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Emprego de algemas: uso e abuso

Ricardo Cardozo de Mello Tucunduva

Privar alguém da liberdade, no nosso país, sempre foi medida excepcional. A partir de 1500 e durante os mais de 300 anos do período histórico chamado Brasil Colônia, vigiam aqui as Ordenações, mesma Lei de Portugal. Naquela época, as pessoas de destacada posição social, só podiam ser "presos em ferros" excepcionalmente.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Atualizado em 6 de agosto de 2008 14:45


Emprego de algemas: uso e abuso

Ricardo Cardozo de Mello Tucunduva*

Privar alguém da liberdade, no nosso país, sempre foi medida excepcional. A partir de 1500 e durante os mais de 300 anos do período histórico chamado Brasil Colônia, vigiam aqui as Ordenações, mesma Lei de Portugal. Naquela época, as pessoas de destacada posição social, só podiam ser "presos em ferros" excepcionalmente.

Em outras palavras, a Lei brasileira sempre estabeleceu limites para o uso de ferros, dada a óbvia necessidade de se encontrar o ponto de equilíbrio entre a preservação dos direitos sociais, ameaçados pelos delinqüentes, e a dos direitos individuais, quer dizer, os direitos dos próprios transgressores.

Hoje em dia, o uso de ferros se restringe ao emprego de algemas. Foram abolidos, a partir de meados do Século XIX, a calceta no pé, a corrente de ferro, permitidos pelo Código Penal de 1830, até mesmo em relação aos escravos. Um decreto imperial de 1871 proibiu o deslocamento de presos "com ferros, algemas ou cordas, salvo o caso extremo de segurança, que deverá ser justificado pelo condutor".

O Código Penal de 1890, a Consolidação das Leis Penais de 1932 e o Código Penal vigente (clique aqui) não trataram do assunto. No Estado de São Paulo, o Decreto nº 4.405-A, de 17 de abril de 1928, que instituía o Regulamento Policial, estabelecia que só excepcionalmente, por questões de segurança, no preso poderiam ser empregados "ferros, algemas ou cordas", sendo que o condutor, no caso de abuso, poderia ser multado, pela autoridade a quem fosse apresentado o preso.

Nos dias de hoje, porque é letra morta o disposto pelo artigo 199, da Lei de Execução Penal (nº 7.210/84) (clique aqui), que há quase um quarto de século previa que o assunto deveria ser disciplinado por Decreto Federal, podemos dizer que o uso de algemas está indiretamente regulado pelos artigos 284 e 292, do Código de Processo Penal, e pelos artigos 234 e 242, do Código de Processo Penal Militar (clique aqui). É bom frisar que, no Estado de São Paulo, há ainda o Decreto nº 19.903, de 30 de outubro de 1950, que regula o tema, de forma explícita.

Muito embora possa parecer inútil lembrar, é claro que o emprego de algemas pressupõe que a prisão imposta a alguém seja legal, isto é, decorrente de flagrante delito ou de ordem judicial. Assim, prisão do tipo "para averiguações", e acompanhada de uso de algemas, constitui duplo abuso de autoridade, passível de punição, nos termos da Lei de Abuso de Autoridade (nº 4.898/65) (clique aqui).

Diante desses mandamentos legais, podemos concluir que são estas - e só estas - as hipóteses que permitem a utilização de algemas:

1. se o preso for de conhecida periculosidade;

2. se o preso oferecer resistência à prisão ou tentar fugir;

3. se terceiro oferecer resistência à prisão da pessoa que deva ser legalmente presa;

4. se o preso tentar agredir alguém ou lesionar a si próprio.

Essas mesmas regras devem ser obedecidas no caso de remoção de presos, para realização de trabalhos policiais ou judiciais aos quais eles devam estar presentes (como acareações, audiências, julgamento pelo Tribunal do Júri etc.). Aliás, a recente modificação no texto do Código de Processo Penal, que entrará em vigor no mês de agosto de 2008, faz referência expressa ao uso de algemas no plenário do Júri (artigo 474, parágrafo 3º).

Paralelamente, é bom anotar que o artigo 10, da Lei nº 9.537/97 (clique aqui), que trata da segurança do tráfego em águas sob a jurisdição nacional, permite que o comandante da embarcação ordene "a detenção de pessoa em camarote ou alojamento, se necessário com algemas, quando imprescindível para a manutenção da integridade física de terceiros, da embarcação ou da carga".

Mas, fora disto, quem tiver determinado, ou executado, o ato de algemar alguém, estará infringindo a Lei de Abuso de Autoridade, mais especificamente o seu artigo 4º, letra "b", que proíbe "submeter pessoa sob a sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei".

E, realmente, é preciso restringir ao máximo o emprego de algemas, porque a prática possui enorme carga negativa, derivada da idéia de desonra que transmite, coisa incompatível com a dignidade humana, que é direito fundamental de todos, segundo o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.

Em suma, o emprego de algemas não é regra, é exceção, e só pode ser admitido como forma de garantir a segurança social, a aplicação da Lei Penal e a integridade física dos que circundam a pessoa legalmente presa, ou a dela própria.

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*Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Professor da Academia de Polícia de São Paulo






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