Primeiras reflexões sobre a Proposta de Reforma Tributária (PEC nº 233/2008)
Com o envio de uma nova Proposta de Emenda Constitucional (PEC nº. 233/08) ao Congresso Nacional, o tema "Reforma Tributária" volta a ser um assunto na pauta de nossos parlamentares. Nessa nova fase, e a despeito da proposta e justificativa oficiais, inúmeros objetivos serão postos em discussão: aumento ou redução da arrecadação, combate à sonegação, simplificação das leis fiscais, estímulo do investimento, melhoria das condições de auditoria pública, aperfeiçoamento da não-cumulatividade, solução de conflitos de competência, entre outros que sejam considerados dignos de disciplina constitucional.
terça-feira, 25 de março de 2008
Atualizado em 24 de março de 2008 15:02
Primeiras reflexões sobre a Proposta de Reforma Tributária (PEC nº 233/2008)
Júlio M. de Oliveira*
Marcio Roberto Alabarce*
Com o envio de uma nova Proposta de Emenda Constitucional - PEC nº. 233/08 (clique aqui), ao Congresso Nacional, o tema "Reforma Tributária" volta a ser um assunto na pauta de nossos parlamentares. Nessa nova fase, e a despeito da proposta e justificativa oficiais, inúmeros objetivos serão postos em discussão: aumento ou redução da arrecadação, combate à sonegação, simplificação das leis fiscais, estímulo do investimento, melhoria das condições de auditoria pública, aperfeiçoamento da não-cumulatividade, solução de conflitos de competência, entre outros que sejam considerados dignos de disciplina constitucional. Lamentavelmente, a reforma tributária continua sendo tratada apenas no plano constitucional, ignorando-se que muito poderia ser feito sem uma nova alteração na Constituição (clique aqui).
Seja como for, antes de se debater quais são os objetivos a perseguir por meio de nova proposta de Emenda Constitucional - até porque não há consenso quanto a esses objetivos -, é preciso compreender qual o conteúdo da proposta do Governo Federal.
Vale dizer, de início, que as principais medidas propostas passarão a vigorar no segundo ano seguinte ao da promulgação de eventual Emenda, exceto em relação ao ICMS, que passará por um período de transição de oito anos. Esses períodos de transição são virtudes da proposta, que permitem a readequação dos orçamentos e procedimentos de empresas e governos às novas realidades tributárias.
No âmbito federal, a proposta permite que a União crie um imposto sobre "operações com bens e prestações de serviços", ainda que se iniciem no exterior. É o IVA-F a que tem se referido o Ministério da Fazenda perante a mídia, que, na verdade, consistirá em um imposto não-cumulativo sobre operações, tal qual o ICMS e IPI. Não precisamos conhecer muito das vicissitudes do sistema tributário nacional para antever as inúmeras discussões envolvendo a incidência ou não desse tributo em transações como transferências, doações, bonificações, comodato, consignações, vendas de ativo imobilizado, entre outros. É o resultado de uma incidência genérica sobre "operações com bens". Como, por outro lado, será considerado "serviço" toda e qualquer prestação que não constitua circulação ou transmissão de bens para os fins desse imposto, teremos uma situação peculiar na qual um mesmo termo ("serviço") terá significados diferentes na Constituição. E, ao incidir sobre a importação, esse novo imposto - federal - passa a constituir mais um adicional ao imposto de importação.
Pela justificativa da proposta, esse novo imposto substitui CIDE-Combustível, PIS, COFINS, COFINS-Importação e contribuição ao salário-educação. Seu defeito é ter um fato gerador muito mais amplo que esses tributos, mais aberto até mesmo que ICMS, IPI e ISS. Há, aqui, uma nítida atecnia, pois a definição da competência tributária, além de bem definida em seu escopo, haveria de ser restritiva. Conforme a proposta, contudo, essa competência é uma carta aberta à União. Pode ser uma carta perigosa, a depender das virtudes de nossos futuros legisladores.
Pela proposta, este imposto não incidirá nas exportações, e será não-cumulativo, nos termos da lei, mas não se reconhecerá o crédito em relação às operações e prestações sujeitas à alíquota zero, isenção, não-incidência e imunidade para compensação com as operações seguintes. Pela experiência acumulada há muito com o IPI, ICMS e PIS/COFINS, será, provavelmente, mais uma não-cumulatividade falaciosa, que só traz limitações, incertezas e complicações ao contribuinte. Por outro lado, além de estar incluído em sua própria base de cálculo, não é preciso muita reflexão para imaginarmos que se exigirá o cálculo desse novo tributo sobre o ICMS e o IPI.
Como se percebe, não se trata de um imposto sobre valor adicionado (IVA), como noticiado pelo Governo, mas um imposto sobre operações não-cumulativo semelhante ao IPI e ICMS, e que também abrangerá fatos hoje tributados pelo ISS, além de outros.
É salutar a simplificação decorrente da extinção de todas aquelas rubricas por uma só. Mas a pergunta que devemos fazer é: simplificará mesmo o sistema? Consideremos o PIS e a COFINS. São as contribuições que representam a maior arrecadação nesse conjunto, e recaem sobre um dado objetivo das empresas (suas receitas). Pretende-se substituí-las por um tributo novo cuja definição constitucional é vaga e imprecisa (operações). Dizem que o PIS e a COFINS atuais são complexos, e é verdade. Quem conhece o ICMS, o IPI e o ISS também dirá que esses impostos também são complexos. Sem contar que o Governo tem parcela considerável de responsabilidade pelas complexidades do PIS e COFINS desde 2002, é falacioso o argumento da simplificação em relação a esse aspecto. E o que assegura que o novo imposto recairá de modo uniforme e simplificado na economia? Simplificar não é substituir cinco tributos por um, mas sim trazer consistência, clareza e coerência às regras tributárias. Será que a insegurança jurídica que se criará compensa a suposta vantagem de mais um imposto federal sobre operações? Será que é aceitável ofertar esta carta em branco ao Poder Executivo, que pode ser tão ávido e eficiente em matéria de arrecadação?
Não sejamos acusados de ir contra as boas intenções do Governo, mas promover uma Emenda Constitucional para a substituição de tributos como o PIS e a COFINS - sobre receitas - por um imposto calcado em conceitos tão abertos parece não se justificar sob o rótulo "simplificação". A simplificação indicada como vantagem da proposta é excelente, mas o remédio que irá cuidar dos males atuais de nossa tributação não é esse novo imposto.
Ainda no que se refere às competências da União, pretende-se permitir a instituição de adicionais ao IRPJ por setor de atividade econômica. Essa medida conflita com a isonomia tributária, e é de constitucionalidade duvidosa. Independentemente disso, é provável que as alíquotas do IRPJ venham a ser futuramente majoradas, pois o discurso em torno da extinção da CSLL envolve sua substituição por alíquotas mais elevadas do IRPJ. Essa última possibilidade até pode ser neutra para as empresas estrangeiras, pois muitas compensam o IRPJ pago no Brasil em seus próprios países, mas prejudicarão, de imediato, os exportadores, especialmente em um momento no qual o Poder Judiciário começa a consagrar a tese de que tais resultados são imunes à CSLL.
A proposta também pretende afetar as competências dos Estados e Municípios ao permitir que a União venha a instituir isenções dos impostos estaduais e municipais nos tratados internacionais. É o retorno das isenções heterônomas, repelidas pelo constituinte de 1988, e que será, certamente, objeto de controvérsias futuras. Essa regra confere flexibilidade ao Governo Federal na negociação de acordos com outros países abrangendo, inclusive, tributos como o ICMS e o ISS, mas consagra a possibilidade de se fazer "milagre com o santo alheio", reduzindo a competência desses entes políticos.
Quanto ao ICMS, que já é um imposto com características nacionais, existem muitas alterações. Não se alteram os fatos tributados por esse imposto, mas, pela proposta, pretende-se que o ICMS seja regulado apenas por uma lei complementar, com regulamento editado por um órgão colegiado presidido por um representante da União (sem direito a voto) e por representantes dos Estados (novo CONFAZ).
Pela proposta, a iniciativa dessa lei complementar será reservada ao Presidente da República, a um terço dos membros do Senado Federal (abrangendo todas as Regiões do país) ou a um terço dos Governadores ou das Assembléias Legislativas, criando-se uma exceção à regra de iniciativa das leis complementares que fortalece os poderes do Presidente da República em relação ao ICMS.
Em relação à não-cumulatividade do ICMS, a proposta retira do texto constitucional a forma (metodologia) por meio da qual deve ser alcançado o efeito não-cumulativo. Na prática, o entendimento de que esse princípio é amplo já foi sepultado pelo Supremo Tribunal Federal, mas a proposta enterra por completo as últimas garantias que derivavam do texto constitucional. Com isso, questões controversas envolvendo o aproveitamento de créditos com base em "documentação inidônea" perderão amparo constitucional, entre outras.
À semelhança do atual regime, as operações e prestações sujeitas à alíquota zero, isenção, não-incidência e imunidade não implicarão crédito para compensação nas operações ou prestações seguintes, salvo determinação da lei complementar em contrário. Mas, diferentemente do que consta do texto constitucional em vigor, a proposta não disciplina o que ocorre com o crédito relativo às operações e prestações anteriores tributadas, quando as operações subseqüentes estão amparadas por esses benefícios. Neste particular, a proposta só trata da garantia do crédito relativo às operações anteriores no caso de exportação, mas não trata das demais hipóteses.
Ainda sobre a não-cumulatividade do ICMS, uma competência atribuída ao legislador complementar poderá ensejar controvérsias, pois lhe caberá "assegurar o aproveitamento do crédito do imposto". Embora a expressão utilizada pela proposta possa levar a disputas doutrinárias e judiciais no sentido de que a reforma assegura um "creditamento amplo" do ICMS, não sejamos ingênuos, pois a tendência é que as restrições aos créditos sejam mais uma vez aceitas. Melhor seria, então, que a proposta não trouxesse dispositivos que só dão falsas esperanças a quem ainda as têm. A única virtude da proposta nesse tema é a previsão de os créditos de ativo imobilizado passarem, gradualmente, a ser aproveitados em 8 meses, ao contrário dos atuais 48 meses.
Pela proposta, as alíquotas do novo imposto serão definidas por meio de Resolução do Senado Federal, que também poderá aprovar ou rejeitar as propostas de enquadramento de mercadorias e serviços nas faixas de alíquotas definidas, conforme proposições do novo CONFAZ. A proposta, porém, permite que a Lei Complementar defina mercadorias e serviços cujas alíquotas poderão ser alteradas pelos Estados. Na prática, essa é uma das poucas matérias cuja competência legislativa permanecerá com os Estados.
A base de cálculo do ICMS também pode ser alterada, pois se retira a previsão de que o IPI só será incluído na base de cálculo do ICMS nas vendas realizadas para consumo. Com isso, a base de cálculo do ICMS pode vir a abranger o IPI em todas as situações. No mínimo, existirão conflitos com base no argumento de que o ICMS não mais poderá ser calculado sobre o IPI, por falta de previsão constitucional. O silêncio sobre matéria que é, hoje, regulada levará à controvérsia. De modo análogo, o fato de se eliminar previsão de que operações com telecomunicações, energia elétrica e produtos minerais só serão tributadas pelo ICMS - pretendendo-se permitir a cobrança do novo imposto federal - poderá ensejar a cobrança do IPI sobre algumas atividades nesses setores.
De acordo com o projeto, o tratamento fiscal nas operações interestaduais é modificado. Pelos novos parâmetros, o ICMS nas operações interestaduais pertencerá ao Estado de destino, cabendo ao Estado de origem somente 2%. Exceto em relação às operações envolvendo petróleo e outros combustíveis e derivados, que continuarão sendo tributadas integralmente no destino. Para viabilizar a aplicação da nova sistemática, poderá ser estabelecida a exigência integral do imposto pelo Estado de origem, estabelecendo-se o dever de este transferir a arrecadação correspondente ao Estado de destino, via câmara de compensação. Para assegurar esse mecanismo de integração, a proposta permite que a União venha a intervir em Unidade da Federação que retenha parte da arrecadação devida a outra, havendo, ainda uma transição gradual no regime de tributação nas operações interestaduais nos anos seguintes à aprovação da reforma.
No que se refere às isenções e benefícios vinculados ao ICMS, a proposta prevê que tais incentivos serão definidos pelo novo CONFAZ, e serão uniformes em todo o país. A um só tempo, a proposta tende à eliminação da guerra fiscal, e prestigia o princípio de não-discriminação, já presente no texto constitucional. Como o atual ICMS só deverá ser extinto só no 1º dia do oitavo ano subseqüente ao da eventual edição da nova Emenda, esse é o período de transição a ser observado para os benefícios atuais.
O novo ICMS deverá ter regulamentação única, editada pelo novo CONFAZ, sendo vedada a adoção de norma estadual, à exceção das poucas exceções previstas na proposta. Considerando a quantidade de normas regulamentares e infraregulamentares necessárias ao atual ICMS, será um grande desafio harmonizar os procedimentos para o novo sistema nesse período. Atenção especial os contribuintes deverão dispensar aos regimes especiais relativos ao cumprimento de obrigações acessórias, que viabilizam as atividades de muitas empresas.
A Lei Complementar também enfrentará outros trabalhos árduos, como o estabelecimento de sanções aos Estados e Distrito Federal caso estes descumpram as normas nacionais pertinentes ao novo perfil desse imposto, e a harmonização do processo administrativo fiscal para o julgamento das questões do "novo ICMS" em nível nacional, além da administração dos processos já em andamento ou a serem iniciados em relação ao "antigo ICMS" mesmo após o início de cobrança do "novo ICMS".
Avançando no exame das proposições apresentadas pelo Governo Federal, percebe-se que nada se altera em relação à competência tributária dos Municípios, o que é lamentável pois essa Reforma poderia solucionar os conflitos envolvendo a definição do local de ocorrência do respectivo fato gerador. Bastaria que se atribuísse, de modo expresso ao legislador complementar, a competência para este dispor onde se considera ocorrido o respectivo fato gerador. Seria uma medida de real simplificação desse imposto, eliminando as inúmeras controvérsias que levam muitos a pagar o ISS em mais de uma localidade.
Em relação às contribuições sociais, a proposta pretende eliminar a competência da União para exigir as contribuições sobre o lucro (CSLL), sobre receitas ou faturamento (PIS e COFINS) e sobre os importadores (COFINS-Importação). Será também eliminada a CIDE-Combustíveis e a contribuição ao salário-educação. Esta última deverá ser extinta somente no 2º ano subseqüente ao da promulgação da Emenda. Por razões técnicas, não está claro se o PIS-Importação será mantido. Em relação a isso, lembremos que será mantida a competência da União para instituir contribuições sociais residuais por meio de lei complementar. Assim, nada impedirá que uma futura Administração venha a recriar a CSLL, PIS e COFINS.
Ainda em relação à contribuições sociais, consta da proposta a possibilidade de a contribuição sobre folha de salários e rendimentos do trabalho vir a ser substituída por uma alíquota adicional ao novo imposto federal, desde que, em tal hipótese, um percentual da receita com o novo imposto seja direcionada à Previdência Social (silencia-se quanto aos demais integrantes da Seguridade Social).
Em relação à contribuição sobre a folha de salários, a proposta também atribui à lei a competência para definir reduções gradativas de sua alíquota, a serem efetuadas do segundo ao sétimo ano subseqüente ao da promulgação da emenda. Não há, porém, previsão quanto à extinção completa dessa contribuição, tampouco o patamar mínimo ou máximo que deverá ser observado por essa lei.
Ainda nesse tocante, existe uma proposição permitindo que a agroindústria, o produtor rural pessoa física ou jurídica, o consórcio simplificado de produtores rurais, a cooperativa rural e a associação desportiva fiquem sujeitas à contribuição sobre suas receitas ou faturamento em substituição à contribuição sobre a folha de salários. Sistemática semelhante à prevista já está sendo aplicada para as entidades referidas. Não há grandes novidades nesse particular, portanto. A novidade é que, pela proposta, não será aplicável o benefício relativo à imunidade das receitas de exportação em face das contribuições sociais em tal situação. A única virtude dessa restrição é o reconhecimento - hoje negado pelas autoridades fazendárias federais - de que as contribuições da agroindústria sobre suas receitas merecem o benefício da referida imunidade.
Uma última proposição de interesse para os contribuintes reside na possibilidade de a lei complementar estabelecer limites e mecanismos de ajuste de carga tributária em relação ao IPI, ao novo imposto federal sobre operações e ao novo ICMS. A proposta está carregada de boas intenções, mas é realmente difícil esperar que tal medida seja implementada. Lembremos que a Lei nº 10.637/02, que introduziu a não-cumulatividade do PIS, continha disposição referente ao ajuste de suas alíquotas. Não é preciso lembrar que, com os anos, o PIS, e, em seguida, a COFINS passaram a ser os principais responsáveis pelos seguidos recordes de arrecadação sem que houvesse ajuste, ao contrário do previsto.
Como se vê, em certos aspectos, a proposta é bastante ampla, mas as expectativas formadas em torno de seus efeitos - especialmente questões relativas à simplificação e crescimento do país caso ela venha a ser implementada - são dignas de desconfiança. Ademais, pelas medidas propostas, podem decorrer efeitos indesejados e imprevisíveis, que devem, por isso mesmo, ser objeto de maior reflexão, não só por parte da sociedade civil, mas também dos Governos, no âmbito federal, estadual e municipal.
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*Advogados do escritório Machado Associados Advogados e Consultores
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