A incidência do contraditório nas medidas preparatórias de busca e apreensão nos crimes contra a propriedade imaterial
O contraditório, corolário do estado democrático de direito e, ao lado da ampla defesa, expressão maior do sistema acusatório adotado no Brasil é, pela grande maioria dos doutrinadores pátrios, rechaçado quando da análise dos artigos 524 a 530 do Código de Processo Penal (clique aqui), que regulam o Procedimento dos Crimes contra a Propriedade Imaterial.
terça-feira, 29 de abril de 2008
Atualizado em 23 de abril de 2008 16:36
A incidência do contraditório nas medidas preparatórias de busca e apreensão nos crimes contra a propriedade imaterial
Franklin Gomes*
O contraditório, corolário do estado democrático de direito e, ao lado da ampla defesa, expressão maior do sistema acusatório adotado no Brasil é, pela grande maioria dos doutrinadores pátrios, rechaçado quando da análise dos artigos 524 a 530 do Código de Processo Penal (clique aqui), que regulam o Procedimento dos Crimes contra a Propriedade Imaterial.
Na realidade, todos, salvo raríssimas exceções, advogam a tese da incidência do contraditório diferido ou retardo, já que no bojo da ação penal é que poderia o réu tomar conhecimento da informação e efetivar a sua reação, alegando assim que tal procedimento é realizado "inaudita altera parte".
Como basicamente o que se busca nos crimes contra a propriedade imaterial nessa fase é a prova da materialidade delitiva (através da busca, apreensão e realização de exame pericial em produto que contenha, por exemplo, a marca supostamente falsificada, ou o produto fabricado com violação de patente de invenção ou mesmo desenho industrial etc), que possa servir de sustentáculo ao oferecimento de queixa, poderia o réu tão e somente questioná-la na própria ação penal, ou seja, não poderia, por exemplo, oferecer quesitos ou contraditar aqueles que foram apresentados pelo requerente.
Ora, a abolição, ou melhor, a inobservância do contraditório, como veremos, é que dará causa justamente à violação de diversos preceitos constitucionais, garantistas, e violará o devido processo legal e penal.
Aqui, devemos seccionar a questão, de modo a delimitá-la, interpretando-a em consonância com o direito constitucional, e não apenas dentro do liame estrito do Código de Processo Penal que, em razão da Constituição de 1988 (clique aqui), adotou o sistema acusatório, consagrou direitos que até então eram questionáveis, introduzindo significativas e importantes alterações.
Aliás, o direito ao contraditório aos litigantes, que já era de nossa tradição constitucionalista, e já em 1937 foi consagrado no art. 5º, LV da CF, que declarava "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ele inerentes".
Quanto se afirma que a realização da medida em cotejo deverá ser sem a oitiva da parte contrária (inaudita altera parte), certamente não se deve dizer que todo o procedimento deva ser realizado sem a participação da outra parte, mas sim que para o seu deferimento não deverá ser ouvida a parte contrária, o que seria verdadeiro absurdo, já que fatalmente frustraria o seu escopo.
Mas, uma vez realizada a busca e apreensão do objeto sobre o qual recaia (ou entende-se recair) a materialidade delitiva, nada obsta ao "verdadeiro acusado" exercer seu direito ao contraditório.
Não podemos, numa ótica constitucionalista, afirmar que "a Lei Processual Penal veda o exercício do contraditório nas medidas cautelares de busca e apreensão nos casos de crimes contra a propriedade imaterial".
O contraditório existe sim, e como garantia constitucional deve ser observado e seu exercício nada mais do que representa e glorifica o aclamado estado de direito em que vivemos.
É que, no caso em apreço, como em toda medida de natureza cautelar, o contraditório é deferido ou retardado para o momento seguinte, já que, no primeiro momento o seu exercício poderia frustrar o escopo da medida, como já afirmamos.
Nesse momento haverá a ruptura da inexistência de contraditório, podendo aquele contra o qual as provas estão sendo produzidas, ainda mais em procedimento judicial (e não inquisitivo) e, especialmente, promovida pelo interessado (natureza privada da ação penal), exercer sua defesa, utilizando-se de todos os meios hábeis para tanto.
E por outro lado, se a realização do procedimento exige os requisitos inerentes às cautelares, quer parecer que o fumus boni iuris (existência de título/ certificado em nome do requerente) e o periculum in mora (possibilidade de perecimento da prova) são evidenciados e invocados apenas no que tange a concessão de ordem liminar sem a oitiva da parte contrária, não podendo representar obstáculo à sua participação, mesmo porque a manutenção de tal situação é inócua logo após a realização da busca que culminar com a apreensão do objeto supostamente violador de algum direito relativo à propriedade imaterial.
Analogicamente, seria como não reconhecer, ao preso em flagrante, seus direitos, entre eles o de obter informação acerca da autoridade que o deteve e as razões pelas quais está sendo preso, sob a alegação de que tal medida, de natureza processual cautelar não está sobre o crivo do contraditório.
Por mais absurdo que pareça o exemplo, há, incontestavelmente, exata correlação com o caso em apreço, pois naquela hipótese, vedaríamos ao preso o direito de questionar a legalidade de sua prisão, de contrariá-la, seja através do writ, seja de outra forma, conquanto na hipótese do procedimento dos crimes contra a propriedade imaterial estaríamos impedindo que o "acusado" participe da produção de prova que pode lhe causar o peso, talvez injustificado, de uma ação penal que representa extremo constrangimento.
Portanto, a questão não é permitir o exercício imediato do contraditório, como por exemplo ouvir o requerido antes da concessão da medida, ou seja, cientificá-lo previamente da prova que será produzida. É apenas entender o contraditório diferido ou retardo para posterior momento, quando da elaboração do laudo pericial, com a faculdade de participação com paridade de armas com o "acusador privado", e não depois do peso de uma ação penal, que pode inclusive ter sido calcada em aspectos que exigiriam maior consideração e talvez técnica, dada a especialidade do tema, que muitas vezes é demasiadamente técnico.
Ademais, uma vez não permitida a participação do acusado, há que se indagar inclusive sobre a lisura da prova produzida, se é ou não viciada, na medida em que será conduzida única e exclusivamente pela parte (particular) interessada, certamente sem a apresentação de fatos e circunstâncias essenciais para a produção de uma prova isenta.
Por outro lado, pode ocorrer do "suposto acusado" ser também titular de um certificado que dê guarida ao produto ou processo que fabrica, ou mesmo a marca ou qualquer outro direito relativo à propriedade industrial, o que certamente, sem a sua manifestação, passará in albis, dando guarida para a decretação de ocorrência material de um crime inexistente.
Assim, "o procedimento judicial probatório, de que se cuida, não pode mais constituir-se em um hiato de ilegalidade, no sistema do processo penal. Tanto que ninguém argumentaria com a falta de interesse do eventual envolvido, ou imputado, na feitura da evidenciação da materialidade do crime, que se lhe deseja atribuir. A pressa de ultimar o exame do corpo atente-se somente com a ordem liminar inaudita altera parte, tão conhecida, nos procedimentos cautelares e em ações civis, que a admitem - art. 928 do CPC (clique aqui), por exemplo - sem obstar posterior ciência e oportunidade de manifestação daquele, que pode vir a ser acusado. Achar-se-iam as regras, ou os direitos respeitados: de ser informado, de audiência e de legitimidade na produção da prova penal. Mantido, contudo, o procedimento preventivo tal como se mostrava na doutrina anterior, a busca, vistoria, apreensão e o exame vão todas as providências aflorar nulas e de pleno jus - art. 43, n.II, 158 e 525 do CPP e arts. 200 e 201 da Lei nº. 9.279/96 (clique aqui) c/c art. 5º, incs. LIV e LV, da Constituição da República. Não poucas vezes, ao realizar-se o exame do corpo delito, acaba-se por indicar, ou fortalecer o apontamento da autoria, co-autoria ou da participação"1.
Ademais, qual teria sido o prejuízo causado, em assegurar garantia constitucional, permitindo ao "acusado", após a apreensão do produto ou objeto sobre o qual recaia a suposta violação formular quesitos e participar efetivamente da produção da prova, até a homologação do laudo pericial?
A ausência de contraditório deve ser entendida, no caso das medidas preparatórias de busca e apreensão em caso de crime contra propriedade imaterial, como questão pontual e preliminar, que em hipótese alguma deve fulminar a ampla defesa, da qual é verdadeiramente complemento indissolúvel.
É justamente a urgência da medida de um lado, com a presença de seus elementos característicos, e a necessidade de segurança jurídica calcada no respeito ao direito daquele que se sente lesado que não pode e não é capaz de suplantar por completo direitos também constitucionalmente consagrados daquele contra o qual começa a se formar a nítida possibilidade de constrição da sua liberdade de locomoção.
Há, portanto, aparente confronto de interesses: daquele que se sente lesado e daquele que é ultimado com uma suspeita traduzida em efetiva violação de sua tranqüilidade.
E não podemos nos olvidar que, na grande maioria dos casos estaremos diante não apenas de direitos de pessoas físicas, assim consideradas, mas pessoas jurídicas, representadas por seus sócios, ou seja, situações que no fundo envolvem questões empresariais, industriais, comerciais, embora indiquem "pessoas".
Assim, ao lado de questões puramente processuais, há ainda questões de ordem estritamente técnicas, no aspecto "industrial" da acepção do termo, como no caso de análise de patentes, questões que não são "corriqueiras" no meio criminal, e que endossam ainda mais a necessidade de participação do acusado.
Por fim, é sabido que, dado o "tendencionismo" e a facilidade de manipulação de provas dessa natureza, os requerentes muitas vezes promovem tais medidas com o único escopo de pressionar moralmente o acusado, ou ainda, com a finalidade de utilizar a prova no processo cível, especialmente para o requerimento de tutela antecipada, finalidade que, via regra, logra êxito, haja vista que a existência de um laudo costuma auxiliar no convencimento íntimo do juízo cível em decisões de tal natureza.
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Bibliografia:
FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
PITOMBO, Cleunice A. Valentim Bastos. Da Busca e da Apreensão no Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
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1 Cleunice A. Valentim Bastos Pitombo. Da Busca e Apreensão no Processo Penal. São Paulo: RT , 1999, p. 249.
A doutrinadora, com extrema propriedade, ainda afirma "É inconcebível, pois, que na esfera criminal, onde se acha em jogo, de um lado o poder-dever de punir - que tem como escopo conservar e restaurar a paz pública -, e de outro a liberdade individual, a vulneração de mandamentos constitucionais. É inadmissível que para se reafirmar o preceito violado - norma penal -, se transgridam normas processuais de fundamento. Até porque "violar um princípio 'mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comando. É a mas grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais (...).
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*Advogado do escritório Gomes Advogados Associados
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