A terceirização e a ´Síndrome de Marlin´
Se há um assunto mal resolvido em Direito do Trabalho no Brasil é a terceirização. Discutido com preconceito, e partindo do pressuposto da possibilidade luxuosa de não usufruir dos seus benefícios, apenas porque alguns pretendem a manutenção da pureza ideológica.
segunda-feira, 14 de abril de 2008
Atualizado em 2 de abril de 2008 08:38
A terceirização e a 'Síndrome de Marlin'
Mário Gonçalves Júnior*
Se há um assunto mal resolvido em Direito do Trabalho no Brasil é a terceirização. Discutido com preconceito, e partindo do pressuposto da possibilidade luxuosa de não usufruir dos seus benefícios, apenas porque alguns pretendem a manutenção da pureza ideológica.
Quando se fala juridicamente em terceirização, ainda somos (em maioria) como aqueles barbudões ortodoxos que não aceitam que as filhas sejam mulheres de verdade, que olhem além das viseiras das burcas. Ou, visto por outro ângulo: quando um filho tem dificuldades motoras, buscamos na fisioterapia e no exercício freqüente a cura. Em terceirização, à menor dificuldade, queremos confinar o doente à cadeira de rodas. Isto porque as ideologias muitas vezes não são propriamente ideologias. Vêm do mesmo barro dos preconceitos. E o preconceito tem sete vidas. Só muda de endereço. A terceirização é a bola da vez, é o assunto que faz salivar as bocas das carolas de hoje.
Intrigante é, por exemplo, a tese da "precarização" da mão-de-obra terceirizada. A legislação do trabalho que se aplica ao trabalhador não-terceirizado é a mesmíssima que se aplica ao trabalhador terceirizado. Então, do plano hipotético e legal, a tal precarização não pode estar na lei. Está, dizem os conservadores, na comparação entre os acordos e convenções coletivas de certas categorias profissionais em relação a outras.
Os Sindicatos das categorias profissionais mais antigas (metalúrgicos, bancários etc.) são, conseqüentemente, também mais antigos. Em razão do maior tempo de existência, já se fortaleceram no exercício das reivindicações e das lutas por melhores condições de trabalho.
O mundo deixou de ser quase-estático, economicamente, a partir da globalização e do incremento tecnológico em ritmo frenético das últimas décadas. Os processos produtivos se sofisticaram e se diversificaram, fazendo surgir novas categorias profissionais, e, conseqüentemente, novos sindicatos de trabalhadores. Estes sindicatos mais "novos" ainda não passaram pelo processo de depuração e amadurecimento daqueles sindicatos tradicionais. É, portanto, absolutamente natural e esperado que estejam ganhando musculatura. Isto, só com o tempo e com a perseverança.
Mas os próprios sindicatos tradicionais fazem da comparação das conquistas coletivas desses sindicatos mais novos, em relação às conquistas seculares dos mais tradicionais, para sustentar a tese da "precarização" da mão-de-obra terceirizada. Argumentam que, passando o trabalhador terceirizado de uma categoria a outra, o contrato coletivo de trabalho que se lhes aplica não é tão rico quanto o que rege as categorias tradicionais. Coisa óbvia. O que deve espantar nesta infeliz comparação é a miopia histórica que está levando à repetição do erro de Vargas em relação ao direto sindical (ninguém empurre para debaixo do tapete a inspiração fascista da legislação de 1943, porque essa era uma crítica do próprio movimento sindical).
Sim, essa briga é de Titãs, e os maiores interessados são os Sindicatos tradicionais, que não querem perder poder - e já vêm perdendo, daí a grita ensurdecedora - para os sindicatos mais novos. Os baluartes da profanação da terceirização não querem colocar este aspecto na mesa de discussão, porque mancharia de cinismo a bandeira desfraldada.
Fechado este parêntese político, voltemos ao problema da superproteção.
Já aprendemos, ao menos em psicologia, que a superproteção da ninhada cria uma geração de quase-retardados, dependentes, gente que não se agüenta sobre as próprias pernas. A ordem do dia é inversa; "soltar as rédeas", "cortar o cordão umbilical". É na experimentação da vida que os filhos ganham autonomia:
"É tênue a linha que separa a proteção da superproteção. Quem ama claro, cuida. Em doses normais, cuidado não traz prejuízo. Já o exagero pode trazer mais malefícios do que benefícios."
"Segundo a terapeuta Zulma Taveiros Guimarães, do Núcleo de Casal e Família da Sociedade de Psicanálise do Rio, crianças superprotegidas se tornam adultos dependentes, inseguros, imaturos e medrosos, sem autonomia e incapazes de tomar decisões."
"- Quem cresce esperando que alguém sempre lhe dê todas as respostas, as fórmulas prontas, não desenvolve a capacidade de pensar soluções criativas para lidar com imprevistos. Não cria imunidade para se proteger quando está sozinho - diz Zulma" (in "Filhos: Superproteção é a melhor solução?", publicado pelo Globo Online 7.11.2005, de Ângela Góes).
Em psicologia, a superproteção paterna vem sendo chamada de "Síndrome de Marlin", graças ao desenho animado "Procurando Nemo". Dizem que a vida imita a ficção (ou vice-versa). Aqui, curiosamente, há um paralelo a ser feito: a legislação trabalhista ainda vigente, legado mais famoso de Getúlio Vargas, rendeu-lhe o apelido de "Pai dos Pobres". Essa legislação, decretada em 1942/1943, era tida, hoje mais ainda, como "paternalista".
Para o bem do Direito do Trabalho já poderíamos ter nos convencido da eficácia dessa mesma fórmula de psicologia: evitar a superproteção. Mas persistem os "superpais": "nossos filhos são tão frágeis, não podemos soltá-los sem mais e nem menos para a vida; é tudo muito perigoso!"
E assim o Direito do Trabalho vai arregimentando um exército crescente de trabalhadores imaturos, dependentes, inseguros e medrosos, na adjetivação da terapeuta Zulma Guimarães. Assim também, guardadas as devidas proporções, em relação aos Sindicatos mais novos. Isto aliado à péssima educação brasileira só pode desenhar um futuro pessimista na concorrência do Brasil com as demais nações (falar isto num momento de crescimento econômico é privilégio exclusivo dos corajosos).
Conquanto peque pelo maniqueísmo, todos reconhecem, ao menos, que há a "boa" e a "má" terceirização. Mas se tem julgado levando em conta o pior cenário, sempre. Não há lei proibindo a terceirização, mas isto não impediu que se construísse jurisprudência declarando-a, em regra, ilícita (Súmula 331/TST - clique aqui). Isto mesmo. Embora não seja proibida, esquisitamente a terceirização só é lícita por exceção. É de confundir cérebro de pombo: se não é sequer regulamentada, como pode haver "regra e exceção"? Coisa de louco.
São essas construções filosóficas duvidosas que acabam dando sobrevida aos cacoetes dos nossos pais superprotetores, ou, dos nossos 'Marlins'. Enquanto isto vamos tropeçando nas barreiras de uma corrida na qual os adversários pulam com desenvoltura impiedosamente elegante de gazela.
Aos pais superprotetores (e teimosos) só resta invejar o sucesso dos filhos dos vizinhos pelas frestas da cortina. Foram criados para a vida. Se a discussão jurídico-trabalhista sobre a terceirização no Brasil não mudar de rumo, também não poderemos esperar por algo muito diferente disto.
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*Advogado do escritório Demarest e Almeida Advogados
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