O Direito Civil revisitado
Estamos agora, definitivamente, após mais de duas décadas de tramitação do projeto, no limiar da vigência do novo Código Civil, o Código de 2002, a lei do novo século. A primeira indagação do leigo ou iniciante das letras jurídicas é, sem dúvida, no sentido de saber se com o novo diploma legal haverá uma revolução na legislação brasileira, se tudo que a lei antiga representou em matéria de princípios fundamentais ou de particularidades é modificado.
domingo, 27 de outubro de 2002
Atualizado em 1 de abril de 2003 11:49
O Direito Civil revisitado
Sílvio de Salvo Venosa*
Toda a sociedade, de uma forma ou de outra, é diretamente atingida pela edição de um novo Código Civil. Em qualquer país do mundo ocidental, o Código Civil representa o maior monumento legislativo. Sua importância quanto aos efeitos diretos na vida do cidadão é, sem dúvida, sob certos aspectos, muito maior do que a própria Constituição. Isto porque, como sua própria denominação indica, o Código Civil é a lei do cidadão, do homem comum, do pai, da mãe, dos filhos, do lar, da família, enfim. É a norma que rege dos mais simples e comezinhos aos mais complexos contratos que circundam nossa vida. É ordenamento que constrói a propriedade privada e seus efeitos, sua aquisição e sua perda, a relação entre vizinhos, a responsabilidade pelos danos causados ou sofridos, a forma de indenização pelas perdas, a modalidade de disposição do patrimônio após a morte, entre tantos e tantos outros assuntos que nos tocam, ora e vez em nossa existência. O Código Civil é a lei do Juiz. Não há magistrado neste país e em todo país de direito ocidental de origem romana que possa prescindir do conhecimento fundamental da lei civil, até mesmo para julgamentos criminais, que exigem pressupostos básicos de direito civil que compõem descrições de crimes e possibilitam a aplicação de penas.
Pois a sociedade brasileira terá doravante, a partir do início de 2003, um novo Código Civil. Durante praticamente todo o século XX, o país foi regulado pelo Código Civil de 1916. Esse Código, fruto do projeto apresentado por Clovis Bevilaqua, pontilhado com a maestria intelectual de Ruy Barbosa, foi um monumento legislativo, respeitado inclusive por juristas estrangeiros, que sempre elogiaram o fato de ser uma lei autêntica e não mera cópia servil dos modelos principais da época, o Código francês, mais antigo, e o Código alemão, mais recente, como ocorreu com a maioria dos códigos latino-americanos. O fato é que todas as gerações de juristas e operadores do direito dos últimos oitenta anos foram formadas sob a batuta desse Código. O Código Civil, na verdade, estrutura o raciocínio do jurista, do juiz e do advogado; é, de forma mais singela, pressuposto lógico de seu trabalho.
Pois estamos agora, definitivamente, após mais de duas décadas de tramitação do projeto, no limiar da vigência do novo Código Civil, o Código de 2002, a lei do novo século. A primeira indagação do leigo ou iniciante das letras jurídicas é, sem dúvida, no sentido de saber se com o novo diploma legal haverá uma revolução na legislação brasileira, se tudo que a lei antiga representou em matéria de princípios fundamentais ou de particularidades é modificado. Como o próprio título deste ensaio sugere, não há qualquer traumatismo no conhecimento e na aplicação da nova lei. Primeiramente porque a estrutura do Código de 1916 é mantida e não só, grande porcentagem dos artigos da lei é mantida com redação idêntica, por vezes com algumas substituições de vocábulos, para melhor compreensão atual. Em segundo lugar, porque a maioria das alterações estruturais são apenas aparentes quanto à aplicação do direito: o novo Código sintetizou na lei os grandes caudais dos julga- dos, de nossa jurisprudência, consolidando enfim o que os tribunais vinham julgando homogeneamente nas últimas décadas. Em terceiro lugar porque coube ao novo Código absorver as grandes modificações e conquistas sociais em matéria de Direito Civil, presentes na Constituição Federal de 1988. Sem dúvida, pode ser afirmado que a grande revolução do direito privado brasileiro ocorreu verdadeiramente com a atual Constituição. Foi nessa Carta que a filiação obteve igualdade de direitos. Não se discriminam nem social nem juridicamente os filhos, não importando a origem e a situação dos pais. Definitivamente, essa Constituição representou o último degrau, após tantas leis que se seguiram ao Código Civil nesse mesmo desiderato e que paulatinamente, no curso do último século, foram extirpando a pecha dos filhos ilegítimos, adulterinos, incestuosos e mesmo adotivos. Foi essa Constituição que, da mesma forma, reconheceu direitos amplos a casais que convivem em união estável, sem casamento. Também nesse diploma maior encontramos o novo direito social da propriedade, as formas mais singelas de aquisição da propriedade imóvel por usucapião e tantos outros. Pois esse denominado direito civil constitucional foi evidentemente absorvido pelo novo Código Civil, sem que representasse inovação, em algo que estava presente na legislação desde 1988.
No entanto, nessa revisita que todos faremos, de uma forma ou de outra, ao Direito Civil, há, de fato, várias inovações, que exigirão uma nova perspectiva da sociedade. Não se deve esquecer que nosso velho Código, do início do século XX, foi todo ele elaborado com as idéias e ideais do século XIX: dirigia-se a uma sociedade restrita essencialmente rural, de cunho insistentemente patriarcal; a um país de pequena população produtiva, que acabara de sair do sistema de mão-de-obra escrava. A lei antiga caracteriza-se por um individualismo exacerbado. Neste início do século XXI, a nova lei se defronta com uma vasta população urbana, com um país industrializado, mas ainda de grande produção rural, com a nova posição da família e principalmente da mulher na sociedade ocidental, com o desenvolvimento das comunicações e da informática e de tantos outros aspectos, avanços e problemas que nos cercam. O novo Código possui cunho proeminentemente social e tem em mira o interesse coletivo.
Entre as modificações da nova lei, sentir-se-á, por exemplo, de plano, que a maioridade da pessoa natural será doravante atingida aos dezoito anos e não mais ao vinte e um anos. O novo Código atende tendência universal do mundo ocidental, admitindo que atualmente a maturidade é atingida cada vez mais cedo. Mas será em temas mais sensíveis que sentiremos as alterações. Os contratos devem ser considerados células negociais em prol da sociedade e não somente em favor dos contratantes em cujo campo é essencial ao princípio da boa- fé; a propriedade será sempre vista em relação ao interesse coletivo; na nova família preponderará a igualdade absoluta dos direitos dos cônjuges, apenas para destacar alguns temas.
Pois é esse novo horizonte legal que se descortina às novas gerações. É certo que esse novo Código formará uma nova geração de juristas, que, como conhecedores do Direito, nunca esquecerão as lições dos mestres que os precederam no curso da História. Sem sombra de dúvida, como em toda lei dessa grandeza, há imperfeições a serem corrigidas e arestas a serem aparadas. Há que se esquecer doravante as críticas feitas à tramitação do projeto e à discussão sobre a conveniência ou não de termos uma nova codificação civil. Temos Lei. O novo Código Civil já está presente. Estamos todos convocados a revisitar o velho e tradicional Direito Civil, proveniente do provecto direito romano e cotejá-lo com o novo diploma. Os princípios tradicionais continuam e continuarão sempre presentes. Temas tradicionais e outros não tanto se revestem de novas soluções, como, por exemplo, as conseqüências da fertilização assistida e das uniões de pessoas do mesmo sexo No curso dos primeiros anos de julgados e de estudos sob o novo Código, os caminhos ideais serão indicados ao legislador, que sentirá os reflexos da nova lei e outras necessidades da sociedade brasileira.
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* Juiz aposentado do Primeiro Tribunal de Alçada Civil - sócio do escritório Demarest e Almeida Advogados - Autor de obra completa de Direito Civil em seis volumes
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