As incorporações e o compromisso de venda de imóveis a construir ou em construção: não-incidência do ISS
quinta-feira, 13 de março de 2008
Atualizado em 12 de março de 2008 09:46
As incorporações e o compromisso de venda de imóveis a construir ou em construção: não-incidência do ISS
Robson Sitorski Lins*
Com o aquecimento do mercado imobiliário e a conseqüente proliferação das incorporadoras e construtoras, diversos Municípios têm aproveitado o momento para ampliar a arrecadação. O problema surge quando a Administração Municipal extrapola os limites constitucionais ao poder de tributar e passa a exigir dos contribuintes recolhimentos infundados, sem o devido respaldo legal.
O presente estudo analisa a impossibilidade da tributação pelo ISS sobre a atividade das empresas incorporadoras que constroem em terreno próprio para venda posterior. O tema já foi abordado pelos tribunais superiores, recebendo tratamento, ao nosso ver, incauto e desarrazoado.
O entendimento que tem ganhado força nos tribunais superiores sustenta a bipartição do contrato realizado entre as incorporadoras e seus clientes. Sob este prisma, o compromisso de compra e venda de imóveis ainda não construídos ou em construção traria em seu bojo dois contratos: o de compra e venda, naturalmente, e o de empreitada1. Logo, em razão deste último, ocorreria a hipótese de incidência da norma tributária prevista no item 7.02 da lista anexa à Lei Complementar n°. 116/2003 (clique aqui), que disciplina o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza.
Entretanto, tal concepção é de toda incorreta, pois ao analisar a situação, o intérprete subverte conceitos do direito privado, partindo de premissas falsas, resultando por conseqüência em conclusão inválida. Expliquemos.
O art. 110 do CTN (clique aqui) é claro ao veicular que a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, (...) para definir ou limitar competências tributárias. Mister a análise pormenorizada do conceito privado de 'obrigação de dar' e a presente situação.
No caso em comento, as partes comprometem-se a realizar futuramente o negócio jurídico de compra e venda descrito no pré-contrato (compromisso de compra e venda de imóvel). Esta avença firmada pela compromissária-vendedora e pelo compromissário-comprador configura-se, inevitavelmente, como obrigação de dar coisa certa, disciplinada pelo Código Civil (clique aqui) nos artigos
Em seus comentários ao Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, Clóvis Beviláqua (Ed. Rio, vol. IV, p. 9) conceitua a obrigação de dar como sendo "aquela cuja prestação consiste na entrega de uma coisa móvel ou imóvel, para a constituição de um direito real (venda, doação, etc.), a concessão de uso (empréstimo, locação) ou a restituição ao dono."
Por certo, a distinção entre as obrigações de dar e de fazer não é tarefa das mais simples. Muitos são os doutrinadores que incorrem em erro ao tentar definir a tênue linha que as separa2. Ainda, há quem diga que em alguns contratos haveria tanto a prestação de dar como a de fazer3. Segundo tais autores, a compra e venda seria um exemplo. O vendedor contrai a obrigação de entregar a coisa (dar), bem como responder pela evicção e vícios redibitórios (fazer). Para diferençá-las, Carvalho de Mendonça4 ensina que "na prática, o recurso é considerar o caráter dominante para determinar a classificação."
O pensamento dos que dividem o compromisso de compra de imóveis em construção ou por construir em duas prestações sob o ponto de vista lógico não é de todo infundado, mas juridicamente é incabível. Aires Barreto5 explica que o "alvo de tributação é o esforço humano prestado a terceiros como fim ou objeto. Não as suas etapas, passos ou tarefas intermediárias, necessárias à obtenção do fim. Não a ação desenvolvida como requisito ou condição do facere (fato jurídico posto no núcleo da hipótese de incidência do tributo). As etapas, passos, processos, tarefas, obras, são feitas, promovidas, realizadas 'para' o próprio prestador e não 'para terceiros', ainda que estes os aproveitem (já que, aproveitando-se do resultado final, beneficiam-se das condições que o tornaram possível)." E continua: "somente podem ser tomadas, para sujeição ao ISS, as atividades entendidas como fim, correspondentes à prestação de um serviço integralmente considerado. No caso específico do ISS, podem decompor um serviço - porque previsto, em sua integralidade, no respectivo item específico da lista da lei municipal - nas várias ações-meios que o integram, para pretender tributá-las separadamente, isoladamente, como se cada uma delas correspondesse a um serviço autônomo, independente. Isso seria uma aberração jurídica, além de constituir-se em desconsideração à hipótese de incidência desse imposto." (grifado)
Pedimos vênia pela repetição, mas voltando ao nosso estudo de caso, temos a compromissária-vendedora que se vincula a entregar (dar) em prazo determinado um imóvel com características devidamente discriminadas (coisa certa).
O objeto do contrato é justamente o de entregar um dado bem (apartamento) em momento futuro, mediante o pagamento do preço ajustado. Inegável o caráter dominante da obrigação de dar e não de fazer na situação
Ademais, o sistema de direito privado adotado em nosso ordenamento traz a tradição como fator distintivo nas obrigações de dar. É pela tradição que se considera transferida a propriedade da coisa. Ora, o art. 237 do diploma civil vigente repete o disposto no art. 868 do Código de Clóvis e estabelece que até a tradição, pertence ao devedor a coisa.
De suma importância para a elucidação da controvérsia é estabelecer o momento da execução da obrigação, o momento de seu termo, em que a parte devedora se libera do vínculo obrigacional pelo cumprimento e a parte credora não mais tem o direito de exigi-lo. Este instante é que deve ser considerado para a caracterização da obrigação firmada. Nenhum outro. Antes dela, o compromissário-comprador não tem qualquer direito real sobre a coisa, mas apenas um direito pessoal de exigir o cumprimento do contrato. Destarte, a compromissária-vendedora é beneficiária e responsável pelos frutos e prejuízos que eventualmente ocorram até a tradição, ou o ato fictício que o represente.
Não se olvide que a construção é feita em nome da incorporadora e em seu nome será concedido o "habite-se" pela autoridade municipal. Igualmente em seu nome será registrado o bem no Cartório de Imóveis. Perceba que, conforme exaustivamente demonstrado linhas acima, a condição de proprietário não se altera pelo fato de haver promessa de venda durante a construção do imóvel.
Fica patente, portanto, que o ato de incorporação e construção em sua propriedade não acarreta à compromitente-vendedora o nascimento do fato jurídico tributário descrito no antecedente da norma do ISS.
Isto ocorre porque conforme explicitado no art. 1° da LC n°. 116/03, o ISS tem como fato gerador a prestação de serviço constante na lista trazida no anexo da Lei, a qual é taxativa. A prestação de serviço não descrito na lista da legislação complementar não se submete à tributação! Ademais, o fato eleito pelo legislador como apto para que incida a norma tributária mostra-se um evidente fazer. Qualquer outra interpretação levaria ao alargamento da hipótese de incidência prevista para a imposição do tributo, cominando-lhe a pecha da inconstitucionalidade.
Dessa maneira, após análise detida e comprometida com os princípios constitucionais que regem a tributação, mostra-se inexorável a conclusão pela não-incidência do ISS sobre o compromisso de compra e venda de imóvel em construção ou a construir, firmado entre incorporadoras e seus clientes, seja porque
i) o serviço de incorporação não consta na lista taxativa anexa à Lei Complementar n°. 116/2003 e, portanto, a cobrança não encontra respaldo legal;
ii) a na incorporação, a construtora constrói para si e em nome próprio, deixando de configurar a empreitada;
iii) é impossível e antijurídica a bipartição do contrato típico de compromisso de venda futura para fins de tributação.
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1 (Resp 57.478/RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 15.5.1995)
2 Entre eles, Washington de Barros Monteiro (1979, v. 4:87).
3 Sílvio de Salvo Venosa (2003, v. 2:101).
4 Doutrina e Prática das Obrigações, v. 1, n°. 61.
5 "ISS - Atividade-meio e Serviço-fim", Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 5, p. 83
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*Advogado do escritório Newley, Romanowski, Araújo & Guerra Advogados Associados
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