Estado de direito global e a justiça criminal
A tese de uma Justiça universal ou global ganhou força inusitada especialmente a partir daquele momento (1999) em que o Juiz espanhol Baltazar Garzón decretou a prisão do general chileno Augusto Pinochet, que acabou não se sujeitando a nenhuma sanção penal, em razão da sua morte (ocorrida no final do ano de 2006).
segunda-feira, 4 de agosto de 2008
Atualizado em 1 de agosto de 2008 15:24
Estado de direito global e a justiça criminal
Luiz Flávio Gomes*
A tese de uma Justiça universal ou global ganhou força inusitada especialmente a partir daquele momento (1999) em que o Juiz espanhol Baltazar Garzón decretou a prisão do general chileno Augusto Pinochet, que acabou não se sujeitando a nenhuma sanção penal, em razão da sua morte (ocorrida no final do ano de 2006). É certo, entretanto, que os juízes ingleses proclamaram a não invocação da imunidade presidencial em alguns crimes. Mas o impulso mais contundente ao emergente Estado de Direito global, do qual faz parte a pretensão de uma Justiça universal, foi dado mesmo com a criação do TPI (em 2002).
Durante o século XX a implementação do Tribunal Penal Internacional não passava de um desideratum, que se imaginava (muito) distante. Mais celeremente do que muitos acreditavam, o TPI nasceu e passou a funcionar em 02 de julho de 2002. Hoje já conta com a adesão de 106 países. Reúne competência para julgar os chamados crimes de lesa-humanidade, incluindo-se o genocídio e os crimes de guerra.1
O Tribunal foi aprovado em Roma, em julho de 1998 (cf. seu Estatuto/Tratado de Roma no site - clique aqui
A competência do TPI não é retroativa (só vale para fatos posteriores à sua criação) e ainda deve ser observado o princípio da complementariedade (isto é, o TPI só atua se o país se omitir no julgamento dos seus nacionais envolvidos em guerras, crimes contra a humanidade ou genocídio).
Sua criação só foi possível em razão da violação sistemática dos direitos humanos, particularmente por sistemas ou regimes repressivos de todas as índoles (de direita, de esquerda, religiosos etc.). Mais de 130 milhões de pessoas foram vítimas desse tipo de violência desde a Segunda Guerra Mundial.
Um dos maiores entraves à criação do TPI foram os EUA (que não ratificaram o pacto de Roma). E já se posicionaram radicalmente contra ele. De todos os países presentes em Roma (em julho de 1998), apenas sete (naquele momento) recusaram o TPI: EUA, Israel, China, Iraque, Iêmen, Líbia e Catar.
No modelo de Estado de Direito global pode-se prognosticar que a importância do TPI será cada vez maior. É imprescindível a instituição de uma Justiça penal internacional para julgar (no futuro) não somente criminosos genocidas ou ditadores (que são muitos ainda hoje, principalmente na América Latina, Ásia, África), senão, sobretudo, outros crimes que provocam conseqüências danosas para muitos países em razão da sua transnacionalidade, como por exemplo algumas modalidades de crime organizado (tráfico de seres humanos, de órgãos humanos, de animais, de armas etc.), o crime informático e o ecológico. Ainda é diminuta a competência do TPI. Tende a se alterar e aumentar nas décadas futuras.
No dia 14 de julho de 2008 houve o primeiro pedido de prisão cautelar (feito pelo Procurador Luis Moreno Ocampo) de um presidente em exercício (trata-se do sudanês Omar el Bashir), que é acusado de genocídio, crimes de guerra e crime contra a humanidade, que teria cometido desde 2003 (matando milhares de pessoas: a ONU estima em 300 mil, sendo 35 mil agricultores de três tribus). O objetivo invocado é pôr fim às atrocidades massivas, que estariam ocorrendo no maior país africano.
Não se sabe quando e se será preso o acusado, de qualquer modo parece certo (pelos antecedentes já conhecidos: processos contra Slobodan Milosevic e Charles Taylor) que a era do extermínio impune está chegando ao seu fim: a Justiça penal global está sendo chamada a cumprir o seu papel de proteção dos direitos humanos, mesmo contra atos tirânicos cometidos por pessoas de países que ainda não ratificaram o Tribunal (como é o caso do Sudão).
Até o final do século XX os chefes de Estado ou de Governo gozavam de impunidade praticamente absoluta (em relação a seus crimes, ainda que de guerra): tanto durante seu mandato como depois. Vigorava o conceito antigo de soberania assim como a imunidade do Chefe de Estado. Cada país cuidava dos seus delitos (ou não cuidava deles), sem nenhuma ingerência alheia. Esse panorama se alterou completamente nos últimos anos (final do século XX e começo do século XXI), principalmente depois da prisão do General Pinochet (em 1999). Espera-se que o Estado de Direito global continue cumprindo seu papel de guardião dos direitos humanos fundamentais.
Um outro Tribunal internacional (que também faz parte do Estado de Direito global) é o TIJ (Tribunal Internacional de Justiça), que pertence à ONU (órgão jurídico máximo da ONU). Está sediado na Holanda (Haia) e no dia 16 de julho de 2008 determinou aos Estados Unidos a paralização temporal da execução (pena de morte) de cinco mexicanos, no Estado do Texas (cf. EL PAÍS de 17.07.08, p. 5).
A decisão do TIJ tem vínculo com outra determinação sua (de 2004, caso Avena), onde se discute a ausência de assistência consular para as pessoas condenadas à morte (embora seja um direito previsto na Convenção de Viena de 1963, que foi firmada pelo Governo norte-americano). O Estado do Texas (com apoio da Corte Suprema norte-americana) diz que não reconhece esse Tratado. A polêmica jurídica continua, de qualquer modo, foi decretada (por ora) a moratória da morte dos cinco mexicanos. Mais um exemplo de atuação do Estado de Direito global.
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1 Sobre o Tribunal leia mais no site (clique aqui)
2 Cf. CHOUKR, Fauzi; AMBOS, Kai (Orgs.) et. al. Tribunal penal internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000; LAVIGNE, Arthur. Por que o tribunal. O Globo, Rio de Janeiro
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