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Subtração de órgãos e tecidos humanos

Já foram divulgadas pela imprensa as primeiras notícias envolvendo desvio, foi assim que o noticiário tratou, de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. O progresso incessante das pesquisas médicas, a instrumentalização médico-cirúrgico, a formação de equipes altamente especializadas, a busca de novas alternativas para minorar, estabilizar e até mesmo curar muitas moléstias que afligem a humanidade, coloca em relevo o corpo humano, transformando-o numa fonte inesgotável de repositório de tecidos e órgãos.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Atualizado em 25 de agosto de 2008 14:07


Subtração de órgãos e tecidos humanos

Eudes Quintino de Oliveira Júnior*

Já foram divulgadas pela imprensa as primeiras notícias envolvendo desvio, foi assim que o noticiário tratou, de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. O progresso incessante das pesquisas médicas, a instrumentalização médico-cirúrgico, a formação de equipes altamente especializadas, a busca de novas alternativas para minorar, estabilizar e até mesmo curar muitas moléstias que afligem a humanidade, coloca em relevo o corpo humano, transformando-o numa fonte inesgotável de repositório de tecidos e órgãos. Um corpo humano doador e outro receptor, através do ato cirúrgico denominado transplante, que insere no organismo hospedeiro um órgão ou tecido doador. É a nova medicina que, se de um lado surge como destruidora de um órgão doente, de outro, triunfante na sua funcionalidade, ressurge com substitutiva e reconstrutiva.

A primeira leitura que se faz da "feitura" do ser humano, vem do relato bíblico:

"Então o Senhor Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este adormeceu: tomou uma de suas costelas, e fechou o lugar com carne. E com a costela que o Senhor Deus tomara ao homem, fabricou uma mulher, e lha trouxe".1

O verbo construir empregado pelo autor bíblico chega a ser um pouco severo, assim como sem explicação científica a utilização da costela para fazer nascer outro ser humano, mas por ser uma obra divina, a aceitação é indiscutível. A explicação provável foi dada por Heinrich Krauss:

"Na utilização de "costela" como matéria prima ocorre, possivelmente, um trocadilho que se perdeu já na língua hebraica (e nas línguas modernas), mas na forma primitiva da história foi mantida. Na escrita cuneiforme suméria, o sinal para "costela" é idêntico ao da "vida".2

Poder-se-ia aproximar-se do pensamento de Mary Shelley, criadora de Frankenstein,3 obra escrita entre 1816-1817, apesar de ser batizada como gênero de horror, relata a "construção" de um ser humano, mal sucedida por sinal, porque o criador busca a morte da criatura.

Nem Aldous Huxley4, na obra publicada em 1932, que narra o futuro hipotético onde as pessoas são pré-condicionadas biologicamente, chegou a cogitar a respeito da utilização de órgãos humanos para atingir a perfeição de seus personagens. O muito que alcançou foi a descoberta da droga "soma", que conferia conforto aos cidadãos estressados e depressivos, supõe-se na leitura atual.

Sem falar ainda do visionário Júlio Verne, conhecido pelas suas aventuras e descobertas científicas. Viajou para a lua, para o fundo do mar em submarino nuclear, deu a volta ao mundo em oitenta dias e nem chegou a cogitar a respeito da reposição de órgãos humanos. Isto tudo em 18655.

Mas, Machado de Assis, cujo centenário de morte comemora-se este ano, com sua sensibilidade descritiva aguçada, mestre da observação psicológica, romântico e parnasiano-realista, fez uma incursão na área do xenotransplante6. Pela experiência narrada, Stroibus e Pítias, dois amigos filósofos e cientistas descobriram que se a pessoa ingerir o sangue do rato irá tornar-se ratoneiro, da coruja, sábia, da aranha, arquiteta, da cegonha, andorinha, viajante, da rola, fidelidade conjugal, do pavão, vaidade. Tomaram o sangue do rato. Foram presos na corte de Ptolomeu e condenados à morte.

A corporeidade vem a expressar a realidade singular do homem. É ele proprietário de um patrimônio chamado corpo humano, detentor de seus atos, administrador deste inesgotável latifúndio, que vem revestido de uma tutela especial que lhe confere personalidade e o torna sujeito de direitos e obrigações. Ao mesmo tempo em que é um patrimônio individualizado, carrega a semente universal, que irá proporcional a continuidade da humanidade. Numa expressão mais adequada e atendendo ao conceito hodierno do "homem-corpo", pode-se dizer que "... por corpo entendemos aquela dimensão do Homem em cuja base ele se institui no quadro dos entes empíricos. Neste sentido, ele é algo que se pode observar e algo que pode ser alvo de experiências, quer na sua estrutura, quer no seu comportamento. Entenda-se bem: não se trata de uma colocação local, extrínseca, mas radical e original, na qual se define a sua origem e constituição, a sua manutenção, o seu declínio e o seu fim".7

Sem se esquecer dos ensinamentos de Aristóteles que dedicou grande parte de suas obras à biologia e acrescentou, junto ao corpo, a figura da alma humana, que passa a ser a forma do corpo, querendo afirmar que a alma não pode existir independentemente da matéria. "O corpo ao qual a alma dá forma não é, entretanto, uma matéria qualquer; ele é forma em relação aos tecidos e aos órgãos, sem os quais não seria esse "corpo organizado que tem a vida em potência", ao qual a alma, que é o coroamento de uma hierarquia de formas, vem a dar a vida em ato".8

O Código Civil brasileiro (clique aqui), no capítulo que trata dos direitos da personalidade, traz em seu artigo 13 e parágrafo único a seguinte regra:

Art. 13. "Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes".

Parágrafo único. "O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial".

Na seqüência, o legislador civil, introduzindo conceitos ditados pela biotecnociência e biotecnologia, como se fosse o Estado o co-proprietário do corpo humano, e, na realidade o é, pois fixa as normas permissíveis, não irá permitir, por exemplo, que o cadáver seja inumado no quintal da casa, como faziam os romanos para cultuar seus antepassados, autoriza a disposição do próprio corpo post mortem, nos seguintes termos:

Art. 14. "É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte".

Parágrafo único. "O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo".

A Lei nº. 9.434/97 (clique aqui), que trata da remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano em vida ou post mortem para fins de transplante, acrescenta-se ainda que é a norma que define o diagnóstico de morte encefálica, permite a disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo, desde que a pessoa seja juridicamente capaz. Se incapaz, deverá contar com a autorização de ambos os pais ou seus responsáveis legais.

A Lei nº. 8.501/92 (clique aqui), por sua vez, traça regras a respeito de cadáver não reclamado junto às autoridades públicas, no prazo de trinta dias, destinando-o às escolas de medicina, para fins de ensino e de pesquisa de caráter científico.

A doação de órgãos e tecidos no Brasil é feita inter vivos, modalidade em que qualquer pessoa capaz poderá consentir, na impossibilidade, seu representante legal, desde que se trate de órgãos duplos (rins, por exemplo) ou partes renováveis do corpo humano, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge, parentes consangüíneos até o quarto grau, ou qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. Sempre e sempre título gratuito, em razão do disposto no artigo 199 $ 4.º da Constituição Federal (clique aqui) e da Lei 9.434/97, em seu art. l.º.

A doação post mortem, por seu turno, será efetivada com a autorização do cônjuge ou parente capaz, da linha reta ou colateral até o segundo grau, exigindo a lei que a equipe médica responsável declare a morte encefálica do paciente, em razão da cessação das células responsáveis pelo sistema nervoso central. Permanece, no entanto, o batimento cardíaco, imprescindível para a retirada de órgãos ou tecidos. A Lei n.º 9.434/97 definiu o conceito de morte, ajustando-o à falência encefálica e não à vida biológica, regida pelo batimento cardíaco. Os românticos antigos levavam a mão no peito para vigiar as batidas do coração. Hoje, impera o racionalismo. Sem atividade encefálica, não há vida. De nada adianta, portanto, o pulsar do coração se a vida já abandonou o corpo.

Em ambas as situações, exige a lei que o ato seja representativo da solidariedade humana, revestido sempre de gratuidade. Do contrário, estaria aberta a possibilidade de se realizar comércio com órgãos e tecidos humanos, fazendo com que muitos dos chamados investidores sejam atraídos pela banalização do ser humano. Às vezes, vê-se anúncio em jornais em que uma pessoa coloca à venda, alegando estado de necessidade financeira, um de seus rins, deixando o endereço para a negociação. Cogitou-se, através de projeto legislativo, possibilitar ao presidiário servir de doador de órgãos e em troca receberia comutação de sua pena, São situações que confrontam com o princípio ético que reveste o ser humano na sua dignidade e desprestigiam a própria raça humana. O homem continua sendo lobo do próprio homem, na expressão de Thomas Hobbes9.

A rigorosa exigência legislativa tem seu fundamento no controle do procedimento médico, que com base do princípio da Justiça, proporciona a qualquer pessoa o direito de receber órgãos ou tecidos humanos, independentemente de sua situação financeira. Do contrário, somente os favorecidos teriam acesso ao procedimento regenerativo. Mesmo assim, com tamanha rigidez, o sistema vem sendo burlado e órgãos sãos desviados para pessoas que não se encontram listadas, ou, se inscritas, não ocupam lugar de preferência.

Para as pessoas leigas, o ato, por si só, de desviar órgãos humanos, constitui crime de furto. O verbo subtrair fala mais alto e dá conta da realização típica da conduta. Ocorre, no entanto, que o tipo penal faz referência a "coisa alheia móvel" e, principalmente que seja bem circulante no comércio, com valor estipulado pelas regras da oferta e procura. O órgão humano é bem extra commercium, insusceptível da realização da conduta típica descrita pelo legislador penal. Atípica, portanto, a conduta.

Desloca-se, então, para fins de adequação típica, para o ilícito previsto no artigo 211 do Código Penal (clique aqui), in verbis:

Art. 211 "Destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele".

Parte do corpo humano vem a se aquela destacada da parte principal, mas que continua ainda sob a propriedade de seu titular, a quem caberá consentir na realização da doação. "Portanto, salienta Maria Helena Diniz, é possível juridicamente a disposição gratuita do corpo humano, renováveis (leite,e sangue, medula óssea, pele, óvulo, esperma, fígado) ou não, para salvar a vida ou preservar a saúde do interessado ou de terceiro ou para fins científicos ou terapêuticos."10

Ocorre que o tipo penal sub studio, remanescente que é da própria origem do Código, tem o elemento subjetivo direcionado para o dolo genérico, consistente em praticar ação que constitui a materialidade do delito, sendo irrelevante o fim pretendido pelo agente. A classificação legal, desta forma, rejeita também a norma do artigo 211 do Código Penal.

A Lei nº. 9.434/97, que cuida da disposição de tecidos e órgãos do corpo humano, traz elencados nos artigos 14 a 20 vários tipos penais referentes a condutas relacionadas com remoção, compra, venda, transporte, guarda ou distribuição de órgãos humanos, assim como realização de transplante ou enxerto sabendo que as partes do corpo humano foram obtidas em desacordo com o dispositivo da lei.

Na realidade, com uma linguagem mais apropriada, o legislador desconfigurou o verbo subtrair, ligado diretamente a um bem com valor econômico e o substituiu por um outro, mais técnico e específico para a atividade ilícita, que é o ato de remover. A origem etimológica dá o sentido de mover para trás, quer dizer, ajeitar para retirar algo de algum lugar, tirar, pegar, suprimir, apartar.11

Por se tratar de uma lei especial, cuidando especificamente de uma conduta humana, há relação de especialidade e, conseqüentemente, a lei especial afasta a incidência da norma geral. É a regra "lex specialis derrogat lex generali". O novo tipo penal passa a ser mais completo e atende prontamente a necessidade legal. "Considera-se especial, adverte e ensina Francisco de Assis Toledo, (lex specialis) a norma que contém todos os elementos da geral (lex specialis) e mais o elemento especializador. Há, pois, em a norma especial um plus, isto é, um detalhe a mais que sutilmente a distingue da norma geral".12

O próprio Código de Ética Médica, em seu artigo 75, veda ao médico "participar direta ou indiretamente de comercialização de órgãos ou tecidos humanos".13 Compreende este dispositivo o ato cirúrgico da remoção.

Parece-me que, desta forma, para o ilícito que se pretende perquirir, relacionado com a remoção de órgãos humanos, a lei especial traz com sobras definições e condutas tipicamente adequadas, ajustando-se ao pensamento da biotecnologia atual.

O fato narrado pelo noticiário encontra ajustamento típico na legislação penal. Demonstra o interesse desmedido pelos órgãos, tecidos e partes do corpo humano, que, colocados no mercado, atingem considerável soma em dinheiro. É uma verdadeira empreitada criminosa, conta com a participação ativa de alguns profissionais da saúde que deveriam zelar de forma eficiente pelo processo de captação e inserção dos órgãos, obedecendo, rigorosamente, a listagem dos que se encontram na fila há muito tempo aguardando o procedimento e, com preferência, aqueles em situação mais precária de saúde.

O ato de doar transcende a própria pessoa humana. Tanto é verdade que, na doação post mortem é vedado escolher o beneficiário. Pode ser qualquer pessoa, desde que figure na lista de espera, inclusive seu inimigo. Aí reside a grandeza do ato. A intermediação desconfigura a espontaneidade e transforma o corpo humano em coisa negociável no mercado, cantochão da mediocridade humana.

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1 Gn 2:21-22.

2 Krauss, Heinrich. O Paraíso: de Adão e Eva às utopias contemporâneas; tradução Mário Eduardo Viaro. - São Paulo: Globo, 2006, p.35.

3 Frankestein; or the Modern Prometeus, no original em inglês.

4 O Admirável Mundo Novo, Brave New World no original em inglês.

5 Três do extenso legado do autor: Viagem ao Centro da Terra, Vinte Mil Léguas Submarinas e A Volta ao Mundo em 80 dias.

6 Xenotransplante vem a ser a transferência de órgão ou tecido animal para o ser humano. O fato é narrado no Conto Alexandrino, escrito em 1884.

7 Dicionário de Bioética. Editorial Perpétuo Socorro. Editora Santuário, sob a direção de Salvino Leone, Salvatore Privitera e Jorge Teixeira da Cunha para a edição em língua portuguesa, agosto 2001, p. 207.

8 Dicionário dos filósofos. Diretor de publicação Denis Huisman. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.69.

9 Homo homini lúpus, citação contida na obra Leviatã, Hobbes imagina o homem como um animal irriquieto, em pé de guerra contra todos.

10 Diniz MH. O Estado Atual do Biodireito. 3. Ed. São Paulo. Editora Saraiva, 2006, p. 309

11 Verbo latino removeo, removere.

12 Toledo, Francisco de Assis, Princípios básicos de direito penal. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 51.

13 Resolução CFM n.º 1.246, de o8 de janeiro de 1988.

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*Advogado, Reitor da Unorp





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