever constitucional do Estado atingir efetivamente os resultados que concorram para o atendimento de seus cometimentos públicos."
4 "Art. 18 - Ficam criados na Carreira de Procurador da Fazenda Nacional 1.200 (mil e duzentos) cargos efetivos de Procurador da Fazenda Nacional. Parágrafo único. Os cargos referidos no caput deste artigo serão providos na medida das necessidades do serviço e das disponibilidades de recursos orçamentários, nos termos do § 1o do art. 169 da Constituição Federal."
"Art. 19 - Ficam criadas, na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, 120 (cento e vinte) Procuradorias Seccionais da Fazenda Nacional, a serem instaladas por ato do Ministro de Estado da Fazenda em cidades-sede de Varas da Justiça Federal ou do Trabalho. Parágrafo único. Para estruturação das Procuradorias Seccionais a que se refere o caput deste artigo, ficam criados 60 (sessenta) cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores DAS-2 e 60 (sessenta) DAS-1, a serem providos na medida das necessidades do serviço e das disponibilidades de recursos orçamentários, nos termos do § 1º do art. 169 da Constituição Federal."
5 Dados disponíveis em: (clique aqui)
6 Dados disponíveis em: (clique aqui)
7 Dados disponíveis em: (clique aqui)
8 No HC 70.514/SP entendeu a Corte, corretamente, que enquanto não organizadas e estruturadas as Defensorias Públicas, não é adequado deixar de conceder prazo em dobro para recurso. Sem o prazo dilatado, diante das condições de trabalho existentes no âmbito das Defensorias, o volume de afazeres seria de impossível gerenciamento, não conseguindo a entidade desempenhar adequada e satisfatoriamente suas funções essenciais à justiça; desapontaria a sociedade e prejudicaria o próprio Estado. Já no RExt 147.776/SP, entendeu o Tribunal que até que se implemente a Defensoria Pública será considerado constitucional a norma que atribui ao Ministério Público legitimação para promoção, no juízo cível, do ressarcimento do dano resultante de crime, caso o titular do direito à reparação seja pobre no sentido jurídico do termo (o que configura modalidade de assistência judiciária).
O mesmo raciocínio cabe ao caso em exame: enquanto não devidamente organizada e estruturada a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, não é adequado transferir-lhe a representação judicial da dívida ativa do INSS e do FNDE. Ressalte-se que a transferência, a partir de 1º de abril de 2008, da representação judicial e extrajudicial da Procuradoria-Geral Federal para a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional pode ainda gerar total insegurança jurídica, em face da falta de especialização e de experiência da PGFN no trato de milhares de ações envolvendo o INSS na Justiça Federal e na Justiça do Trabalho.
______________
*Professor das Faculdades de Direito da UniBrasil e da UFPr. Advogado do escritório Clèmerson Merlin Clève - Advogados Associados
**Integrante do escritório Clèmerson Merlin Clève - Advogados Associados
________________