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Um novo e democrático Tribunal do Júri (Final)

O art. 4º da Lei nº 11.689, de 9 de junho de 2008, revogou o Capítulo IV, do Título II, do Livro III, do Código de Processo Penal, que dispunha sobre o protesto por novo júri (arts. 607 e 608). Apesar de algumas críticas, a orientação do legislador tem recebido o apoio de muitos profissionais do foro criminal em geral e dos militantes do Júri em particular. Trata-se de uma imposição dos tempos modernos e da necessidade de se aplicar a pena justa ao caso concreto.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Atualizado em 12 de agosto de 2008 12:37


Um novo e democrático Tribunal do Júri (Final)

René Ariel Dotti*

1. A eliminação do protesto por novo júri

O art. 4º da Lei nº 11.689 (clique aqui), de 9 de junho de 2008, revogou o Capítulo IV, do Título II, do Livro III, do Código de Processo Penal (clique aqui), que dispunha sobre o protesto por novo júri (arts. 607 e 608). Apesar de algumas críticas, a orientação do legislador tem recebido o apoio de muitos profissionais do foro criminal em geral e dos militantes do Júri em particular. Trata-se de uma imposição dos tempos modernos e da necessidade de se aplicar a pena justa ao caso concreto.

Reproduzo o artigo publicado no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) em setembro de 2006, ("A inutilidade do protesto por novo júri"), bem antes da edição da Lei nº 11.689/08.

"1. Em notável síntese, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) definiu: "A lei é a expressão da vontade geral" (art. 6º). E a Constituição francesa de 1793 ampliou o conceito para declarar: "A lei é a expressão livre e solene da vontade geral; é a mesma para todos, quer proteja quer castigue; não pode ordenar senão o que for justo e útil para a sociedade; e só pode proibir o que lhe for prejudicial" (art. 4º).

"2. Estas observações vêm a propósito do recente julgamento pelo Tribunal do Júri paulista dos irmãos Daniel e Cristian Cravinhos de Paula e Silva que, juntamente com Suzane Louise von Richthofen, praticaram homicídio triplamente qualificado (CP, art. 121, § 2º, I, III e IV) contra os pais desta, Manfred e Marisia von Richthofen. A acusação ainda atribuiu aos réus o crime de fraude processual (CP, art. 347, parág. ún.). Em relação a Cristian houve também a imputação de furto (CP, art. 155, caput). O concurso de crimes foi de natureza material (CP, art.69).

"3. O processo teve ampla repercussão nacional desde a comprovação da autoria dos delitos e suas deploráveis circunstâncias, cuja reprovabilidade foi ampliada em face do relacionamento entre acusados e vítimas e a inovação artificiosa de lugar, pessoa e coisa com o propósito de induzir em erro a perícia com a encenação de que teria ocorrido latrocínio.

"O interesse público em acompanhar os debates e a decisão do tribunal popular foi intenso. A convicção generalizada acerca da culpabilidade dos réus levou uma infinidade de cidadãos a opinar sobre a quantidade das penas de prisão que deveriam ser aplicadas. A imprensa noticiou que o Promotor de Justiça iria pleitear, para cada réu, o total de 50 (cinqüenta) anos. Também o interesse privado na punição ficou caracterizado pela assistência do Ministério Público, representada pelo criminalista Alberto Zacharias Toron.

"4. O Júri admitiu a ocorrência dos homicídios qualificados, a fraude processual e o furto. Daniel foi condenado a 39 anos e 6 meses de reclusão; Cristian recebeu a pena de 38 anos e 6 meses e Suzane 39 anos e 6 meses.

"Na individualização das penas para os crimes de morte, o magistrado aplicou a Daniel e Suzane 19 anos e 6 meses enquanto Cristian foi apenado com a reclusão de 18 anos e 6 meses. Tais penas foram somadas pelo número de vítimas e os demais delitos.

"5. A previsão legal de 12 a 30 anos para cada homicídio qualificado certamente implicaria na fixação superior a 20 anos pela ocorrência das qualificativas de intensa reprovabilidade: motivo torpe, recurso que impossibilitou a defesa das vítimas e meio cruel. Mas o obstáculo para a imposição da pena justa foi a regra do art. 607 do Código de Processo Penal que prevê a realização de um novo - e automático - julgamento quando a sentença for de reclusão por tempo igual ou superior a 20 anos.

"6. O critério pragmático do Juiz e que constitui rotina em casos idênticos - como o do jornalista Pimenta Neves, condenado a 19 anos, 2 meses e 12 dias - jamais é compreendido pela sociedade. Principalmente quando órgãos destacados da mídia nacional espalharam a equivocada e sensacionalista informação de que os réus poderiam obter a liberdade antes de cumpridos 8 anos de prisão, diante da revogação da norma que vedava a progressão do regime de execução da pena em crime hediondo. É elementar que a repulsa popular contra os autores dos delitos tão graves foi um combustível ideal para a fogueira da descrença na justiça criminal. Os meios de comunicação omitem que após o cumprimento de uma parte da pena em regime fechado o condenado permanece preso em estabelecimento de regime semi-aberto. E que a transferência não é automática; depende do bom comportamento carcerário.

"7. Em 1992, o Ministério da Justiça e a Escola Nacional da Magistratura instituíram comissões de juristas para propor a simplificação dos códigos de Processo Civil e Penal1. Em relação ao processo penal, o presidente das comissões, Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, criou um grupo sob a coordenação do Professor Luiz Vicente Cernicchiaro. Como um de seus membros, ao lado de ilustres colegas2, tive a honrosa atribuição de elaborar um anteprojeto de reforma dos procedimentos do Tribunal do Júri. E, em separado, apresentei a proposta de supressão do recurso de protesto por novo júri (CPP, arts. 607 e 608). A matéria foi objeto do Projeto de Lei nº 4.900, de 1995, que após ter recebido parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, foi retirado pelo Ministro da Justiça, Nelson Jobim3. No entanto, em janeiro de 2000, o seu sucessor, Ministro José Carlos Dias, formulou convite ao Instituto Brasileiro de Direito Processual para prosseguir nos trabalhos. E, não obstante a renúncia ao cargo do ilustre criminalista, os esforços prosseguiram sob a liderança do Ministro José Gregori que encaminhou ao Congresso Nacional 17 projetos de reforma. O disegno di legge relativo ao Tribunal do Júri tomou o número 4.203/2001 e foi objeto de acuradas observações do Professor Gustavo Henrique Badaró.4

"8. Há vários projetos de lei em andamento visando a revogação dos arts. 607 e 608 do CPP. O mais recente, de autoria do Deputado Elimar Máximo Damasceno (nº 5.815, de 2005), foi apensado ao de número 2.701/2003, por tratar da mesma matéria.

"Antonio Carlos da Ponte sustenta, à base de uma visão histórica e da realidade, que a manutenção desse recurso "afronta a mais comezinha noção de interesse público" além de criar desigualdades entre situações que deveriam ter o mesmo tratamento, como as condenações por latrocínio ou extorsão mediante seqüestro com o resultado morte. E aplaude a orientação do projeto em abolir o vetusto protesto por novo julgamento.5

"Historicamente, o protesto se impunha em face do Código Criminal do Império (1830) cominar a pena de morte, justificando a revisão obrigatória do julgamento. Nos tempos modernos, a supressão já foi sustentada por Borges da Rosa e pelo mais fervoroso defensor do tribunal popular: o magistrado Magarinos Torres que, presidindo durante tantos anos o Conselho de Sentença, averbou este recurso de supérfluo e inconveniente.6

"Quanto ao aspecto da pena justa, forçoso é reconhecer que embora condenados por homicídio com mais de uma qualificadora, muitos réus são beneficiados com a pena de reclusão inferior a 20 anos. Tal estratégia tem o claro objetivo de impedir o novo Júri que se realizará mediante simples petição"7.

2. A mudança do eixo de rotação do procedimento

Os estudiosos do processo penal brasileiro que estão comentando o novo sistema legal devem ter presente a noção de que a Lei nº 11.689/08 promove uma verdadeira revolução no procedimento do Tribunal do Júri. É a mudança do eixo de rotação que tinha como fato processual corriqueiro a prisão do réu durante as fases de instrução judicial e do julgamento pelo tribunal popular.

Com efeito, a redação original do art. 312 do Código de Processo Penal, estabelecia:

"A prisão preventiva será decretada nos crimes a que for cominada pena de reclusão por tempo, no máximo, igual ou superior a dez anos".

A conseqüência dessa imposição legal era a ordem de prisão do acusado com o simples despacho que recebia a denúncia. A motivação se restringia à existência da prova de materialidade e indícios suficientes de autoria. Em síntese: para todos os casos de homicídio doloso, consumado ou tentado, a medida hoje excepcional era a regra na época. A propósito, o comentário de Câmara Leal:

"O novo Código introduziu uma grande inovação no capítulo da prisão preventiva, tornando-a obrigatória nos crimes cuja pena máxima é igual ou superior à reclusão por dez anos. Nesses casos, não fica ao arbítrio do juiz decretá-la ou não. A lei lhe impõe o dever de determiná-la".8

Um dos ardorosos críticos daquela orientação era o saudoso mestre José Frederico Marques. Vale reproduzir suas palavras:

"A prisão preventiva compulsória é um dos exemplos desse autoritarismo processual que devemos à política direitista do Estado Novo. Transladada do processo penal italiano da era de Mussolini, essa medida de coação é de profunda iniqüidade e pode dar margem à prática de irreparáveis injustiças".9

Aquele dispositivo foi alterado pela Lei nº 5.349, de 3 de novembro de 1967, que lhe deu a seguinte redação:

"A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal quando houver prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria".

Atualmente, por força da Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, aos fundamentos já indicados no art. 312 foi acrescido o da ordem econômica.

Outro exemplo da obrigatoriedade da prisão provisória decorria da decisão de pronúncia. O § 1º do art. 408, em sua redação primitiva, estabelecia:

"Na sentença de pronúncia o juiz declarará o dispositivo legal em cuja sanção julgar incurso o réu, mandará lançar-lhe o nome no rol dos culpados, recomenda-lo-á na prisão em que se achar, ou expedirá as ordens necessárias para a sua captura".

Mas a Lei nº 5.941 (clique aqui), de 22 de novembro de 197310, renumerou o § 2º do art. 408 e, em seu lugar, acrescentou:

"Se o réu for primário e de bons antecedentes, poderá o juiz deixar de decretar-lhe a prisão ou revoga-la, caso já se encontre preso".

Sob a vigência dos dispositivos que impunham compulsoriamente a prisão provisória (preventiva ou de pronúncia) o réu era intimado dos atos processuais sem dificuldade por se encontrar preso. No entanto, após a vigência das Leis nº. 5.349/67 (clique aqui) e nº. 5.941/73, houve mudança no eixo de rotação do procedimento: a liberdade passou a ser a regra. Com os problemas decorrentes da citação do réu para responder à ação penal ou para ser intimado da pronúncia, o processo paralisava e a prescrição surgia freqüentemente.

O novo procedimento, ao estabelecer que o julgamento poderá ocorrer sem a presença do réu solto desde que tenha sido intimado, faz desaparecer aquela causa determinante da prescrição.

3. Uma opinião valiosa

Em artigo publicado no Boletim do IBCCrim, o Desembargador Rui Stoco observa:

"Felizmente, após mais de meio século de lutas e tentativas logrou-se por a lume, através da Lei nº 11.689, de 9 de junho de 2008, um sistema de julgamento dos crimes dolosos contra a vida que assegura, verdadeiramente, um julgamento bem mais célere e justo, assegurando ao acusado os princípios constitucionais que devem nortear o processo". ("Garantias asseguradas nos julgamentos de processos de competência do Tribunal do Júri - A Constitucionalização do processo penal", Boletim nº 188, julho de 2008, p. 28).

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1 Portaria nº 145, do Ministro da Justiça, CÉLIO BORJA.

2 Sobre a criação e os trabalhos das Comissões originárias (Redação e Revisão) e da Comissão posterior, instituída pelo Ministro JOSÉ CARLOS DIAS e coordenada pela Professora ADA PELLEGRINI GRINOVER, ver o meu artigo "A reforma do procedimento do Júri", em Tribunal do Júri - Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira, coordenação de Rogério Lauria Tucci, São Paulo: RT, 1999, p. 290 e s.

3 Cf. a Exposição de Motivos do MJ nº 237, de 16.05.1996.

4 FERRARI, Eduardo Reale. Código de Processo Penal - Comentários aos projetos de reforma legislativa, Campinas: Millenium Editora Ltda, 2003, p. 167 e s.

5 "A evolução do protesto por novo Júri no direito brasileiro", em RT 726/483 e s.

6 Estes mestres do processo penal são referidos por ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1955, VI/217.

7 Boletim nº 166, p. 4.

8 CÂMARA LEAL, Antonio Luiz da. Comentários ao Código de Processo Penal, Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1942, vol. II, p. 267.

9 Estudos de Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 227.Uma excelente atualização dessa notável obra foi feita por Ricardo Dipp e José Renato Nalini, edição da Millenium, 2001.

10 A Lei ficou conhecida como "Lei Fleury" por beneficiar um delegado de Polícia pronunciado como responsável por crimes de homicídio praticados pelo malsinado Esquadrão da Morte, um braço do regime militar dos anos 60/70.

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*Advogado do Escritório Professor René Dotti









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