Recursos especiais repetitivos (Lei 11.672/2008) e ações coletivas
O presente estudo versa sobre os recursos especiais repetitivos, na disciplina do art. 543-C do Código de Processo Civil, introduzido pela Lei 11.672, de 8 de maio de 2008. Mais precisamente, sobre a extensão e o alcance dessas novas regras e da respectiva regulamentação (Resolução nº 7 do STJ) nos processos que envolvem os chamados direitos transindividuais, de que tanto a lei quanto a resolução não tratam expressamente.
quinta-feira, 14 de agosto de 2008
Atualizado em 6 de agosto de 2008 14:17
Recursos especiais repetitivos (Lei 11.672/2008) e ações coletivas
Luiz Rodrigues Wambier*
Rita de Cássia Corrêa de Vasconcelos*
O art. 543-C disciplina o processamento dos recursos de competência do STJ fundamentados em idênticas questões de direito.
O § 1º desse novo dispositivo do CPC dispõe a respeito da competência do Presidente do Tribunal de interposição para admitir um ou mais recursos que representem a controvérsia, que serão encaminhados ao STJ, ficando suspensos os demais recursos até que este Tribunal emita pronunciamento definitivo a respeito da respectiva questão de direito. Assim, se houver múltiplos recursos a respeito da mesma questão de direito, devem ser selecionados um ou mais desses recursos, que melhor exponham a questão debatida, para serem julgados primeiramente pelo STJ. Essa decisão poderá, depois, ser aplicada aos recursos cujo processamento esteja suspenso por força da aplicação da lei. A intenção do legislador evidentemente foi a de acelerar o trâmite de recursos repetitivos dirigidos ao Superior Tribunal de Justiça, objetivando, como efeito secundário, diminuir o volume de recursos a esse Tribunal encaminhados.
A primeira grande questão que se põe à nossa reflexão diz respeito à identificação de questões substancialmente idênticas. Pode ocorrer que se dê a suspensão indevida de recurso que não trata exatamente da mesma questão de direito. Em que pese essa possibilidade concreta, e de sua potencialidade para causar dano à parte, não prevê a lei qualquer mecanismo processual de impugnação às decisões dos presidentes dos tribunais de origem. Do mesmo modo há omissão na Resolução nº 8 do STJ, de 7 de agosto de 20082, que trata dos procedimentos relativos ao processamento e julgamento de recursos especiais repetitivos.
Havendo omissão na Lei 11.672/2008, está-se diante de situação análoga à das decisões que aplicam o regime de retenção aos recursos especial e extraordinário, previsto no art. 542, § 3º, do Código de Processo Civil. Assim, é razoável que para a hipótese se adotem as mesmas soluções para obter o processamento imediato desses recursos, que oscilam na doutrina e na jurisprudência entre uma simples petição, ação cautelar e agravo de instrumento ao STJ. Evidentemente, a aplicação indevida do regime de retenção seria tão lesiva quanto negar seguimento aos recursos.
Não é sem propósito mencionar que, também em relação à situação da suspensão indevida dos recursos dirigidos ao Superior Tribunal de Justiça, poderia incidir quanto aos mecanismos de impugnação às decisões dos presidentes dos tribunais de origem, o princípio da fungibilidade, aplicável nos casos de retenção indevida dos recursos especial e extraordinário3.
Dispõe o § 2º do art. 543-C que, se o presidente do Tribunal de origem deixar de cumprir o previsto no § 1º, o Ministro relator poderá determinar que os recursos repetitivos fiquem suspensos, no segundo grau de jurisdição, ao constatar que já há jurisprudência dominante sobre a respectiva questão de direito, ou que tal questão já está afeta ao colegiado, ou seja, que já há, na Seção ou na Corte Especial, recurso especial selecionado para julgamento4.
O relator poderá solicitar informações aos tribunais locais, a respeito da controvérsia, que deverão ser prestadas no prazo de quinze dias (art. 543-C, § 3º).
Ainda entre as atribuições do Ministro relator, está a de admitir - respeitados os termos do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça - a manifestação de terceiros (pessoas, órgãos ou entidades) com interesse na controvérsia (art. 543-C, § 4º), bem como a de abrir vista ao Ministério Público, pelo prazo de quinze dias (art. 543-C, § 5º).
No STJ, o julgamento dos recursos selecionados terá preferência sobre os demais, com ressalva aos que envolvam réu preso e pedidos de habeas corpus (art. 543-C, § 6º). E, julgado o recurso escolhido, duas hipóteses se abrem, a teor do que dispõe a lei, para os recursos cujo trâmite ficou suspenso: 1ª) negativa de seguimento se o acórdão recorrido coincidir com a decisão do Superior Tribunal de Justiça (art. 543-C, § 7º, I); ou, 2ª) novo exame, pelo tribunal local, se o acórdão recorrido divergir da decisão do STJ (art. 543-C, § 7º, II). Na segunda hipótese, se o acórdão divergente for mantido pelo tribunal local, far-se-á o exame de admissibilidade do recurso especial para, se positivo, remetê-lo ao Superior Tribunal de Justiça (art. 543-C, § 8º).
A despeito do silêncio da lei quanto à recorribilidade das decisões tomadas com base no art. 543-C, § 7º, parece-nos que, na situação do inciso I, ou seja, negativa de seguimento ao recurso que estava suspenso, não se poderá negar o acesso à via recursal, cabendo a interposição de agravo de instrumento ao STJ (CPC, art. 544).5 Mesmo porque, é possível que se trate de hipótese em que não haja identidade entre a questão veiculada no recurso sobrestado e a que se julgou no recurso escolhido.
Na situação do inciso II do § 7º do art. 543-C, verifica-se situação idêntica à das hipóteses legais de juízo de retratação, uma vez que se permite, ao tribunal local, rever sua posição diante da orientação consolidada no Superior Tribunal de Justiça. A Resolução nº 8, anteriormente referida, dispõe, em seu art. 5º, inciso III, que depois de julgados os recursos especiais selecionados, os demais recursos, fundados em idêntica controvérsia, se sobrestados na origem, "terão seguimento na forma prevista nos parágrafos sétimo e oitavo do artigo 543-C do Código de Processo Civil". Prevê de forma indireta, portanto, o juízo de retratação pelo tribunal local, mas não o regula expressamente. A Resolução nº 7, por ela revogada, deixava clara a possibilidade de retratação ao dispor que competia ao órgão julgador competente no tribunal de origem "reconsiderar a decisão para ajustá-la à orientação firmada no acórdão paradigma", e afirmava ser "incabível a interposição de outro recurso especial contra o novo julgamento" (art. 10, inciso II).
Percebe-se que, diante da retratação, o Superior Tribunal de Justiça, num primeiro momento - com a Resolução nº 7 - havia obstado a possibilidade de a parte recorrida interpor recurso especial em face da nova decisão. Talvez percebendo que essa não seria a melhor solução, ao editar a Resolução nº 8, que revoga a anterior, não repetiu esse óbice. Em verdade, nada dispôs a respeito. Em nosso sentir, não poderá ser negado à parte recorrida, em razão da inversão de sua situação processual, o direito de interpor novo recurso especial, em que se poderá alegar, inclusive, que a questão debatida não é idêntica à que se decidiu no recurso escolhido para julgamento.6
A Lei 11.672/2008 previu, no art. 2º, a regulamentação dos procedimentos nela previstos, pelos tribunais de segundo grau e pelo próprio Superior Tribunal de Justiça. No âmbito do STJ, editou-se em primeiro lugar a Resolução nº 7, de 14 de julho de 2008, que estabelecia procedimentos relativos ao processamento e julgamento de recursos especiais repetitivos, e entraria em vigor em 8 de agosto de 2008. Em 7 de agosto de 2008, com a mesma finalidade e revogando a Resolução anterior, editou-se a Resolução nº 8, que entrou em vigor em 8 de agosto de 2008.
Essas Resoluções procuraram regular o que seriam os recursos "representativos da controvérsia" (CPC, art. 543-C, § 1º), que mereceriam encaminhamento imediato ao Superior Tribunal de Justiça.
No art. 1º, § 1º, a Resolução nº 8 (repetindo a disposição da Resolução nº 7) assim estabelece: "serão selecionados pelo menos um processo de cada Relator e, dentre esses, os que contiverem maior diversidade de fundamentos no acórdão e de argumentos no recurso especial" (grifamos). No § 2º do mesmo artigo, esclarece-se que se levará em consideração apenas a "questão central discutida"7.
Assim, objetivamente, a Resolução estabelece os critérios de escolha na Presidência dos tribunais locais. Era mesmo esperado que se dissesse que os recursos selecionados deveriam conter o maior número de fundamentos, para propiciar a mais plena compreensão da questão de direito neles versada.
Desse modo, devem ser selecionados os recursos que melhor retratarem a questão discutida, independentemente de as decisões recorridas serem num ou noutro sentido. Se houver acórdãos em sentidos opostos, devem ser selecionados recursos representativos em cada um dos sentidos, eis que a simples existência de decisões antagônicas no âmbito dos tribunais locais já traduz a diversidade de fundamentos a justificar a análise e julgamento pelo STJ. O que se espera dos Tribunais é que sejam enviados ao STJ os recursos que permitam, da forma mais ampla possível, o conhecimento completo da controvérsia havida nas instâncias ordinárias.
Registre-se que a Resolução nº 7, do Superior Tribunal de Justiça - diferentemente da Resolução nº 8, que a revogou - estendia a suspensão aos demais recursos e, também, aos processos em andamento no primeiro grau de jurisdição. Em seu art. 1º, § 3º, a Resolução previa que o presidente do tribunal, "em decisão irrecorrível" (art. 1º, § 1º), poderia estender a suspensão aos demais recursos, "julgados ou não, mesmo antes da distribuição". E, no § 4º do mesmo artigo, dispunha que, determinada tal suspensão, esta alcançaria "os processos em andamento no primeiro grau de jurisdição que apresentem igual matéria controvertida, independentemente da fase processual em que se encontrem". Ainda que no § 4º não se tenha feito menção expressa à irrecorribilidade da decisão, a referência ao parágrafo anterior levava a crer que se estaria, também aqui, diante de ato irrecorrível.
A Resolução nº 8, em vigor, felizmente não reproduziu essas regras, que certamente gerariam muita polêmica, em especial no tocante à irrecorribilidade das decisões. É inequívoco que a suspensão dos demais recursos, alcançando aqueles que sequer foram distribuídos e, também, os processos que tramitam no primeiro grau, poderia causar à parte lesão grave e de difícil reparação. Pense-se, por exemplo, em casos em que devam ser deferidas medidas de urgência, não se podendo aguardar o julgamento do recurso especial escolhido, ainda que isto se dê respeitando-se o princípio constitucional da duração razoável do processo (CF, art. 5º, LXXXVIII). A tutela de urgência, inclusive a antecipação da tutela recursal, deve ser concedida imediatamente, sob pena de se violar outra garantia constitucional: a da inafastabilidade do controle da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV).
Em boa hora, então, o Superior Tribunal de Justiça alterou a regra, antes presente na Resolução nº 7, que permitia que se ampliasse a suspensão ao ponto máximo de atingir os recursos ainda não distribuídos e aos processos que tramitam no primeiro grau de jurisdição. De qualquer modo, mesmo que assim não fosse (isto é, mesmo que a Resolução nº 7 não tivesse sido revogada), na hipótese de se ampliar - indevidamente - a suspensão, não poderia o Superior Tribunal de Justiça, em sede de Resolução, obstar a via recursal. Estar-se-ia, aqui, diante de outra situação em que, por não se prever mecanismo processual de impugnação, a parte poderia lançar mão do mandado de segurança.
Na mesma ordem de idéias, é oportuno registrar que, de certa forma complementando a disposição que suspendia os processos no primeiro grau de jurisdição, a - revogada - Resolução nº 7 previa, em seu art. 12, que os processos suspensos seriam decididos "de acordo com a orientação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, incidindo, quando cabível, o disposto nos artigos 285-A e 518, § 1º, do Código de Processo Civil". Nos termos desta disposição, o STJ conferia verdadeiro 'efeito vinculante' às decisões tomadas nos recursos especiais selecionados. A Resolução nº 8, em vigor, nada dispõe a respeito.
Para nós foi acertada a supressão dessa regra na nova regulamentação. A vinculação dos juízes de primeiro grau é ilegítima, pois a teor da regra constitucional, somente o STF pode editar súmulas vinculantes. Ainda que sem a força da súmula vinculante do STF, seria legítima a disposição revogada, se o STJ, logo após o julgamento, editasse súmula da jurisprudência dominante nessa Corte. Somente assim seria justificável - embora não obrigatória - a aplicação, pelos juízes de primeiro grau, das regras mencionadas, em especial a do art. 518, § 1º, que condiciona o não recebimento do recurso de apelação à circunstância de a sentença apelada estar em conformidade com súmula dos Tribunais Superiores.
De todos os aspectos de que trata essa última alteração do CPC, entendemos que o mais significativo é o que diz respeito à escolha dos recursos representativos da controvérsia. Passemos, então, a refletir sobre essa escolha nos casos de recurso especial interposto contra acórdão proferido em ação coletiva para, na seqüência, apontar qual deve ser, a nosso ver, o alcance das novas regras nestes processos.
Os direitos coletivos lato sensu, como já discorreu um dos autores deste texto8, situam-se num campo dos direitos que pertencem a todos, mas que não são públicos, no sentido tradicional desse vocábulo. São, isto sim, transindividuais ou metaindividuais, derivados da massificação da vida em sociedade e do surgimento de novas 'modalidades' de conflitos, em relação aos quais o sistema processual centrado na iniciativa exclusiva do titular do direito subjetivo não tem como fornecer respostas eficazes9. Esses direitos, que se desdobram em direitos difusos, direitos coletivos stricto sensu e direitos individuais homogêneos, poderão gerar idênticas questões de direito.
Quanto aos direitos difusos, pode ocorrer que os entes legitimados provoquem o Judiciário para solucionar questões que atingem toda a sociedade, fazendo-o de forma fracionada, em diferentes cidades do mesmo Estado da Federação, por exemplo. Ressalvadas eventuais peculiaridades regionais, que justificariam a propositura de diferentes ações coletivas num mesmo Estado da Federação, é forçoso reconhecer que a questão de direito versada em cada uma delas pode ser idêntica.
O mesmo acontece com os direitos coletivos em sentido estrito. É possível que sejam ajuizadas várias ações coletivas sobre a mesma questão jurídica, na defesa de direitos cuja titularidade pertença a grupo, categoria ou classe de pessoas unidas por uma relação jurídica base.
Não é diferente a situação em matéria de direitos individuais homogêneos. Aqui, a nosso ver de modo mais evidente, existe a possibilidade de várias ações coletivas serem ajuizadas para a tutela de direitos que, nos termos da lei, têm origem comum. Afinal, são direitos que admitem tratamento coletivo - desde que inequívoca sua homogeneidade -, mas poderiam ser tutelados através do processo civil individual, uma vez que se tratam dos mesmos direitos subjetivos individuais.
O tratamento coletivo não elimina, portanto, a possibilidade de vários legitimados ingressarem em juízo - em comarcas distintas - para veicularem idênticas questões de direito, respeitadas as regras de competência e os limites territoriais dos efeitos das decisões proferidas nas diferentes demandas10.
Sendo assim, havendo a possibilidade de existirem 'ações coletivas repetitivas', cumpre-nos enfrentar a questão da aplicabilidade da disciplina legal instituída pela Lei 11.672/2008, aos processos que versam sobre os direitos coletivos lato sensu.
Em primeiro lugar, indaga-se se deveriam os recursos especiais interpostos em face de acórdãos proferidos em ações coletivas, serem, somente por tal circunstância, selecionados para julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça. A resposta, para nós, é negativa. A situação de que ora se trata é diferente da regulada no art. 543-B, do Código de Processo Civil, que dispõe sobre o requisito da repercussão geral da questão constitucional, nos recursos extraordinários. Em relação à repercussão geral, um dos autores11 deste texto já defendeu que esse requisito deve ser pressuposto nas ações coletivas, pelo simples fato de serem coletivas. Os recursos especiais, diferentemente, não deverão ser selecionados simplesmente porque contidos em demandas de natureza coletiva, mas, tão somente, quando realmente "representativos da controvérsia", nos temos da nova lei.
Há que se atentar para os mesmos critérios de escolha concebidos pelo legislador (recursos representativos da controvérsia - art. 543-C, § 1º) e pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, na Resolução nº 8. Lembre-se que essa Resolução, em seu art. 1º, § 1º, estabeleceu como critérios a "maior diversidade de fundamentos no acórdão e de argumentos no recurso especial". Assim, mesmo em se tratando de ações coletivas, os recursos selecionados deverão conter o maior número de fundamentos para, como dissemos anteriormente, propiciar a mais plena compreensão da questão de direito neles versada.
Pensamos, no entanto, na hipótese de, a respeito da mesma questão de direito, haver um grande número de ações individuais e coletivas versando sobre idêntica questão de direito. Nessa hipótese, ainda que seja escolhido pelo tribunal local - ou afetado pelo Superior Tribunal de Justiça - um recurso de ação individual, deve também ser selecionado recurso interposto em ação coletiva, porque certamente conterá fundamentos que poderão enriquecer a discussão, sobretudo em relação à natureza do direito em exame.
Também nos preocupa a regra do § 2º do art. 1º, da Resolução nº 8, em que se esclarece que se levará em consideração apenas a "questão central discutida, sempre que o exame desta possa tornar prejudicada a análise de outras questões argüidas no mesmo recurso". É que, nas ações coletivas há muitas questões processuais relevantes, a ponto de justificarem, elas mesmas, a remessa do recurso especial para julgamento. É o caso da legitimação processual, da existência de litispendência ou conexão entre as demandas idênticas, ou, ainda, da restrição ou não dos limites territoriais da coisa julgada que se operou.
A solução para essa questão parece estar no próprio dispositivo acima transcrito. A contrario sensu, não se deve levar em consideração apenas a questão central discutida, se o exame desta não tornar prejudicada a análise de outras questões argüidas no mesmo recurso. Assim, deve-se levar em conta, para a escolha do recurso especial a ser encaminhado ao Superior Tribunal de Justiça, se de ações coletivas se estiver tratando, os argumentos e fundamentos relativos às questões processuais (até porque a questão central discutida poderá ser de natureza processual, como, por exemplo, a que diz respeito à legitimidade do proponente da ação coletiva) que estejam presentes concomitantemente com a questão central discutida (se, repita-se, a questão central não for de natureza processual), pois invariavelmente relevantes, como dissemos há pouco.
Essa é a razão pela qual entendemos que o sobrestamento de recursos interpostos em ações individuais não deverá atingir automaticamente todas as ações coletivas que tratem da mesma questão de direito. Em nosso sentir, deverá haver a escolha ou a afetação de recursos especiais, levando-se em conta as peculiaridades das questões neles versadas.
Entendemos, também, que se deve considerar, para a seleção dos recursos especiais a serem encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, outro fator relevante: a qualidade do ente legitimado que o interpôs. Deve o Presidente do Tribunal considerar o requisito da 'pertinência temática'12, pelo qual devem ser observadas condições para a atuação de algumas entidades e órgãos legitimados (associações, autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia mista e às entidades da administração pública direta ou indireta). Ocorre que, na prática, nem sempre se verifica a observância dessas condições - muitas vezes o próprio Judiciário desconsidera o requisito da pertinência temática - havendo um elevado número de ações coletivas ajuizadas por associações na defesa de interesses totalmente distintos de suas finalidades institucionais. É o caso, por exemplo, de associações constituídas para a defesa de interesses de donas de casa, de aposentados, e mesmo de consumidores a elas associados, que ingressam em juízo em face de instituições financeiras para defender supostos interesses de investidores em cadernetas de poupança.
Ainda que, objetivamente, haja a mesma 'quantidade de fundamentos' em todos os recursos, não faria sentido selecionar o que tenha sido interposto por uma associação - por exemplo - cujos fins institucionais não têm qualquer relação com o objeto tutelado. Certamente se espera do ente legitimado cujos fins institucionais incluam a própria defesa dos interesses e direitos tutelados na ação coletiva, que tenham melhores condições de desenvolver os fundamentos a serem analisados pelo Tribunal Superior.
Essa questão nos leva a refletir sobre outra previsão da nova lei, no sentido de que o Ministro relator, "considerando a relevância da matéria, poderá admitir manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia" (art. 543-C, § 4º). Nos termos da Resolução nº 8 do Superior Tribunal de Justiça, essa manifestação deverá ser escrita e prestada no prazo de quinze dias (art. 3º, inciso I).
As novas regras asseguram, assim, a intervenção do amicus curiae, a exemplo do previsto no § 6º do art. 543-A (que admite a manifestação de terceiros, limitada à análise da repercussão geral).
No entanto, uma vez que a lei não estabeleceu - e nem mesmo a Resolução - requisitos objetivos para a participação do terceiro, pensamos que poderão intervir aqueles que demonstrarem ser parte nos processos cujos recursos ficaram suspensos, pois poderão contribuir com outros subsídios para a solução da controvérsia.
É nesse sentido o entendimento de Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, para quem, "podem aqueles que são parte no processo em que há recurso sobrestado ter outros argumentos que justifiquem o acolhimento ou rejeição da tese veiculada, argumentos estes não levados em consideração nos recursos escolhidos e nas respectivas contra-razões"13. Já para Eduardo Talamini, para ser admitido como amicus curiae, não basta que o terceiro "apenas demonstre ser parte em outro processo em que há recurso sobre a mesma questão"; precisa ele comprovar que tem algum argumento útil e relevante para "acrescentar à discussão já instaurada"14.
Nosso entendimento é no sentido de não se restringir a manifestação de terceiros, nesse caso. Tal preocupação assume especial relevância em se tratando de ações coletivas. É que, como visto, no Brasil as regras que prevêem os legitimados ativos para as ações coletivas apresentam meramente condições (requisito da pertinência temática) para alguns dos legitimados. Em nosso ordenamento jurídico não há o instituto da 'representação adequada'15. No sistema das class actions, a representação adequada é requisito essencial para legitimar a propositura de ação coletiva pelos representantes dos titulares dos direitos transindividuais. Precisam esses representantes demonstrar que têm condições de, verdadeiramente, tutelar o direito coletivo veiculado na demanda, fazendo-o da maneira mais eficiente possível. Na lição de Antonio Gidi16, a finalidade desse requisito é "que o candidato a representante proteja adequadamente os interesses do grupo em juízo".
A adoção desse instituto, em nosso sistema processual coletivo, evitaria, por certo, que demandas coletivas fossem ajuizadas por quem não tem condições de bem conduzi-las, fazendo com que, pela deficiência na fundamentação e mesmo na produção de provas, venham a ser proferidas decisões que prejudiquem os titulares dos direitos em jogo. Enquanto isso não ocorre, especialmente nos processos coletivos há que se permitir sem muita restrição - repita-se - que terceiros intervenham antes do julgamento dos recursos especiais selecionados, no STJ, contribuindo com subsídios para a análise da questão jurídica. Esses terceiros poderão ser os outros legitimados que, a despeito de mais qualificados para a condução da ação coletiva, ou não a ajuizaram, ou tiveram sua ação extinta por litispendência, ou, ainda, não tiveram seu recurso especial escolhido para remessa ao STJ.
Há muitas questões capazes de nos desafiar a reflexão, e muito a ser debatido e solucionado pela doutrina e pela jurisprudência, sobre os temas aqui analisados. Mas, é possível afirmar, sem risco de erro, que a aplicação da nova disciplina legal deve ocorrer somente quando não houver dúvida de que se está tratando de questões de direito verdadeiramente "idênticas" (CPC, art. 543-C, caput), sob pena de se desvirtuar o sentido da lei e se incorrer em inconstitucionalidade por violação ao princípio do acesso à justiça.
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BIBLIOGRAFIA
GIDI. Antonio. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletivas em uma perspectiva comparada. São Paulo: RT, 2007.
GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Curso de Direito Processual Civil Coletivo. 2ª ed. São Paulo: SRS Editora, 2008.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Defesa do consumidor - reflexões acerca da eventual concomitância de ações coletivas e individuais. RT, v. 676.
SILVA, Edward Carlyle. A representação adequada nas ações coletivas. Revista direito em foco, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, jan. 2006.
TALAMINI, Eduardo. Julgamento de recursos no STJ "por amostragem" - Lei nº 11.672/2008. Migalhas nº 1898, artigo publicado em 15.05.2008.
VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de. Princípio da fungibilidade - hipóteses de incidência no processo civil brasileiro contemporâneo. São Paulo: RT, 2007.
WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentença civil: liquidação e cumprimento. São Paulo: RT, 2006.
WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova sistemática processual civil, v. 3. São Paulo: RT, 2007.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Sobre o novo art. 543-C do CPC - Sobrestamento de recursos especiais "com fundamento em idêntica questão de direito". RePro nº 159, no prelo.
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1A Lei 11.672, de 8 de maio de 2008, entrou em vigor em 8 de agosto de 2008 (90 dias após sua publicação), e o procedimento nela previsto aplica-se aos recursos já interpostos por ocasião de sua entrada em vigor (art. 2º).
2 A Resolução nº 8, de 7 de agosto de 2008, entrou em vigor em 8 de agosto de 2008, revogando a Resolução nº 7, de 14 de julho de 2008, que também estabelecia procedimentos relativos ao processamento e julgamento de recursos especiais repetitivos, e entraria em vigor também em 8 de agosto de 2008.
3 "(...) devem ser considerados pelos Tribunais, como adequados para promover o imediato processamento dos recursos especial e extraordinário interpostos contra acórdão proferido em agravo de instrumento, tanto a ação cautelar (recomendando-se, ante a urgência da medida pleiteada, que se admita o processamento da ação tanto no Juízo a quo quanto no órgão ad quem) quanto o recurso de agravo, uma simples petição ou mesmo o mandado de segurança, pois entre o cabimento desses meios vem oscilando, ao longo do tempo, o entendimento dos Tribunais Superiores". VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de. Princípio da fungibilidade - hipóteses de incidência no processo civil brasileiro contemporâneo. São Paulo: RT, 2007, p. 243.
4 Em relação à seleção do recurso especial, no Superior Tribunal de Justiça, a Resolução nº 8, de 7.8.2008, no art. 2º, §§ 1º e 2º, assim dispôs: "Art. 2º (...) § 1º - A critério do Relator, poderão ser submetidos ao julgamento da Seção ou da Corte Especial, na forma deste artigo, recursos especiais já distribuídos que forem representativos de questão jurídica objeto de recursos repetitivos. § 2º - A decisão do Relator será comunicada aos demais Ministros e ao Presidente dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais, conforme o caso, para suspender os recursos que versem sobre a mesma controvérsia."
5 Nesse sentido: TALAMINI, Eduardo. Julgamento de recursos no STJ "por amostragem" - Lei nº 11.672/2008. Migalhas nº 1898, artigo publicado em 15.5.2008.
6 Nesse sentido, em artigo publicado antes da edição das Resoluções 7 e 8, do Superior Tribunal de Justiça: TALAMINI, Eduardo. Julgamento de recursos no STJ "por amostragem" - Lei nº 11.672/2008. Migalhas nº 1898, publ. em 15.5.2008.
7 A revogada Resolução nº 7 dispunha que deveria ser levada em conta a apenas a "questão central de mérito" (grifamos).
8 WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentença civil: liquidação e cumprimento. São Paulo: RT, 2006, p. 293 e seguintes.
9 Cf.: MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Defesa do consumidor - reflexões acerca da eventual concomitância de ações coletivas e individuais. RT, v. 676, p. 38.
10 O art. 16 da Lei 7.347/1985, na redação que lhe foi dada pela Lei 9494/1997, estabelece o seguinte: "a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova" (grifamos). O exame da letra do referido dispositivo legal, permite que se extraia somente uma interpretação possível: proferida uma decisão judicial em ação civil pública, esta somente produzirá efeitos na 'comarca' de competência do juízo. Note-se que essa norma reduz significativamente a abrangência do disposto no art. 103 do Código de Defesa do Consumidor, que não estabelece limitação territorial ao alcance da decisão judicial, que produzirá efeitos erga omnes ou ultra partes, conforme o caso. Diante disso, e considerando que as duas leis citadas formam um micro-sistema destinado a regular as ações coletivas (conforme estabelecem o art. 21 da Lei 7.347/1985 e o art. 90 do CDC), pensamos que o citado art. 16, por ter sido alterado em época mais recente, restringiu também o disposto no art. 103 da Lei 8.078/1990 (CDC).
11 WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova sistemática processual civil, v. 3. São Paulo: RT, 2007, p. 246.
12 Para a atuação dos legitimados, nos processos coletivos, a própria legislação estabeleceu condições. No art. 5º da Lei 7.347/85 se exige, para a atuação das autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia, bem como das associações, que esteja incluída entre suas finalidades institucionais "a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico" (inciso II). Também o art. 82 do CDC estabeleceu como condição para a legitimidade das entidades e órgãos da administração pública direta ou indireta, que estejam esses entes "destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este Código" (inciso III). E, para as associações, que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo no Código de Defesa do Consumidor (inciso IV). Trata-se, portanto, da 'pertinência temática'. Para LUIZ MANOEL GOMES JUNIOR há duas classes de legitimados para a defesa dos direitos coletivos lato sensu: a dos "legitimados 'amplos', que não se sujeitam ao requisito da pertinência temática - Ministério Público e entes de Direito Público"; e a dos "legitimados 'restritos' que, de ordinário, tenham sido criados visando a defesa de tais interesses ou que sua atuação tenha um mínimo de correlação com o objeto tutelado" (Curso de Direito Processual Civil Coletivo, 2ª ed. São Paulo: SRS Editora, 2008, p. 161).
13 Sobre o novo art. 543-C do CPC - Sobrestamento de recursos especiais "com fundamento em idêntica questão de direito". RePro nº 159, no prelo.
14 Julgamento de recursos no STJ "por amostragem" - Lei nº 11.672/2008. Migalhas nº 1898, artigo publicado em 15.5.2008.
15 Sobre o instituto da representação adequada, veja-se: SILVA, Edward Carlyle. A representação adequada nas ações coletivas. Revista direito em foco, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, jan. 2006, p. 31-41.
16 A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletivas em uma perspectiva comparada. São Paulo: RT, 2007, p. 99.
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*Advogados do escritório Arruda Alvim Wambier Advocacia e Consultoria Jurídica
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