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A Lei Seca

As recentes mudanças ocorridas no Código de Trânsito Brasileiro (clique aqui) proporcionam um amplo debate envolvendo juristas, autoridades e a população. Bom sinal, apesar de que a participação da comunidade brasileira, destinatária exclusiva da lei, deveria ocorrer de forma participativa antes de sua elaboração e aprovação

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Atualizado em 10 de julho de 2008 07:42


A Lei Seca

Eudes Quintino de Oliveira Júnior*

As recentes mudanças ocorridas no Código de Trânsito Brasileiro (clique aqui) proporcionam um amplo debate envolvendo juristas, autoridades e a população. Bom sinal, apesar de que a participação da comunidade brasileira, destinatária exclusiva da lei, deveria ocorrer de forma participativa antes de sua elaboração e aprovação. O processo legal, no âmbito da democracia, é o espaço reservado para discutir os interesses conflitantes e concorrentes da sociedade visando estabelecer um sistema de valores que deve prevalecer, de forma consensual. A lei tem um papel regulador no fenômeno social justamente para buscar uma concepção de sociedade justa

Como a lei surgiu de afogadilho e imediatamente operou a conversão da Medida Provisória nº. 415/08 (clique aqui) para a Lei nº. 11.705 (clique aqui), de 19/6/08, com vigência a partir da data da publicação, a sua aplicação, que rompeu com todo o sistema de benevolência anterior, obrigou a manifestação da comunidade.

Levando-se em consideração que o Brasil é um dos países que apresenta um índice elevadíssimo de morte no trânsito, parte provocada por ingestão de bebida alcoólica, o Código de Trânsito, por si só, que data de setembro de 1997, não atingiu os objetivos propostos e a ideologia do laissez-faire provocou uma acomodação social, com inúmeras famílias chorando seus mortos e pleiteando uma reformulação legislativa mais severa.

A nova lei atendeu o reclamo social, ajustou-se no rigorismo mundial de combate ao binômio álcool-direção, trouxe instrumentos e mecanismos de execução compatíveis com a realidade brasileira, porém pecou pelo seu preciosismo, em verdadeiro confronto com direito consagrado na Constituição Federal (clique aqui). Não se trata aqui de avaliar se a lei é justa ou não e, sendo injusta, justificaria a não-obediência. A lei, mesmo sendo injusta, encontra-se no mesmo nível de legalidade das demais e deve ser questionada judicialmente a sua coerência, por se apresentar fora dos parâmetros constitucionais. Quando se elege o feitor das leis a ele se confere poder para assegurar as garantias da justiça básica, como sendo, segundo o ensinamento de John Rawls, as da liberdade política - liberdade de expressão e reunião - e a liberdade de participar das atividades públicas e influenciar por meios constitucionais, o curso da legislação.

O princípio do direito ao silêncio não compreende somente a zona de intimidade do infrator, mas, também, o alargamento das fronteiras defensivas, não permitindo, desta forma, que produza provas contra si mesmo, quando é convidado a testemunhar o próprio opróbrio, como diz Tomás de Aquino. A lei nova prevê, com arrepios de inconstitucionalidade, que o eventual infrator será penalizado se recusar a se submeter a testes de alcoolemia, exames clínicos, periciais ou outros em aparelhos homologados pelo CONTRAN. E a penalização é idêntica à prevista para quem for flagrado dirigindo sob a influência do álcool ou qualquer outra substância psicoativa.

A Carta Constitucional estende os braços para o princípio da presunção da inocência, que guarda estreita vinculação com a regra do nemo tenetur se detegere, direito assegurado nas constituições democráticas, conforme se constata da norte-americana no instituto do privilege against self-incrimination. O exercício desse direito não pode ser visto como uma penalização, um suplício, um antídoto da liberdade consagrada. E a liberdade do cidadão, como é sabido, somente pode ser limitada em nome de outra liberdade mais prevalente, no critério estabelecido por seres iguais e livres, com liberdade de escolha.

Em outras palavras: se o cidadão se recusar a fazer o teste do bafômetro ou exame de sangue, no pleno exercício de um direito confirmado constitucionalmente, será penalizado sumariamente. Se ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, o cidadão que assim age, acobertado pela lei maior, na esfera do exercício de sua defesa, será considerado infrator e penalizado administrativamente. É um contra-senso legislativo e uma afronta ao direito ao silêncio a autoridade de trânsito lavrar o auto de infração, que desencadeará a somatória de sete pontos na Carteira Nacional de Habilitação do eventual infrator, a apreensão de seu veículo e a suspensão do direito de dirigir por um ano.

Incumbe ao Estado, por meio de seus agentes persecutórios, demonstrarem a prática de um ilícito pelos meios probatórios admissíveis nas regras jurídicas e não coagir o eventual infrator a consentir na realização de provas invasivas, prostrando-o diante de sua própria cidadania. É o aniquilamento de direitos obtidos com muito custo pela população brasileira. É o retorno à vulnerabilidade.

O Judiciário, com certeza, será o canal por onde escoará o restabelecimento do direito arranhado do cidadão. As autoridades de trânsito encarregadas da fiscalização deverão agir com o bom senso necessário, não aplicando o rigorismo textual da lei nova, em caso de recusa do motorista em colaborar com o teste. A lei é como uma pedra bruta. Tem que ser trabalhada, lapidada para exibir por todos os ângulos sua função social harmônica.

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*Promotor de Justiça aposentado. Advogado, São José do Rio Preto/SP





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