Mais Juízo com Justiça
A situação da criança e do adolescente envolvido com infração ou em situação de risco é sabidamente grave no Brasil. Mas ela se revela ainda mais grave quando se assiste ao documentário Juízo, de Maria Augusta Ramos, em cartaz na cidade desde o dia 14 de março. O conteúdo desta gravidade fica exposto não somente à razão crítica jurídica, como também a toda sensibilidade social que prescinda de conhecimento técnico.
sexta-feira, 25 de abril de 2008
Atualizado em 24 de abril de 2008 13:16
Mais Juízo com Justiça
Priscila Akemi Beltrame*
A situação da criança e do adolescente envolvido com infração ou em situação de risco é sabidamente grave no Brasil. Mas ela se revela ainda mais grave quando se assiste ao documentário Juízo, de Maria Augusta Ramos, em cartaz na cidade desde o dia 14 de março. O conteúdo desta gravidade fica exposto não somente à razão crítica jurídica, como também a toda sensibilidade social que prescinda de conhecimento técnico.
O documentário, na linha do cinema social já tratado pela diretora em Justiça, provoca a capacidade de reconhecimento da sociedade no ritual diuturno de uma Vara da Infância e da Adolescência. Reflete-se sobre a sociedade que temos e a distância daquela que queremos, uma que bem poderia funcionar como prevêem as leis nacionais já seria um avanço.
Na falta de política pública para jovens, de ações de educação, inclusão social, formação técnica, o que se vê da atuação do governo nessa área é a montagem de um aparato jurisdicional falho, arbitrário e que reproduz a desigualdade da sociedade em que se vive. É por isso que a juíza diz: "a Justiça não é diferente da sociedade para a qual ela trabalha". Não serve como corretor, mas como reafirmação do seu antônimo, a injustiça.
E o filme "Juízo", de Maria Augusta Ramos, alimenta-nos do nosso próprio fracasso, chamando a atenção de todos os que atuam na área dos direitos das crianças e adolescentes em situação de risco social. Quando tudo o mais falhou, a organização familiar, a vida escolar, as referências sociais e assistenciais, falha também a Justiça.
A diretora, quando comenta da intenção do filme, não fala com clareza do objetivo, pois a arte deve falar por si. Sem dúvida que a situação das audiências nas quais velozmente, sumariamente, mecanicamente, decidia-se sobre a liberdade de jovens chamou-lhe a atenção. O desequilíbrio dos poderes e das atribuições dentro daquele microcosmo vivenciado na sala de audiência é chocante. Há uma sinergia, um entendimento perfeito entre o Poder Judiciário e o Ministério Público, órgão que tem a titularidade da ação penal pública. Por outro lado, a Defensoria Pública faz número. Faz as ponderações, mas a cabeça segue baixa, consciente da fraca receptividade aos seus argumentos. Tem-se a impressão que a defesa não participa do processo de formação da convicção do julgador, participando tão-somente a acusação. Na cabeça da Justiça não há dúvida sobre a culpa dos jovens acusados, uma certeza inabalável, ainda que não se analise cabalmente as provas da sensurabilidade.
Quatro dias após o lançamento do filme, Eduardo Rezende Melo, vice-presidente da ABMP - Associação Brasileira de Magistratos e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude, assina um artigo na Folha de S.Paulo, no qual afirma: "Como vilão neste filme não é apenas a Justiça, ele põe em xeque ainda muito mais: a capacidade da sociedade civil e do poder público de questionar o modo de funcionamento do que deveria ser um sistema de garantia de direitos, como a própria abertura da Justiça e das demais instituições às críticas que lhes sejam feitas."
De alguma forma, a vilã é a Justiça, sim, um sistema concebido a partir da idéia de um processo e julgamento justos, daí o Juízo do título: o órgão jurisdicional da infância e adolescência mostrado no filme não é aquele do equilíbrio do contraditório, das garantias processuais, mas o que deixa passar em branco os seus próprios fundamentos em favor de um papel de mera polícia dos costumes. O documentário deixa exposto que no Juízo da Infância e da Juventude há pouco respeito pela prova, pela discussão de mérito, e o pouco do que se discute é, enfim, a pena. Mas o Juízo também pode ser outro, o da consciência do comportamento correto, da razão reta.
Segue Rezende Melo: "A Justiça da Infância e da Juventude tem por missão, constitucionalmente, a defesa e a garantia de direitos humanos individuais e sociais de crianças e adolescentes e de suas famílias e já foi capaz de demonstrar sua capacidade vanguardista no cumprimento de suas ações neste país."
Pobre infância e juventude: pouca escola, muita prisão. Prisões tão degradantes quanto às dos maiores. Nesse ponto, há uma convergência que o documentário sublinha: menores e maiores encarcerados são privados não apenas de sua liberdade, mas de grande parte de sua dignidade. Convive-se sem nenhuma repulsa (e com disfarçado regozijo em alguns casos) com a indignidade como pena.
Das 50 audiências filmadas, a diretora selecionou 10 que dão uma boa mostra de alguns trejeitos da Justiça. Se juízo é uma situação de julgamento, tudo o que o filme mostra é o não julgamento, como técnica de aplicação do direito, mas um pré-julgamento como técnica de ortopedia moral. Não são raras as broncas, as recomendações vindas da juíza (Luciana Fiala), sugerindo que determinado adolescente não freqüente bailes funks, que na idade de outra adolescente ela não deveria ter filhos, ou que a profissão de engraxate não era boa, pois ganhava-se pouco com isso. Uma Justiça com certo juízo de menos e com certos juízos demais.
Com as audiências filmadas e as transcrições, a diretora escolheu diversos jovens que vivessem no mesmo meio social dos acusados para interpretar o texto dito em audiência pelos verdadeiros acusados. Isso porque, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, é vedada a divulgação dos adolescentes envolvidos com atos infracionais, preservando sua identidade. Assim, todas as imagens da audiência, dos pais, parentes, personagens da justiça são verdadeiras, sendo filmados separadamente apenas as intervenções dos adolescentes.
As guerras sociais, as situações de risco, a indignidade do sistema carcerário, a rudeza dos sistemas criminais e policiais, têm sido comunicadas de forma direta pelo cinema, especialmente o cinema documentário. Algumas correntes doutrinárias mais recentes a respeito dos direitos humanos abrem mão de visões clássicas de Kant e Platão sobre a condição humana, fundada na racionalidade moral e na verdade do indivíduo, para apresentar uma nova perspectiva desses direitos. Isso porque o reconhecimento da racionalidade nunca evitou que se perpetrassem massacres e violações a direitos humanos, como ocorrido com os bósnios muçulmanos, ou alemães judeus. O que faria a diferença, neste estágio, seria a capacidade moral fundamental, baseado no maior respeito aos direitos humanos quanto maior seja o vínculo com indivíduo agredido. Conforme Richard Roty, a idéia de proteção do outro nasce com o reconhecimento do outro como portadores de valores intrínsecos.
O documentário é aquela linguagem de um retrato dolorido de nós mesmos, que por mais imperfeito que seja, merece ser visto, porque somos nós que estamos protagonizando-o. Não é apenas uma forma de levar um olhar de uma artista a uma realidade, mas a de trazer o olhar da sociedade sobre a situação dos jovens em conflito com a lei e da lei em conflito com a justiça.
A beleza do filme é entregar à sociedade o produto dela mesma (por maior que seja o custo moral), para que os jovens que transitam naquele purgatório não sejam somente o outro, mas um pedaço do pior que conseguimos ser com aqueles que carregam o nosso futuro defrontados com o falho juízo.
*Advogada, mestranda em direitos humanos pela Universidade de São Paulo. Foi doutoranda em relações internacionais pela Univ. Autônoma de Barcelona, consultora do PNUD no Timor Leste e assessora jurídica da UNESCO no Brasil
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