Prosopopéia
A dúvida na sala de aula era: "Quem sabe o que é prosopopéia?"
sexta-feira, 16 de maio de 2008
Atualizado às 14:01
Prosopepéia
Eduardo de Moraes Sabbag*
A dúvida na sala de aula era:
"Quem sabe o que é prosopopéia?"
"A aula transcorria normalmente, quando a dúvida de Língua Portuguesa surgiu..."
Assim defino o que aconteceu com um grande amigo e ilustre Professor de Processo Civil - Fredie Didier Jr. -, em uma de suas brilhantes aulas. Na verdade, o contexto relatado na frase inicial foi-me dito pelo próprio Didier, demonstrando a celeuma que teria criado a expressão "a madeira vai piar", dita em aula, sem grande preocupação com a construção estilística em si. Na ocasião, perguntou-se qual figura de linguagem comportaria aquela expressão, e, embora muito se tenha dito, poucos alunos conseguiram decifrar com correção.
Há poucos dias, Didier, relatando-me o acontecido naquela aula, sugeriu que "transferíssemos" a dúvida para o Doutor Vernáculo, a fim de que o mestre dirimisse a questão. Até aproveitei a ocasião e brinquei com o amigo, dizendo que aquilo seria um verdadeiro "chamamento ao processo..."
Adiante segue a resposta do Doutor Vernáculo, que veio repleta de exemplos e enriquecida de detalhes.
Caros Professores Fredie Didier Jr. e Eduardo Sabbag:
Em primeiro lugar, sinto-me lisonjeado por servir de referencial aos estimados professores, no que tange à solução de uma dúvida de Língua Portuguesa.
A dúvida que movimentou o alunado atrela-se a uma figura de pensamento, no contexto da estilística. Procurei, nas linhas seguintes, explicar o tema com uma farta gama de exemplos, colhidos da literatura, da música popular e, até mesmo, do ambiente de vestibulares e concursos públicos, levando-se em conta que ora me dirijo a docentes que dia a dia lecionam para candidatos a concursos. Além disso, exponho a resposta na forma de "quadros explicativos", cuja didática lhes poderá ser útil, se desejarem dividir o tema com seus fiéis discentes. Passemos, então, ao tema:
Uma das características do texto literário é a conotação, mecanismo por meio do qual recriamos e alteramos o significado institucionalizado de uma palavra. A linguagem conotativa faz-se presente, no texto, por meio da utilização das figuras de linguagem - recurso estilístico que dá uma maior expressividade, ajudando o escritor a dizer algo de uma maneira nova, diferente e criativa, de modo a impressionar o interlocutor e a torná-lo sensível e atento ao que se diz. Desse modo, tais construções são formas que servem ao enriquecimento artístico da Língua, visando tornar a obra mais rica e interessante e, em determinados momentos, mais poética.
Entre as figuras de linguagem, destacam-se as figuras de pensamento - ou "de retórica" -, que resultam do desacordo entre a verdadeira intenção de comunicar e o ato de fala. Vale dizer que consistem em "desvios" que funcionam como véus a ocultar um estado de consciência. Entre elas, a que nos interessa, neste momento, em razão da dúvida relatada, é a prosopopéia, também conhecida por "personificação", "animização" ou "antropomorfismo", que consiste em atribuir linguagem, sentimentos e ações de seres humanos a seres inanimados, irracionais, mortos ou ausentes (animais, plantas ou coisas). Assim, quando se atribuem vida, movimento ou voz a estes seres, ou ainda se invocam figuras imaginárias ou desaparecidas, tem-se o ato de personificação, em um processo estilístico que se realiza na esfera do pensamento. Nele intervêm, com vigor, a emoção, o sentimento e a paixão. "É a figura, por excelência, de ficção, dos mitos, das histórias (estórias) maravilhosas e narrações infantis"1. Não é à toa que a prosopopéia transita em abundância nas fábulas, que tanto nos encantam, quando se observa, por exemplo, que animais dialogam entre si, provocando o atraente lado lúdico na aprendizagem.
Os exemplos abaixo são esclarecedores, indicando-se, nas sublinhas, as personificações:
Exemplos de prosopopéia
A cidade, mutilando-se, fechou suas portas.
A vida ensinou-me a ser humilde.
O rio corria pela montanha.
O amor voltou-lhes as costas.
O jardim olhava as crianças sem dizer nada.
O galo cantou às quatro da manhã.
As ondas beijavam a areia da praia.
Em sonho, o morto gritava inúmeras vezes por Maria.
O prédio sorria perante os trabalhadores.
Numa casa conversavam animadamente um lápis e uma caneta.
Depois que o sol me cumprimentou, dirigi-me à cozinha.
"O Morro dos Ventos Uivantes" é uma história de amor. Cruel e apaixonante.
As árvores torciam-se e gemiam, vergastadas pelo vento.
Uma lágrima espreitou-me um instante os olhos, e recolheu-se depois, surpreendida?
Cresciam apenas árvores raquíticas naquele bosque.
As pedras choram, os regatos sorriem.
A figura de pensamento ora estudada também aparece com freqüência no repertório musical, ornamentando nossa música popular com um toque singular de elegância e criatividade que, a propósito, só nossa MPB possui. Os exemplos são pródigos:
1. Zé Ramalho, na engajada e crítica canção "Admirável gado novo" (1981):
"(...) os automóveis ouvem a notícia (...)";
2. Lulu Santos e Nelson Mota, na inesquecível letra "De repente Califórnia":
"O vento beija meus cabelos, / as ondas lambem minhas pernas, / o sol abraça o meu corpo, / meu coração canta feliz."
3. Noel Rosa e João de Barro, na atemporal "As Pastorinhas":
"A estrela d 'alva / no céu desponta / E a lua anda tonta / com tamanho esplendor (...)";
4. Paulo Soledade e Marino Pinto, na saudosa "Estrela do Mar" (1952):
"Um pequeno grão de areia, / que era um pobre sonhador / Olhando o céu viu uma estrela / Imaginou coisa de amor."
5. João Bosco e Aldir Blanc, na otimista canção "O Bêbado e a Equilibrista":
"A lua, / tal qual a dona de um bordel, / pedia a cada estrela fria / um brilho de aluguel. / E nuvens, / lá no mata-borrão do céu, / chupavam manchas torturadas - que sufoco!"
6. Chico Buarque e Sivuca, na clássica "João e Maria":
"Agora eu era o herói / E o meu cavalo só falava inglês..."
Seria um grave lapso, nesta resposta, se não lhes revelasse o emblemático exemplo de personificação que ocorre nos primeiros versos do Hino Nacional. Observem:
"Ouviram do Ipiranga as margens plácidas / De um povo heróico o brado retumbante"
Para detectá-la, faz-se necessário proceder à "arrumação" dos versos, cuja ordem apresenta-se invertida. Tal inversão de termos avoca, curiosamente, outra figura estilística conhecida por "anástrofe". Os versos iniciais de nosso Hino Nacional podem ser "organizado" da seguinte forma:
"As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heróico".
Notem que as margens do Ipiranga ouviram o brado retumbante, o que designa ação humana para um ser inanimado. É a prosopopéia no Hino Nacional, e com "direito" à anástrofe... Do ponto de vista estilístico, é fato induvidoso: nosso Hino é um espetáculo à parte, não acham?
Maior esforço interpretativo terão - sem dúvida - ao tentarem detectar as situações de personificação nos versos de Camões. O épico poeta, em várias passagens, em "Os Lusíadas", valeu-se da prosopopéia, o que me força à citação. Vejam alguns exemplos, em que o imortal poeta lusitano traz o choro, a visão e a fala àqueles que não podem chorar, ver ou falar:
(I) "Os altos promontórios o choraram / e dos rios as águas saudosas / Os semeados campos alagaram, / Com lágrimas correndo piedosas (...)"2 ("promontório" significa cabo formado de rochas elevadas);
(II) "Do mar que vê do Sol a roxa entrada"3;
(III) "Os montes de mais perto respondiam, quase movidos de alta piedade."
Aproveitando a inspiração que Camões nos proporciona, vale a pena observarem, caros professores, os exemplos de prosopopéia coletados da literatura, expostos em forma de quadro, para fins didáticos, no intuito de dimensionar a importância desse recurso estilístico na linguagem dos escritores:
A prosopopéia na literatura
1. Mário Quintana
(I) "Os sinos chamam para o amor."
(II) "Onde estão os meus verdes? Os meus azuis? / O Arranha-Céu comeu!"
(III) "As águas riem como raparigas / à sombra verde-azul das samambaias."
(IV) "Dorme, ruazinha, é tudo escuro."
2. Eça de Queirós
I. "Os dias seguiam-se tristonhos."
II. "Entretanto, Lisboa arrojava-se aos meus pés."
III. "A tarde descia, pensativa e doce, com nuvenzinhas cor-de-rosa."
3. Machado de Assis
(I) "Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume."
(II) "O meu pensamento, ardiloso e traquinas, saltou pela janela fora e bateu asas na direção da casa de Virgília."
(III) "Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha: - Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?"
4. Carlos Drummond de Andrade
(I) "Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes."
(II) "As casas espiam os homens / que correm atrás das mulheres."
(III) "Bateu Amor à porta da Loucura. / Deixa-me entrar - pediu - sou teu irmão."
5. Castro Alves
(I) "Andrada! arranca esse pendão dos ares! Colombo! fecha a porta dos teus mares!"
(II) "Vi a Ciência desertar do Egito (...)"(III)
6. Vilma Guimarães Rosa
(I) "As águas do rio gemiam alto, soluçando entre seixos."
(II) "Ciprestes austeros velavam a paz dos encantados."
7. Cesário Verde
I. "Que o mar leva no dorso exposto aos vendavais,."
II. "As dálias a chorar nos braços dos jasmins!"
8. Raul Bopp
I. "O sol belisca a pele azul do lago."
II. "... os rios vão carregando as queixas do caminho."
9. Vergílio Ferreira
I. "O medo vinha a correr também atrás dele."?
II. "Plácida, a planície adormece, lavrada ainda de restos de calor."
10. Mário de Andrade
"Já reparei que no seu peito / soluça o coração bem feito / de você."
11. Cecília Meireles
"O orvalho treme sobre a treva / e o sonho da noite procura / a voz que o vento abraça e leva."
12. Adélia Prado
"O silêncio de quando nos vimos à primeira vez / atravessa a cozinha como um rio profundo."
13. Monteiro Lobato
"O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague."
14. Inácio L. Brandão
"O rio tinha entrado em agonia, após anos de devastação em suas margens."
15. Olegário Mariano
"Lá fora, no jardim que o luar acaricia, um repuxo apunhala a alma da solidão."
16. Gastão Cruls
"A imaginação açula a matilha das dúvidas."
17. Ferreira Gullar
"Ah! cidade maliciosa / de olhos de ressaca / que das índias guardou a vontade de andar nua".
18. Clarice Lispector
"Um frio inteligente (...) percorria o jardim..."
19. Cruz e Souza
"... o sol, no poente, abre tapeçarias..."
20. Carlos de Oliveira
"A Ilha era deserta e o mar com medo / da própria solidão já te sonhava. / Ia em vento chamar-te para longe / E longamente, em espuma, te aguardava."
21. Jorge de Sena
"A chuva é obrigada a sentir que eles nem as encostas lhes estendem."
22. António Vieira
"As estrelas foram chamadas e disseram: aqui estamos."
23. Aquilino Ribeiro
"Um Sol rijo e pesadão, de todo genésico, espojava-se sobre a terra."
24. Fialho de Almeida
"Vêem-se os salgueiros chorando os tradicionais amores de Pedro e Inês."
25. Florbela Espanca
"Toda esta noite o rouxinol chorou, / Gemeu, rezou, gritou perdidamente."
26. António Botto
"Naquela manhã de Março, o vento norte levantou-se mal-humorado."
27.Antero de Quental
"Também, choram [as ondas] todo o dia, /Também se estão a queixar. /Também, á luz das estrelas, / toda a noite a suspirar!"
Por fim, recomendo que prestem atenção ao modo como o tema tem sido solicitado em provas de concursos e vestibulares, haja vista o trabalho a que se dedicam no dia-a-dia - o ensino jurídico a candidatos a concursos públicos. Para tanto, relacionei, em prol da melhor didática, as solicitações em mais um quadro explicativo.
A prosopopéia nos vestibulares e concursos
1. ITA
"A neblina, roçando o chão, cicia, em prece."
2. FUVEST
(I) "Sinto o canto da noite na boca do vento".
(II) "Uma talhada de melancia, com seus alegres caroços."
3. PUC-RJ
(2007) (I) "E as borboletas sem voz/ dançavam assim veludosamente."
(II) "A bomba atômica é triste" / "Quando cai, cai sem vontade" / "Coitada da bomba atômica / Que não gosta de matar!".
4. UEL/2007
"A tua saudade corta como aço de 'navaia' ".
5. UFC/2008
(I) "Sentia-se como o bocejar das casas, cujas portas se abriam com uma lentidão de pálpebras sonolentas."
(II) "(...) a seca é terrível / que tudo devora (...)" (Assaré, Patativa. A Triste Partida. In: Cordéis e Outros Poemas, Fortaleza: Ed. UFC, 2006, pp. 9-13, versos 69-70).
6. EsPCEX
"(...) Trago-te flores - restos arrancados / Da terra que nos viu passar unidos / E ora mortos nos deixa e separados (...)" (Machado de Assis, "A Carolina")
7. FGV/DIREITO/2007
"Algumas folhas da amendoeira expiram em degradado vermelho. / Outras estão apenas nascendo, / verde polido onde a luz estala."
8. UNESP/2004
"Que a brisa do Brasil beija e balança".
9. UNIARA/2005
"As estrelas dirão: - Ai, nada somos." (Alphonsus de Guimaraens)
10. PUC-SP
(I) "Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal! (...)" (Fernando Pessoa, "Mar Português")
(II) "(...) o essencial é achar-se as palavras que o violão pede e deseja."
11 Mackenzie-SP
"Agora que se cala o surdo vento / E o rio enternecido com meu pranto / Detém seu vagaroso movimento."
12 FMU-SP
(I) "(...) a natureza parece estar chorando (...)"
(II) "O vento voa / a noite toda se atordoa."
13. UFSC
"As ondas do mar gritam e gemem ao encontro das pedras."
14. UM-SP
(I) "Acenando para a fonte, o riacho despediu-se triste e partiu para a longa viagem de volta."
(II) "Os arbustos dançavam abraçados com os pinheiros a suave valsa do crepúsculo."
15.PM/SC-2005
"A floresta gesticulava nervosamente diante do fogo que a devorava."
16. IPEM-AMAPÁ - 2005
"(...) Um vento furioso provocava fantasmagóricos redemoinhos de areia enquanto o faraó Tutankhamon era retirado de seu local de repouso na antiga necrópole egípcia conhecida como o Vale dos Reis. (...)" (REI TUT, A. R. Williams: National Geographic, 2005).
É de enaltecer que a personificação não passou ao largo dos ditos populares tão comuns na linguagem do cotidiano. É só conversar um pouco aqui e acolá, e já se ouvem expressões do tipo "a madeira vai piar" ou "a cobra vai fumar", entre outros curiosos dizeres. É fácil perceber que a sabedoria popular, estilisticamente, lapidou expressões que personificam coisas e animais, em criativas construções por todos conhecidas.
Tal criatividade só não suplantou a daquele vestibulando que, ao tentar conceituar na prova o vocábulo "prosopopéia", registrou a seguinte "pérola", demonstrando total distanciamento das questões de nossa Língua:
"A prosopopéia é o começo de uma epopéia." Quanta imaginação! Para ele, seguramente, "a cobra vai fumar"...
Sucesso nas aulas!
Doutor Vernáculo."
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1 Ver: (I) Cherubim, S. Dicionário de figuras de linguagem, São Paulo, Pioneira, 1989, p. 55; (II) De Nicola, José; Iinfante, Ulisses. Gramática contemporânea da língua portuguesa, São Paulo, Scipione, 1997, p. 436.
2 Idem, canto III: 132, 84
3 Idem, canto I: 60, 28.
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*Advogado; Doutorando em Direito Tributário, na PUC/SP; Mestre em Direito Público e Evolução Social, pela UNESA/RJ; Professor de Direito Tributário e de Língua Portuguesa, no Curso LFG/PRIMA; Coordenador e Professor do Curso de Pós-graduação, em Direito Tributário, na Rede LFG/UNISUL; Professor de Direito Tributário do Curso de Pós-graduação da UNISAL-Lorena/SP. Autor das obras: Elementos de Direito Tributário, 9º edição; Redação Forense e Elementos da Gramática, 2º edição; Repertório de Jurisprudência de Direito Tributário, 3ª edição, todos pela Editora Premier Maxima
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