Um novo e democrático Tribunal do Júri (VI)
A complexidade na redação dos quesitos sobre as causas legais e supralegais de exclusão do crime, isenção de pena, especial redução de pena e circunstâncias qualificativas, acarreta, com grande freqüência, diversos casos de erro judiciário, para além das hipóteses clássicas que versam sobre a autoria e a materialidade.
terça-feira, 29 de julho de 2008
Atualizado em 28 de julho de 2008 11:30
Um novo e democrático Tribunal do Júri (VI)
René Ariel Dotti*
1. A arte e a ciência dos quesitos
A complexidade na redação dos quesitos sobre as causas legais e supralegais de exclusão do crime, isenção de pena, especial redução de pena e circunstâncias qualificativas, acarreta, com grande freqüência, diversos casos de erro judiciário, para além das hipóteses clássicas que versam sobre a autoria e a materialidade.
O saudoso José Frederico Marques chegou a afirmar que "a complicada e difícil euremática (sic)1 dos quesitos e questionários", foi uma criação dos "órgãos da superior instância, no exercício de útil política judiciária destinada a tentar corrigir os abusos do júri".2
Esse trecho de sua lavra pode e deve ser considerado como um depoimento pessoal do pranteado mestre e ex-Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Na literatura nacional, uma das obras de maior prestígio profissional acerca da quesitação, é de autoria do Professor Marques Porto: Júri - Procedimento e aspectos do julgamento,3 com várias reedições. Esse autor, em texto crítico após a publicação do Projeto de Lei nº. 4.900, de 1995,4 manifestou-se contrariamente à proposta de simplificação do questionário.
Pacelli de Oliveira pondera que "as dificuldades de encaminhamento de questões jurídicas a pessoas sem conhecimento do Direito não são poucas (...). Não é por acaso que muitas anulações de processos do júri originam-se de equívocos tanto na formulação dos quesitos como na contradição das respostas".5
As dificuldades práticas nessa área específica das perguntas e respostas do questionário dirigido aos juízes de fato e o imenso número de julgamentos anulados têm motivado a redação de monografias e artigos que visam esclarecer a arte e a ciência de redigir quesitos.6
2. Uma crônica de Olavo Bilac
Em crônica antológica, muito apropriadamente intitulada O Júri, o imortal Olavo Bilac (1865-1918) conta a história de um "desventuradíssimo sujeito" que, submetido a julgamento, foi condenado a quinze anos de prisão, quando todos os jurados estavam convencidos da sua inocência e firmemente dispostos a absolvê-lo. A acusação fora frouxa; a defesa fora calorosa e clara, e calara no espírito do júri. O réu sentia que a palavra do seu advogado ia pouco a pouco abrandando os corações dos jurados, e transformando-lhes as rijas fibras musculares em mole cera. E o desgraçado exultava. Pelas janelas do velho casarão do antigo Museu, mirava ele lá fora o céu azul, o livre céu luminoso retalhado pelo livre revoar das andorinhas. (...) A oração do advogado acabara. Alguns jurados, comovidos, enxugavam os olhos. O presidente do tribunal, do alto do estrado, lançava sobre o réu um olhar enternecido e amável. Formularam-se os quesitos. Fechou-se sobre o júri a porta da sala secreta. E toda a gente que enchia a sala das sessões rejubilava e sorria, certa de que o homem seria absolvido. Puro engano! Quando o presidente leu as respostas aos quesitos formulados, houve um espanto grande e indizível: o sujeito estava condenado a quinze anos de prisão! Como? Por que? - os jurados não tinham medido as palavras, tinham confundido as respostas, tinham trocado os quesitos, e força era declarar o réu criminoso... Em vão, tentando demover do seu propósito o juiz, clamava o advogado que a intenção do júri fora outra, pois não havia ali um jurado que não estivesse convencido da inocência do mísero. Em vão! O juiz declarou terminantemente que de boas intenções está o inferno calçado, e o pobre diabo teve de desistir dos seus belos projetos de bom jantar e de noitada alegre; e voltou para a cadeia, sem compreender aquela atrapalhação"7.
3. O problema da troca de mão
Em artigo publicado sob o sugestivo título "Júri popular: erro do jurado - o amargo quatro a três"8, o Advogado e Professor Antônio Carlos de Carvalho Pinto analisa a prática do erro judiciário do tribunal popular, que pode ocorrer freqüentemente pela troca de mão. E explica:
"O certo é que, em 99% das vezes, ao depositar o seu voto na sacola, aquela cédula que irá condenar ou absolver, nesse precioso, importante e dramático instante, o jurado vale-se de sua memória, depositando o 'SIM' ou o 'NÃO', segundo a lembrança que tem, de qual das mãos carrega um ou outro voto! E, essa lembrança pode falhar! E, muitas vezes falha! É que, não obstante o jurado possa rever os votos antes de depositar, isto nunca acontece, até porque, nesse exato momento há uma célere expectativa no recinto; os votos são depositados em rápida seqüência e todos se apressam para logo responderem ao Magistrado, que está diante dos olhos de todos, esperando resposta à sua indagação. Como os votos dos jurados são aferidos por maioria, logo se percebe a importância de cada um deles, bastando ressaltar que, na votação de quatro X três, em verdade, um único voto é que decide o julgamento!".9
E prossegue o criminalista com o seu depoimento:
"Nos julgamentos em que participei, e que passam de algumas centenas, jamais pude observar um só jurado, uma única vez, consultar suas mãos após iniciada a coleta de votos; ao contrário, sempre tenho presenciado os votos saírem de sob a mesa para a urna, utilizada apenas a memorização, que se inicia quando o Magistrado anuncia que vai proceder a leitura dos quesitos".10
4. O Júri em Chopinzinho (PR)
Aludindo ao erro judiciário da troca de mão e à possibilidade de sua prevenção, Carvalho Pinto se refere à sessão do Júri da qual participou na Comarca de Chopinzinho (Paraná), quando o Juiz de Direito adotou uma simples mudança procedimental e que poderá resolver o problema. Antes de ler o primeiro quesito, o presidente do Conselho de Sentença pediu aos jurados que olhassem as cédulas e colocassem em cada mão, guardando onde estava o "SIM" e o "NÃO". Em seguida leu o quesito e determinou a coleta dos votos, deixando-os, indevassados, dentro da urna, sobre a mesa. Nesse momento ele solicitou aos jurados que, discretamente, verificassem a cédula que mantinham consigo, conferindo se haviam votado como queriam votar, adiantando que, se algum jurado percebesse ter "trocado de mão", que acenasse com a cabeça e nova votação seria realizada. Ocorrendo o sinal do jurado (acenando a cabeça ou levantando a mão), o Juiz determinava que se recolhessem as "descargas", normalmente misturando-as com as cédulas já depositadas na urna, porém não identificadas. Em seguida, distribuindo-se todas elas (7 contendo a palavra SIM e 7 contendo a palavra NÃO) para os jurados, repetia-se o procedimento de votação. Trata-se de uma oportunidade concedida ao juiz de fato para corrigir um erro e, segundo o articulista, tal critério já foi adotado por outros Magistrados da capital de São Paulo.
5. A simplificação proposta pelo Projeto de Lei nº 4.900, de 1995
Com a finalidade de libertar os jurados do tormento bíblico do questionamento complexo que é imposto há mais de sessenta anos pelo atual sistema aos jurados, ao Juiz togado, ao agente do Ministério Público, ao defensor, ao escrivão e aos Oficiais de Justiça, a minha proposta, na condição de relator, acolhida pelo Projeto de Lei nº 4.900, de 1995,11 continha apenas 3 (três) quesitos essenciais, na seguinte ordem: A materialidade do fato; A autoria (ou participação); Se o réu deve ser condenado12 (art. 483, incisos I, II e III).
Sendo negativa a resposta a qualquer um deles, a votação estará encerrada e o caso julgado, com a absolvição. Afirmando que o réu deve ser condenado, o Júri passaria a deliberar sobre: se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa; se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia (art. 483, incisos IV e V).
Sustentada a desclassificação da infração para outra de competência do juiz singular, seria incluído quesito a respeito, para ser respondido em seguida à afirmação da materialidade (art. 483, § 1º). Havendo mais de um crime ou mais de um acusado, os quesitos serão formulados em séries distintas (art. 483, § 2º).
Ao prever, como primeira hipótese de resposta, "se o acusado deve ser condenado", adotei um critério de simetria com a denúncia ou queixa13 e com as alegações finais do processo e julgamento dos crimes de competência do juiz singular. Neste, após esgotados os prazos do art. 499, sem requerimento das partes ou concluídas as diligências requeridas e ordenadas, será aberta vista dos autos, para alegações, sucessivamente:
"I - ao Ministério Público ou ao querelante;
II - ao assistente, se tiver sido constituído;
III - ao defensor do réu" (CPP, art. 500).
6. A presunção de inocência e a lição de Alberto Silva Franco
Uma dúvida razoável surgiu ao tempo da discussão do Anteprojeto. Consistia ela na ponderação de que a presunção de inocência, constitucionalmente garantida, oporia-se à redação do quesito indagando primeiramente se "o acusado deve ser condenado".
Mas a minha proposta ficou vencida em face das razoáveis ponderações fundadas no princípio constitucional da presunção de inocência. E, fora dos trabalhos da comissão, o magistério de Silva Franco foi decisivo para a atual redação do inciso III do art. 483 do Código de Processo Penal (clique aqui), com a redação determinada pela Lei nº 11.689/08 (clique aqui): "se o acusado deve ser absolvido".
É oportuno transcrever as ponderações do ex-Desembargador e atual Presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), sobre a mudança radical da quesitação. Em sua conferência proferida no VII Simpósio Nacional de Direito Penal e Processual Penal, realizado pelo Instituto de Estudos Jurídicos, de 9 a 11 de junho de 1994, em Curitiba:
"Em resumo, torna mais operacional, e menos vulnerável a nulidades, a atuação do Tribunal do Júri. As vantagens em relação à situação atual são patentes. É certo que a proposta inovadora, que traz a marca do notável jurista paranaense René Ariel Dotti, provoca reações. Algumas desfavoráveis e a meu ver até procedentes, como a de James Tubenchlak (ob. cit. p. 170)14 quando ao referir-se ao terceiro quesito observa que seria mais razoável redigi-lo em sintonia com o princípio constitucional da presunção de inocência. Por que, ao invés da indagação: 'se o acusado deve ser condenado?', não se propõe a pergunta: 'se o acusado deve ser absolvido?'. Antes de tudo porque se estabelece uma relação correta com o princípio constitucional já referido. Depois, porque, na psicologia do homem comum, é mais fácil pronunciar um sim do que um não e o jurado é, sem dúvida, um popular, não um técnico. Não são, por acaso, freqüentes as situações em que se tende para não manter discussão, ou porque não se entendeu os seus termos, dar, ao interlocutor, uma resposta afirmativa para pôr termo ao assunto? Não se correria o risco, diante do quesito proposto no projeto, de formular-se uma resposta sim por ser ela mais confortável? Já, se a indagação for no sentido de ser o acusado absolvido, o não corresponderia, por certo, a uma convicção firme e deliberada do jurado e romperia qualquer possibilidade de uma decisão acomodada. O não mais que o sim sinaliza uma resposta intimamente motivada".15
Estou de pleno acordo com as lúcidas e experientes observações do nosso mestre. Eu poderia acrescer, ainda, mais um argumento em favor da proposta que me converteu. Consiste em lembrar que quando o Código de Processo Penal trata da sentença (Tít. XII, do Livro I), ele o faz iniciando pela hipótese de absolvição (art. 386). (Segue)
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1 No original, a expressão heuremática foi grafada sem a letra h. Cf. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, o termo significa o "complexo de normas para a aplicação dos heuremas". E por heurema entende-se a "prevenção ou cautela com o fim de assegurar a validade e eficácia dum ato jurídico" ( Novo dicionário da língua portuguesa, Editora Nova Fronteira, RJ, 1986, p. 891).
2 "O Júri", artigo da coletânea Estudos de Direito Processual Penal, ed. Forense, RJ, 1960, p. 235.
3 marques porto, Hermínio Alberto. Júri - Procedimentos e aspectos do julgamento. Questionários, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.
4 Mensagem nº 1.272/94, Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1995.
5 Pacelli de Oliveira, Eugênio. Curso de Processo Penal, 8ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Júris Editora, 2007, p. 559. O exímio processualista entende que o interrogatório do réu deve merecer um quesito específico "ainda que em aparente conflito com as teses apresentadas pela defesa técnica" (Ob.cit., p. 560). Essa hipótese está incorporada na Lei nº 11.689/2008 (Parág. ún. do art. 482).
6 Aélio Paropat Souza, "Quesitos do Júri no Direito Sumular", em RT 679/ 283 e s; Marcos Elias de Freitas Barbosa, "Regras e quesitos do Júri ante o Código Penal de 1984", em RT 649/233 e s.
7 Olavo Bilac - Obra reunida, ed. Nova Aguilar S/A, RJ, 1996, p. 423.
8 RT 674/370-373.
9 Ob. cit., p. 371-372. (Destaques em itálico, do original).
10 Idem, ibidem.
11 Mensagem nº 1.272/94, publicação do Centro Gráfico do Senado Federal, Brasília, 1995.
12 O Projeto não adotou a fórmula do Júri inglês e praticado nos Estados Unidos: guilty / not guilty (culpado / não culpado), porque as hipóteses do nosso sistema legal são: absolvição "O juiz abolverá o réu, (...)" (CPP, art. 386); condenação "O juiz, ao proferir sentença condenatória (...)" (CPP, art. 387).
13 Na peça inicial da ação penal, o MP ou o querelante requer a condenação do réu.
14 A remissão é à obra Tribunal do Júri - Contradições e Soluções, São Paulo: Saraiva, 1994.
15 silva franco, Alberto. "Questionário do Júri", em Livro de Estudos Jurídicos, nº 9, coordenação de James Tubenchlak e Ricardo Silva de Bustamante, Rio de Janeiro: ed. Instituto de Estudos Jurídicos, 1994, p. 200.
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*Advogado do Escritório Professor René Dotti
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