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"Grampos" nas altas esferas. Quem se atreve?

Antes que o problema caia no esquecimento - sem ser resolvido -, perpetuando a dubiedade, é preciso que a comunidade jurídica e o legislador federal brasileiro enfrentem a melindrosa questão de saber qual o juiz autorizado a deferir a escuta telefônica das autoridades máximas dos três poderes. "Afastai de mim esse cálice..." devem pensar muitos magistrados, conforme o poder e o temperamento mais ou menos vingativo da autoridade a ser investigada. Em um nível mais prosaico, a pergunta seria: a quem caberá a arriscada tarefa de amarrar o sino no pescoço do gato, onça ou tigre?

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Atualizado às 16:50


"Grampos" nas altas esferas. Quem se atreve?

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues*

Antes que o problema caia no esquecimento - sem ser resolvido -, perpetuando a dubiedade, é preciso que a comunidade jurídica e o legislador federal brasileiro enfrentem a melindrosa questão de saber qual o juiz autorizado a deferir a escuta telefônica das autoridades máximas dos três poderes. "Afastai de mim esse cálice..." devem pensar muitos magistrados, conforme o poder e o temperamento mais ou menos vingativo da autoridade a ser investigada. Em um nível mais prosaico, a pergunta seria: a quem caberá a arriscada tarefa de amarrar o sino no pescoço do gato, onça ou tigre?

De início, afigura-se inquestionável que não vivemos mais nos tempos da monarquia pré-constitucional, em que o "direito divino dos reis" santificava a regra de que os monarcas - assim como o Papa - jamais poderiam errar. Merecia forca ou guilhotina quem dissesse o contrário - mesmo comprovando a acusação. Qualquer denúncia, nessa área, era "crime de lesa-majestade". Hoje, todos os países, mesmo os de regime monárquico, reconhecem que os reis simbolizam seus estados, mas se cometerem algum crime serão democraticamente punidos. O sangue azul continua vermelho para fins penais. Monarcas não pairam, como anjos, acima do bem e do mal. Por sinal, mostram-se hoje, no geral, extremamente obedientes à legislação, o que explica o imenso prestígio de que desfrutam em países culturalmente avançados. Na Escandinávia, por exemplo, a família real é vista com sincera reverência e simpatia popular.

Nas democracias em molde republicano, as autoridades máximas estão - ou pelo menos deveriam estar -, sob vigilância normal, como qualquer do povo. Mas quem exerceria tal vigilância, na área criminal? A "polícia", claro, genericamente falando, variando qual delas conforme a natureza do crime. E aí está - na competência para a atividade investigatória - o foco de nosso problema, uma areia movediça legal que mais favorece do que prejudica a criminalidade dos réus mais influentes, capazes de moldar, por via indireta - a mídia comprada -, a opinião pública sobre suas próprias faltas. Redatores especialmente hábeis conseguem façanhas equivalentes às distorções da "coisa julgada": fazer, do preto, branco.

Nossa Constituição Federal, de 1988, permite que, na luta contra a criminalidade - seja ela a "vulgar", de rua; seja a do "colarinho branco" -, a polícia intercepte, com ordem judicial, conversas telefônicas quando tiver forte indício de crime e não seja possível obter, pelos meios usuais - testemunhas, documentos e perícias - as provas necessárias. Testemunhas, geralmente, temem - com razão -, depor contra gente poderosa. É arriscado demais. Podem até morrer, por encomenda, vítimas de um "possível" latrocínio, mesmo que nada tenha sido roubado. A prova documental também será sempre precária porque os infratores não costumam deixar papéis comprometedores ao alcance da polícia. E o mesmo se diga de computadores. Para obter papéis e discos rígidos é preciso lidar com o espinhoso problema da busca domiciliar, ou em escritórios, alguns deles protegidos pela inviolabilidade de certas profissões (analistas, advogados, médicos). Resta a prova pericial, mas para o perito poder atuar é preciso ter em mãos um objeto a ser examinado, não facilmente disponível, como dito acima. Resta a escuta telefônica, também esta com muitas dificuldades operacionais porque os segredos criminosos apresentam-se mesclados com conversas inocentes. Quando pinçado o ponto mais comprometedor alega-se que a declaração estava "fora do contexto".

Os infratores, ao telefone, não dizem, por exemplo: "Atenção! Agora vamos conversar sobre nossos crimes!" Como não há esse alerta, é preciso que a escuta se estenda por muitas horas e dias, fato que impressiona negativamente alguns tribunais, preocupados com a eventual bisbilhotice. Argumento fraco, com a devida vênia, porque se pode, de fato, haver abuso, curiosidade malsã, não se pode negar a necessidade de que qualquer escuta eficaz tem que ser necessariamente longa, por dias, seguida da "garimpagem" das frases mais comprometedoras. Este é um problema insolúvel, só neutralizado com um conselho elementar: não convém confundir telefone com confessionário.

Quase todo cidadão, embora 99% virtuoso, tem algum segredo guardado. Mesmo porque a legislação penal está hipertrofiada, fazendo com que qualquer um - principalmente se for empresário ou membro de qualquer governo -, se sinta meio criminoso, pelo menos na rigorosa técnica jurídica. E isso, o excesso de criminalização, é mau porque, como diz o velho ditado, "o ótimo é inimigo do bom". Pessoalmente, sou a favor de uma alteração legislativa permitindo o retorno, ao Brasil, dos bilhões de dólares, de origem misteriosa, depositados no exterior, com o pagamento das multas legais, afastando-se o enquadramento penal da "evasão de divisas". Parece-me mais prático, factível, do que tentar recuperar o dinheiro e também prender esse pessoal, influente e protegido por uma legislação ineficaz. Insistir nisso, hoje, é arriscar em não conseguir nem uma coisa nem outra. O dinheiro não retornará e ninguém será preso em definitivo, a não ser, talvez, em sua própria residência, se ainda vivo o réu.

O mundo se tornou por demais transparente. Essa é a tendência geral, irreversível. Cada vez mais câmeras de vigilância nos espionam nas ruas e lojas, o que é bom para os honestos e ruim para os assaltantes e seqüestradores. Se a autoridade policial tem informações relativamente confiáveis de que determinada pessoa - importante ou "pé de chinelo" - está envolvida em crimes, de qualquer natureza, e que o suspeito comunica-se com seus comparsas, dirá isso ao juiz competente para determinar a escuta. E o que resultar irrelevante nessa alongada bisbilhotice será eliminado, sendo crime sua revelação. A mesma obrigação que obriga um analista, médico ou advogado a guardar segredo profissional estende-se ao policial que participou da escuta. Uma espada penal estará sobre sua cabeça, caso use mal qualquer informação colhida. O fato é que alguém, a polícia, com correta intenção, precisa ouvir conversas que esclareçam crimes. E não se pode presumir que sempre haja leviandade e má-intenção na escuta. Nas polícias há também Corregedorias.

Com relação ao problema da vigilância das autoridades máximas, nos Três Poderes, existe um problema extra. Membros do Conselho Nacional de Justiça que não sejam magistrados não podem determinar a escuta telefônica. Afinal, não são "juízes", - exigência constitucional - embora possam vigiá-los administrativamente. No caso de escuta contra, por exemplo, um Presidente do STF - que também preside o CNJ -, não teria sentido ele decidir se deveria ou não ser objeto de escuta.

Quando um juiz é procurado pela polícia para autorizar uma escuta, há problemas ligados à segurança profissional do próprio magistrado. Se o suspeito é um prefeito, vereador, deputado, ou mesmo senador - aí, nem sempre, conforme seu temperamento... - não será difícil vencer a natural cautela de um juiz no deferir a escuta. Se, porém, pede-se escuta contra um ministro presidente do STF, ou o presidente do Senado, ou Presidente da República, o juiz sabe que sua carreira profissional pode ser tremendamente prejudicada, se autorizada a gravação. Presumo, por exemplo, que poucos juízes, na Bahia, teriam coragem de conceder a escuta a telefônica contra ACM, no auge de seu poder, seja como governador, seja como presidente do Senado Federal. Todos conhecem a belicosidade e excelente memória do falecido político, muito temido - ou amado - no seu Estado e mesmo na Federação. A autorização judicial não tem a defesa legal do anonimato, como ocorre com um informante de jornal. Quando o investigado poderoso souber quem foi o magistrado "atrevido" que permitiu sua escuta, pode, em tese, se vingar. Providências podem ser tomadas contra o juiz no CNJ. E a única defesa (fraca, relativa) do magistrado será exibir a cópia do pedido feito pela autoridade policial e seu despacho deferindo o pedido. De qualquer forma, uma situação de pressão, de risco profissional. Uma 'blindagem" psicológica, informal, do investigado.

Enquanto não houver legislação definindo claramente a competência judicial para dizer qual magistrado pode deferir o "grampo" contra o presidente do Congresso, do STF ou o Presidente da República, cabe ao juiz criminal, onde ocorrerá a escuta, decidir se defere ou nega o "grampo", o que torna Brasília um local muito perigoso para o trabalho dos juízes criminais.

O leitor pode pensar que é cerebrina a hipótese de alguém acusar um Presidente do Congresso, do STF ou da República de qualquer ato menos nobre, precisando-se ouvir suas conversas ao telefone. Obviamente, chefes de poderes não são traficantes, assassinos, ladrões, contrabandistas, moedeiros falsos, estelionatários, proxenetas, nem coisas do gênero. Pode haver, porém, indícios fortes de um favorecimento ilegal, de proteção deslavada a um grande interesse econômico, ou, até mesmo, um caso de chantagem contra o chefe de algum poder. Nesse caso, a escuta apuraria algo que a vítima da chantagem jamais revelaria. É dificílimo a qualquer ser humano atingir o ápice de um Poder sem deixar, em seu passado, uma irregularidade qualquer - grande ou pequena - que seus inimigos transformação em crime horrendo.

Até mesmo por motivo, em tese, nobre - a gratidão, por exemplo - um alto ocupante de cargo público pode infringir a legislação ou a ética. Ele pode ter chegado a onde está porque foi resolutamente apoiado por alguém, com dinheiro ou outras formas de pressão. Sente gratidão por quem fez tanto por ele. Pode também pensar, sinceramente, que tal ou qual previsão legal - embora catalogada como penal -, na verdade, para ele, autoridade, constitui um "exagero legislativo", porque a área das altas finanças é um campo diferenciado, uma crua batalha em que não podem prevalecer noções "caseiras" de moral comum. Pode, parafraseando Scott Fitzgerald, pensar que "os ricos são diferentes" e que na selva financeira os "santinhos" são engolidos pelos espertalhões - "não, porém, com minha autorização!"

Ocorre que a opinião de outros entendidos pode ser diferente, mais formal e severa. Nos casos de "colarinho branco", é preciso que "alguém" - no caso a Polícia Federal -, possa investigar, respondendo por eventual abuso. Do contrário, como disse de início, haveria dois tipos de cidadãos no país: os comuns e os acima da lei.

É discutível o argumento do atual presidente do STF dizendo ser ilegal a cooperação da Abin para com a Polícia Federal, fornecendo-lhe informações. A Polícia Federal pode obter informações úteis onde elas estiverem disponíveis. Se pode colher informes até de "gansos" com passado duvidoso, de honestos taxistas, de comerciários, pintores de paredes, profissionais liberais - de qualquer um, até mesmo de marginais -, não há porque proibir a agência de informações de oferecer seu "produto" - a informação - à Polícia Federal. Se a Abin é, como diz o nome, uma agência de informações - agindo a nível profissional, com 1.600 funcionários -, por que estaria ela proibida de fornecer seus dados no sentido de esclarecer assuntos suspeitos?

Pergunta-se: a Agência Brasileira de Informações é 'via de sentido único", concebido apenas para defender e beneficiar, com informações, o governante do dia ou o "governo" - e país - seja quem for o ocupante do cargo? Parece-me que a segunda hipótese é a mais correta. A Abin não servirá apenas para armazenar informações contra a oposição ou potências estrangeiras. Se, a guisa de exemplo - mera abstração em reforço de uma tese -, houver notícia e indícios de que um Presidente da República qualquer está sendo chantageado ou "comprado" para editar uma lesiva Medida Provisória que vá apenas privilegiar um amigo, a Abin estaria proibida de se informar a respeito? A Abin tem, na verdade, um único compromisso: buscar a verdade, a informação correta, proteger os interesses maiores do país, não o indivíduo ou partido que ocupa o poder naquele momento. Sua função é a de funcionar como um "super-ego" informativo, além da missão da contra-espionagem. Assim, não há nada de errado, data vênia, em a Polícia Federal buscar informes e cooperação na Abin quando houve algum indício de que algo está suspeito nas altas esferas governamentais, nos três poderes. Havendo abuso, PF e Abin responderão por ele, conforme a participação de cada órgão.

Como o país se defenderá das eventuais ilegalidades escondidas no ventre da República? Será preciso, aqui também, apelar para a "iniciativa privada", para o jornalismo investigativo, do contrário jamais saberemos o que ocorre? Interesses ocultos podem também estar por trás dessas investigações particulares.

Criar, como se anuncia, umas poucas Varas especializadas em apreciar pedidos de escuta telefônica, sob "inspeção" do CNJ, é assumir o risco de um possível direcionamento tendencioso na atividade de escuta, conforme as simpatias ou antipatias da chefia do referido órgão de vigilância da magistratura. E, repita-se, o juiz deve sentir-se livre para deferir ou indeferir a escuta, conforme ditames de sua consciência, sem temer pelo seu futuro profissional, caso contrarie algum poderoso.

Segundo as cabeças mais sérias, envolvidas no tema em discussão, o delegado Paulo Lacerda deveria ser convocado de volta para o seu corajoso e criterioso trabalho. É um homem confiável, honesto e não pode ser desperdiçado. Graças a ele as investigações criminais, no Brasil, chegaram a áreas até então mergulhadas em temerosa penumbra.

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*Desembargador aposentado do TJ/SP e Associado Efetivo do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo






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