Escutas ilegais no STF
Atualmente não há, no panorama jurídico, tema mais espinhoso, delicado, "enevoado" e estimulador de reflexões do que a existência dos famosos "grampos" ouvindo conversas telefônicas de ministros do Supremo Tribunal Federal.
sexta-feira, 5 de setembro de 2008
Atualizado às 08:58
Escutas ilegais no STF
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Atualmente não há, no panorama jurídico, tema mais espinhoso, delicado, "enevoado" e estimulador de reflexões do que a existência dos famosos "grampos" ouvindo conversas telefônicas de ministros do Supremo Tribunal Federal.
Já de início, admito - à míngua de boa explicação em contrário - que tem havido - por inadvertência, não de má-fé - um excesso de autorização judicial permitindo ouvir e, conseqüentemente, gravar conversas particulares que podem não ter relação alguma com atividade criminosa. Suspeitos e não suspeitos acabam sendo alcançados pela bisbilhotice, com risco de uso criminoso de certos segredos. "Fofocas", adultérios, fraquezas íntimas, filhos ilegítimos, quantidade de dinheiro disponível, planos de alteração empresarial, segredos industriais, e tudo o mais, podem chegar aos ouvidos de funcionários - nem sempre discretos - encarregados da escuta. No entanto, para corrigir o excesso basta disciplinar melhor tais autorizações. Essa futura disciplina deverá ser redigida com a imprescindível presença de elementos da magistratura, promotoria, polícia e, claro, advogados. A utilização da escuta telefônica é prática relativamente nova no Brasil, sendo previsível um excesso inicial no seu uso.
Existe, porém, o perigo oposto: de se abolir, praticamente, pela desmoralização - é o que muita gente quer... -, um poderoso instrumento de combate ao contínuo e impune saque do dinheiro público, crime organizado e tráfico de influência. O crime organizado - seja ele capitaneado por traficantes de drogas ou por financistas engravatados - vê como uma "pedra no sapato" essa "história" de juiz autorizar o "grampo" nas suas conversas lucrativas e tenebrosas. Seria bem melhor para eles se pudessem conversar livremente. No mundo do crime ninguém passa recibo, os "laranjais" de duas pernas estão disponíveis, contentes com as migalhas, e eventuais testemunhas não se atrevem - por medo -, a contar o que viram e ouviram. Daí o recurso do Estado ao uso da escutas telefônicas. À míngua de provas "normais", usaram a tecnologia, que é eficaz mas comporta risco de abuso.
Que gravação ilegal houve, no STF, não há dúvida. Nenhum magistrado autorizou a escuta e dois dos afetados pela ilegalidade -, um senador e o presidente do STF - confirmaram a existência de um diálogo apresentado em fita - felizmente sem conteúdo comprometedor. Obviamente, essas duas personalidades, que gozam da presunção de idoneidade, não chegariam à degradação cívica e moral de, eles mesmos, gravarem uma conversa e depois dizerem que isso foi obra de terceiros. Provavelmente uma falcatrua dessas seria comprovada através de investigação altamente técnica, se necessário com peritos do exterior. Gravação, portanto, houve.
Teria sido, a ilegalidade, obra da Abin - Agência Brasileira de Informação? Pode ser que sim, pode ser que não. Minha impressão - ou melhor, certeza -, é que a aludida escuta clandestina não "veio de cima", isto é, não foi ordenada nem pelo Diretor da ABIN, nem, muito menos, pela Presidência da República. Paulo Lacerda, Diretor da Abin, é um homem que, pelo seu passado, sempre inspirou confiança. Não seria estúpido a ponto de ordenar coisa tão arriscada à sua reputação, trapalhona e de resultado incerto. Mesmo que o Dr. Paulo Lacerda tenha dito, eventualmente - alega-se isso na mídia - em algum momento do passado, que é a favor da ampliação das investigações da Polícia Federal - independentemente de autorização judicial -, essa declaração seria levada em conta, pelo próprio Dr. Lacerda, se eventualmente tentado a ordenar a escuta clandestina no telefone do presidente do tribunal mais importante do país. Só um bobo não se lembraria do que havia dito antes, caso realmente tenha dito isso. Seria o principal suspeito quando o caso viesse à tona. A ilegalidade, cedo ou tarde, transpiraria, como transpirou, resultando em afastamento provisório do cargo. Talvez em definitivo, porque o afastado já disse, em entrevista, que está desiludido com o ambiente político em que está mergulhado o país.
Pergunta-se: é tecnicamente impossível - a um terceiro, não funcionário da Abin -, colocar um grampo no STF ou na residência do presidente do STF? Se somente funcionários da Abin teriam condições técnicas, materiais, para fazer isso - o que pessoalmente desconheço -, aí não haveria dúvida de que o grampo foi instalado por um funcionário da Abin. Mas não, necessariamente, por determinação da sua direção. A agência de inteligência conta com cerca de l.600 funcionários. Impossível monitorar de perto a rotina diária de cada um deles.
Não é absurda a hipótese de que algum suspeito, indiciado, ou réu de crimes financeiros - banqueiro ou não - tenha subornado um funcionário qualquer da Abin para colocar a escuta ilegal, ou facilitar essa operação para alguém de fora. Essa escuta ilegal, imensamente atrevida, serviria para desmoralizar um gênero de prova que pode ser a principal base para sua condenação. Para um réu poderoso, "a melhor defesa é o ataque". Mataria dois coelhos com uma só cajadada: "rebaixaria" esse tipo de prova e derrubaria o diretor da Abin, que está firmemente determinado investigar crimes financeiros até recentemente ao abrigo de investigações mais profundas.
Se ocorreu isso - gente "de fora" subornando algum funcionário da Abin - a falha não seria, propriamente, da Abin, instituição, nem de seu diretor. Se, a guisa de comparação, um cabo, em um quartel, for subornado para fazer algo ilegal, não há porque destituir o general.
Essa escuta ilegal, toda especial pela sua gravidade, tem a aparência de uma "armação" montada por alguém sob investigação. Foi delatada por um funcionário "que não quis ser mencionado" e que, provavelmente, ficará no anonimato, porque a revista semanal tem o suposto direito de não revelar "a fonte" da informação. Um artifício legal absurdo que enseja a difusão da calúnia sem qualquer conseqüência. O jornalista diz que "alguém" lhe revelou o fato - muito prejudicial a uma autoridade -, mas pediu e obteve a garantia do anonimato. Sem menção do nome do funcionário o prejudicado pela notícia não tem como defender-se adequadamente. Precisaria de detalhes que, reunidos, poderiam em tese revelar que a Abin nada teve com o abuso. Pode, ainda em tese, nem haver esse funcionário.
Caso semelhante - no que se refere à proteção do anonimato da "fonte" - já foi discutido recentemente nos EUA, quando alguém revelou que a esposa de um alto funcionário era agente da CIA, fato considerado crime pela legislação americana. Transformando-se em processo judicial, a repórter, ou jornalista, foi presa por se recusar a mencionar a fonte. Finalmente, acabou cedendo, revelando o nome, dizendo-se desobrigada pelo informante. Realmente, não vejo saída racional e justa para casos semelhantes, a não ser esta: quando "o segredo" desperta comoção pública e se transforma em ação judicial a fonte deve ser mencionada, se não há outros meios de se provar um fato relevante. Pensar o contrário é garantir impunidade para as maiores calúnias.
Disse, de início, que o tema é delicado e "enevoado", porque, no presente caso, essa delicadeza é de difícil solução. Refiro-me ao detalhe da "autorização judicial", constitucionalmente prevista como exceção que autoriza a violação da privacidade. Sem ela mais de metade das grandes falcatruas nacionais até hoje estariam ignoradas, ou conhecidas de umas pouquíssimas pessoas que tiveram contato físico ou visual com as manobras - secretárias, telefonistas, funcionários, etc - mas que jamais teriam coragem de procurar uma autoridade policial para relatar o que presenciaram. O que ganhariam com isso? Nada. Só medo, inquietação de espírito. Ou, em casos extremos, túmulo ou gesso na ala de traumatologia.
A autorização judicial para a escuta telefônica não representa grande preocupação quando o suspeito é um particular sem grande poder financeiro. Já com juízes de primeira instância, suspeito de deslizes graves, o problema começa a se encorpar, mas não é insuperável. Com desembargador suspeito, a delicadeza da decisão de deferir a escuta é aumentada, mas não demais. Vários desembargadores já tiveram seus telefones grampeados e alguns perderam seus cargos. Ministros do STJ talvez já tenham sido objeto de escuta autorizada judicialmente. Agora, com relação a Ministros do STF a inibição para pedir ou deferir a escuta deve ser quase insuperável. Qual magistrado estará autorizado e à-vontade para deferir essa invasão de privacidade contra juízes na cúpula do sistema judicial? Não tem sentido um juiz de primeira instância mandar grampear o telefone de um ministro do STF. Não se atreveria. Haveria uma "quebra de hierarquia". Seria o mesmo que um sargento, ou tenente autorizar o grampo no telefone de um marechal.
Pedir essa autorização a um ministro do STF, colega de Tribunal, seria imensamente espinhoso o deferimento. E quando o eventual investigado for o próprio presidente do STF o mecanismo teórico de vigilância fica praticamente travado. Quem está "acima" dele para autorizar a escuta? Ninguém. Aí a solução sai da esfera, propriamente, do judiciário, passando para o CNJ - Conselho Nacional de Justiça, dado como órgão externo de controle da magistratura. Ocorre que, pela nossa legislação, o presidente do STF é também presidente do CNJ. Assim, na hipótese remotíssima de se necessitar uma invasão da privacidade de um presidente do STF somente o Corregedor Nacional de Justiça teria competência para determinar tal invasão. Tarefa imensamente desagradável, com odor de "traição" entre colegas. Para sentir-se moralmente autorizado a conceder essa escuta o Corregedor Nacional de Justiça exigiria do acusador uma prova de culpa tão robusta e cabal que tornaria desnecessário o uso do "grampo". Provar o que já está provado?
A menção dessa "rota" de competências para autorizar violação de privacidade de um presidente do STF tem aqui apenas um interesse acadêmico, porque a presunção no meio jurídico - embora talvez não tão acentuada na opinião pública, menos informada - é a de que qualquer membro do nosso tribunal máximo - a presidência do Supremo obedece a um rodízio a cada dois anos - é incapaz de cometer um deslize moral relacionável, de alguma forma, com a função jurisdicional.
Há, porém, quem entenda que se é quase impensável uma desonestidade financeira, material, em um juiz da instância máxima, pode, em tese, ocorrer um exagerado favoritismo direcionado a determinados segmentos sociais. Ou relações de amizade pessoal que possam turvar a neutralidade de um juiz na posição suprema.
Os argumentos acima comprovam o quanto qualquer país necessita da incansável e recíproca vigilância de todos os ministros com assento no tribunal máximo. Decisões individuais menos justas poderão ser revistas pelos colegas. Mas isso nos remete à outro problema brasileiro: o excesso de recursos e causas que chegam semanalmente ao STF. Em um tribunal "afogado" por processos é impossível o exercício dessa vigilância mútua. Daí, a necessidade de se livrar o STF da imensa carga atual. Com menos processos em pauta, eventuais excessos de um ou alguns de seus componentes poderiam ser neutralizados, com dispensa de qualquer escuta telefônica, em um tribunal de deve estar acima de qualquer suspeita.
Voltando ao enfoque da Abin, aguardemos as investigações. Há, obviamente, como foi dito, o perigo de uma "armação" concebida para desmoralizar a investigação. Na CPI das Escutas Clandestinas, um banqueiro acusado disse ter ouvido do delegado Protógenes Queiroz a espantosa "confissão" de que o filho do presidente Lula também seria investigado. Essa declaração tem toda a aparência de não verdadeira. Somente um delegado muito inexperiente - e além disso pouco inteligente - diria à pessoa investigada, suspeita, que iria investigar, "prejudicar", o filho do presidente da república.
Um delegado de inteligência normal poderia dizer isso à sua esposa - se nela confiasse muito - mas nunca a um indiciado, um "inimigo", um possível criminoso, porque ele poderia usar essa indiscrição para envenenar o relacionamento do delegado com o próprio Presidente da República. Tancredo Neves dizia que esperteza demais é contraproducente. No caso, um indício de algo arquitetado.
Uma coisa, porém, é certa: logo, logo, escutas telefônicas serão inúteis. Somente relaxados marginais, com ou sem gravata, terão a audácia, ou "burrice" de conversar assuntos comprometedores pelo telefone. Com ou sem Polícia Federal, ou Abin, já é perigoso trocar confidências pelo fio. Detetives particulares e "curiosos" de toda ordem podem estar nos ouvindo. Dispensam autorização judicial. O mundo torna-se cada vez mais transparente, o que, no fundo, talvez seja mais benéfico que maléfico. Pequenas cidades do interior são, presumo, mais virtuosas que as grandes. O receio da descoberta diminui o nível de nossas más-tendências.
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*Desembargador aposentado do TJ/SP e Associado Efetivo do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo
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