Constituição: 20 anos depois
No próximo mês de outubro, a Constituição Federal completa 20 anos de vigência; é extensa, quase 350 artigos, mas tornou-se caricatura, transformada em colcha de retalhos, porque bastante desvirtuada de sua originalidade; serviu aos interesses dos governantes do momento, quando se tentou instalar o parlamentarismo, ou quando se adotou o instituto antidemocrático da reeleição.
segunda-feira, 16 de junho de 2008
Atualizado em 13 de junho de 2008 09:18
Constituição: 20 anos depois
Antonio Pessoa Cardoso*
No próximo mês de outubro, a Constituição Federal (clique aqui) completa 20 anos de vigência; é extensa, quase 350 artigos, mas tornou-se caricatura, transformada em colcha de retalhos, porque bastante desvirtuada de sua originalidade; serviu aos interesses dos governantes do momento, quando se tentou instalar o parlamentarismo, ou quando se adotou o instituto antidemocrático da reeleição.
Aqui, não se pretende retirar os méritos da Lex Legum, mas quer-se apontar as omissões e erros cometidos pelo legislador.
Em 1824 tivemos a primeira Constituição (clique aqui), no Império; depois, mais seis Constituições e uma Emenda Constitucional apareceram até hoje na República: a de 1891, primeira Constituição Republicana (clique aqui), escreveu-se apenas 99 artigos, e teve vigência por mais de 40 anos; a de 1934 (clique aqui) foi de inspiração alemã; a de 1937, de origem fascista e denominada de "polaca", adveio da ditadura de Vargas; a Lei Suprema de 1946 (clique aqui) marcou o ressurgimento do governo democrático; a de 1967 (clique aqui) marcou retrocesso democrático com a instalação do governo militarista em 1964; logo depois é reformada pela Emenda Constitucional nº. 1, que manteve no geral a lei anterior.
Alterar, emendar a Constituição tornou-se rotina no Congresso Nacional; emendaram até mesmo as Disposições Transitórias; fala-se em mais de 1.300 propostas de modificações em estudo; enquanto isto, "fabricam" leis inconstitucionais, permitem o espetáculo das medidas provisórias e postergam a regulamentação de artigos que ainda não foram aplicados.
Passado esses vinte anos, segundo levantamento promovido pelo jornal Valor Econômico, ainda restam 51 incisos, parágrafos ou artigos não regulamentados na atual Constituição, apesar de muitos anunciarem o número de mais de 200 dispositivos que reclamam por lei para entrarem em vigor. Essa inércia do legislador ameaça o exercício pleno da democracia, além de contribuir para aumentar o apetite do Executivo pelas sucessivas edições de medidas provisórias.
A fertilidade do legislador brasileiro não se condiz com o espaço deixado pela falta de leis regulamentadoras, pois, em derredor da Constituição, surgiram quase 3.800 leis ordinárias, mais de 1.000 medidas provisórias originárias, quase 10.000 decretos federais, além de leis complementares, portarias, etc. Mesmo com a limitação imposta pelo art. 60 da Constituição, visando preservar, dentro do possível, o texto original e a estabilidade, ainda assim a Lei Fundamental em vigor caminha para 60 emendas, o que representa em média três alterações por ano. De todas as Constituições do Brasil a mais deformada, na redação original, foi a atual, retirando-lhe características básicas; além disto, inseriram-se institutos antidemocráticos, a exemplo da reeleição, inadmitido por todas as Constituições, salvo a de 1937; atenta-se contra a segurança jurídica quando se permite interpretação abusiva do disposto no art. 62, com uso indevido das medidas provisórias, em nítido comprometimento do equilíbrio dos poderes; inseriu-se matérias que nunca deveriam ser tratadas pela lei fundamental, a exemplo do § 2º, art. 242, que mantém o Colégio Pedro II na órbita federal; escreve-se dispositivos de agrado popular, mas de difícil cumprimento, como a erradicação da pobreza, inc. 3º, art. 3º ou o salário mínimo capaz de atender às necessidades básicas, inc. IV, art. 7º.
Apesar de tudo isto, deixou-se em vigência um lixo de leis sobrevindas do período negro da história, a exemplo da Lei Orgânica da Magistratura.
A Constituição Cidadã sofreu em torno de 3.600 Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins), junto ao Supremo Tribunal Federal. A primeira Adin questionava dois decretos federais, ajuizada no dia 13 de outubro de 1988, poucos dias depois de sua promulgação.
Dentre os dispositivos não regulamentados há um artigo que perturba e causa muita perplexidade a muitos munícipes. Cidades como Luis Eduardo, desmembrado de Barreiras, Bahia, e Campo Limpo de Goiás, separada de Anápolis, Goiás, dentre outras, estão sujeitas a desaparecerem e voltarem à condição de distritos. É que a Emenda Constitucional n. 15, de 1996, deu nova redação ao § 4º, art. 18, que trata da criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios; sua vigência depende de lei complementar, sem o que se torna ineficaz. O Congresso não se desincumbiu do encargo, apesar da existência de 16 projetos sobre o assunto, todos apensados ao PLP n. 130/96. A PEC n. 13/2003, por exemplo, altera o § 4º do art. 18, e devolve aos Estados autonomia para emancipação; sua aprovação poderia resolver a questão.
O STF julgou, em 2006, a inconstitucionalidade da criação dos novos municípios e concedeu ao Congresso o prazo de dezoito meses para regulamentar o assunto. Caso isto não aconteça até outubro próximo, todas as cidades criadas voltarão a pertencer aos municípios de onde foram desmembrados.
Situação institucional ocorre com a falta de regulamentação do dispositivo que regula a eleição indireta para presidente e vice-presidente em caso de vacância nos últimos dois anos de mandato; as atribuições e prerrogativas do Vice-presidente da República ainda não foram definidas, porque depende de lei que regulamente o dispositivo constitucional.
Outro exemplo de dispositivo sem regulamentação é o inciso VII, art. 153 que dispõe sobre a instituição de imposto em grandes fortunas.
O ex-ministro, Moreira Alves, diz que a Constituição inseriu quase 200 dispositivos para serem regulamentados; era só encontrar "um artigo mais polêmico, deixavam para que fosse regulamentado posteriormente".
Na verdade, o Supremo Tribunal Federal recebeu da Constituição federal a incumbência de legislar, sempre que o Congresso Nacional se omitisse. Isto ocorre através da medida judicial denominada Mandado de Injunção. Todavia, a Corte tem sido muito tímida no uso deste poder-dever. De qualquer forma, em julgamento promovido em outubro de 2007, o STF regulamentou o direito de greve no setor público, mudando sua atuação e passando a atender ao dispositivo constitucional.
Espera-se que as comemorações dos vinte anos da Carta, iniciativa do presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia, realmente sistematize a regulamentação de dispositivos ainda em aberto para que se ponha em vigência toda a Constituição Cidadã.
*Desembargador do TJ/BA