Crítica à Proposta da Min. Eliana Calmon
Não trata o presente artigo de mera crítica ao pensamento da insígne Ministra Eliana Calmon quanto à limitação temporal e etária ao exercício da profissão advocatícia no Brasil (esposado no texto de sua autoria "Qualificação dos Advogados para Atuação perante os Tribunais Superiores".
terça-feira, 13 de julho de 2004
Atualizado em 12 de julho de 2004 11:10
Crítica à proposta da Ministra Eliana Calmon de limitação temporal e etária para advogar perante os Tribunais Superiores
Adriano José Borges Silva*
I- Introdução
Não trata o presente artigo de mera crítica ao pensamento da insígne Ministra Eliana Calmon quanto à limitação temporal e etária ao exercício da profissão advocatícia no Brasil (esposado no texto de sua autoria "Qualificação dos Advogados para Atuação perante os Tribunais Superiores", disponível no site
Antes de tudo, trata-se de uma proposta de discussão colocada perante a comunidade jurídica, bem como uma crítica científica respeitosa ao escólio da minha ilustre conterrânea.
Fui surpreendido, confesso, com o entendimento da Exma. Ministra no sentido de que: "Não se pode conceber que um jovem bacharel seja capaz de, recém-saído da faculdade, com pouquíssima experiência e maturidade profissional, judicar nos Tribunais Superiores, cujos recursos e demandas contêm grande complexidades técnica".
Revolta-se a digníssima Ministra com o fato de que "para judicar nas Cortes Maiores" não existe imposição alguma, enquanto que "na formação dos Tribunais Superiores exige-se do advogado, que pretenda deles fazer parte, um mínimo de dez anos de advocacia".
Acrescenta, ainda, que:
"Talvez ninguém melhor do que os magistrados para dar o testemunho da baixa qualidade das peças processuais que chegam aos Tribunais, assoberbando e emperrando o trabalho e desperdiçando o tempo dos julgadores. E, pelo despreparo técnico, são os advogados tentados a ingressar em uma faixa de atuação cada dia mais próspera.
Refiro-me aos milagreiros, que hoje emigraram das instâncias ordinárias para os tribunais superiores. São profissionais de urgência e só sabem advogar à base de liminares. Afinal, nada têm a perder. São jovens, não têm nome como profissionais e estão interessados em sobreviver na advocacia". (grifos meus)
Conclui seu artigo propondo "uma limitação ao exercício da profissão, a fim de compatibilizar as exigências feitas aos componentes dos Tribunais com as direcionadas aos advogados que ali militam", pois "com a exigência, boa parcela dos advogados, os 'milagreiros' que vivem de liminares e lobbies em torno de facilidades na tramitação dos feitos, será afastada de forma salutar".
Diante da proposta em tela e dos fundamentos que a especam, não pude deixar de lançar minha imberbe opinião ou, talvez, a depender do referencial tomado pelos receptores deste texto, minha solitária voz de protesto contra a proposta defendida pela brilhante Ministra Eliana Calmon.
II- A Arte de Advogar
II.1- A formação profissional
Como se sabe, toda profissão reclama duas espécies de formação: a ética e a técnica.
O vocábulo "ética" denomina o caráter de cada pessoa, seu modo de ser, derivado da vida em sociedade (Schelling: "A moral em geral coloca um imperativo que só se dirige ao indivíduo, e exige apenas a personalidade do indivíduo; a Ética coloca um imperativo que supõe uma sociedade de seres morais e assegura a personalidade de todos os indivíduos através daquilo que ela exige de cada um deles").
Por sua vez, o "Seminário da Ética" de Jacques Lacan nos ensina que:
"A experiência moral como tal, a saber, a referência sancional coloca o homem numa certa relação com sua própria ação, que não é simplesmente a de uma lei articulada, mas também de uma direção, de uma tendência, e, para tudo dizer, de um bem que ele apela, engendrando o ideal da conduta. Tudo isto constitui, propriamente falando, a dimensão ética, e se situa do comando, quer dizer, além do que se pode apresentar com um sentimento de obrigação."
Entendo, assim, que a formação ética de qualquer operador do direito (e neste grupo se incluem os advogados) começa muito antes do ingresso na Faculdade. Vem de berço, da influência religiosa, dos professores do ensino médio e fundamental, enfim, do grupo social a que integra. A Faculdade de Direito, seja pública ou privada, é apenas mais uma das fontes da formação ética do profissional do direito.
Por outro lado, a formação técnica, em regra, tem seus pilares alinhados no decorrer da vida acadêmica do estudante de Direito. Em síntese, a técnica é o modo de realizar, racional e seguramente, uma finalidade prática útil. É, ao mesmo tempo, a bússola e o veículo do método.
Partindo-se desta premissa, pode-se dizer que a técnica jurídica, do ponto de vista do advogado, consiste na utilização dos meios adequados disponíveis à consecução do bem da vida sobre o qual paira o interesse do seu representado.
Ambas formações (ética e técnica) são imprescindíveis ao exercício da advocacia perante os órgãos judicantes, pois o advogado é o mediador da demanda da parte que representa, é o profissional que pede ao Juiz ou Tribunal que exerça a sua função de juris-dicto (dizer o direito).
Esta atividade de pedir por outrem, seu representado, alberga imensa responsabilidade (ética) e habilidade (técnica) profissional do advogado, para não acabar pedindo o que não se quer ou o que é impossível de ser concedido ou, ainda, não pedir o que é querido por seu constituinte.
Logo, no meu entender, ser um bom advogado independe da idade ou do tempo de prática no exercício da advocacia, basta uma boa formação ética e técnica do profissional do direito. Requisitos que, ao meu ver, bastam para a atuação advocatícia perante qualquer órgão jurisdicional, inclusive ante os Tribunais Superiores.
II.2- A Função do Advogado
Reza a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 133, que "o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei".
Indispensável porque, salvo as exceções legais, detentor do direito de postular a qualquer órgão do Poder Judiciário. O advogado é a ponte entre o desejo (interesse) do seu representado fulcrado numa norma coletiva e abstrata e o bem da vida pleiteado (querido) que será concedido (ou não) por intermédio de uma norma individual (singular ou plúrima) e concreta veiculada pelo juiz ou Tribunal.
Cícero definiu a advocacia como sendo "nobre e régio labor", o que foi circundado por Robespierre: "o amparo da inocência e o açoite do crime".
Ora, o exercício da atividade de representar o outro requer a observância de limites legais impostos pelo Legislador, além dos limites éticos do profissional. A boa técnica advocatícia urge a utilização de todos os meios adequados (úteis) e disponíveis (legais) para a defesa dos interesses do outro representado.
É oportuno lembrar que o advogado, por mais milagreiro que seja, não pode conceder ou denegar "liminares" e/ou pedidos de antecipação dos efeitos da tutela; quando muito, as requer.
Assim, partindo-se da infausta premissa tomada pela nobre Ministra: havendo "milagreiros que vivem de liminares e lobbies em torno de facilidades na tramitação dos feitos", forçoso concluir que (i) há membros do Poder Judiciário que reforçam o seu orçamento concedendo (ou denegando) liminares, ou (ii) existem magistrados influenciáveis por questões de status social e/ou político pelos chamados "lobbistas" ou, ainda, (iii) a desídia e incúria de magistrados é um fenômeno constante quando se tratar de "liminares" desprovidas de real esteio (fummus boni iuris e periculum in mora).
Chego a tais conclusões pelos seguintes motivos:
1º) Certamente, a Exma. Ministra, em seu artigo publicado, ao falar de "liminares" refere-se àquelas desprovidas de fundamentação jurídica (isto é, ausente o fummus boni iures e o periculum in mora), caso contrário deveria ter incluído em seu escrito todos os advogados, inobstante autorizados por lei, que pedem (ou já pediram) alguma "liminar" perante o Poder Judiciário e não somente aqueles que "nada têm a perder";
2º) Se tais "liminares" não possuem esteio jurídico, a sua concessão (ou denegação, a depender do caso prático) é fruto de corrupção passiva, prevaricação, negligência ou imperícia do magistrado que a concede ou a denega.
Desta forma, podemos chegar à conclusão que o advogado pode e deve utilizar-se de todos os meios legais que sejam úteis no exercício da representação do seu cliente; pois, estando presente os requisitos necessários para o deferimento da tutela cautelar ou da tutela antecipatória, o advogado está legitimado a requerer o respectivo provimento jurisdicional.
E, por sua vez, apesar da redação dos artigos aplicáveis dispor que o juiz "poderá" deferir o requerimento, a melhor interpretação indica que o magistrado "deverá" deferi-lo.
III- O Problema das Generalizações
Ao afirmar que os "milagreiros" "são jovens", que "não têm nome como profissionais" e "nada têm a perder", o texto guerreado, salvo melhor exegese, generaliza perigosamente que todos os advogados recém-formados não possuem habilidade (técnica) para exercer a atividade da advocacia, muito menos responsabilidade (ética) profissional.
Ademais, da forma que foi colocado, o artigo parece preconizar que tão somente nos Tribunais Superiores se fazem necessárias a ética e a técnica dos advogados que ali atuam.
Receio que defender ambas as teses seja tarefa inglória, mesmo que anunciada por Ministro do Superior Tribunal de Justiça...
Saiba Vossa Excelência que os jovens advogados, na sua quase totalidade, têm sim muito a perder ao proceder de modo temerário, bem como possuem uma imagem a zelar perante a sociedade. Muito menos sobrevivem na advocacia à base de "liminares". Reputo infeliz a generalização pronunciada no artigo criticado.
Inclusive, dizem que toda generalização é perigosa e claudicante. Ouso dizer que toda generalização é desprovida de seriedade científica. O que me leva a duvidar, inclusive, da autoria do artigo combatido, tendo em vista o apuro científico peculiar da ilustrada Ministra Eliana Calmon.
Confesso, também, que a generalização colocada gera dúvidas quanto à imparcialidade de V.Exa. ao apreciar um recurso (art. 105, II e III, da CF/88) ou uma ação de competência originária do STJ (art. 105, I, da CF/88) subscrito por um advogado "recém-formado", já que "não se pode conceber que um jovem bacharel seja capaz de ... judicar nos Tribunais Superiores".
IV- A Função do Magistrado
Disse anteriormente que a função dos Juízes e dos Tribunais é dizer o direito (juris-dicto). Antes de adentrar ainda mais no mérito da questão, cabe esclarecer que não se deve confundir tal atividade com legis-dicto (dizer a lei).
Este dever-poder de "dizer o direito" dos Magistrados tem como limites o conflito de interesses colocado pelas partes e os seus respectivos pedidos. Percebe-se, de pronto, que os Magistrados não estão aprisionados às normas invocadas pelos advogados (causa de pedir remota), mas tão somente aos fatos (causa de pedir próxima) e aos pedidos.
Entendo que, quanto aos fatos (apresentados ou não), não há uma genuína restrição ao ato cognoscitivo do Magistrado, pois a busca da verdade real deve ser o ideal de todos os operadores do direito, inclusive - e principalmente - daqueles que detém o dever-poder de "solucionar" os conflitos de interesses. O velho brocardo jurídico "quod non est in actis, non est in hoc mundo" não deve ser albergado pelo direito moderno do século XXI, pois "o que não está nos autos" deve estar em algum lugar... E, certamente, acessível ao Magistrado, pois qualquer fato somente pode vir a ocorrer no mundo fenomênico. Caso contrário, não é fato.
Por outro prisma, podemos concluir facilmente que "dizer o direito" não se confunde com "solução do conflito de interesses", pelo menos não no sentido estrito de "solucionar". Há, tão somente, solução da resistência à pretensão de uma das partes envolvidas. O conflito de interesses permanece, pois o desejo da parte perdedora por determinado objeto não desaparece. O ser humano ainda não alcançou, ainda, este nível de evolução (espiritual, mental ou ambos?).
Quanto aos pedidos, estes sim, são essenciais à atividade jurisdicional e delimitadores desta. Se não houver pedido, o Magistrado não tem como "dizer o direito", pois lhe falta parte do objeto sobre o qual deve debruçar sua percepção cognitiva. Em havendo pedido, a sua atividade não pode ir além (nem aquém, no sentido de não apreciação) do que lhe é requerido.
Está, portanto, o Magistrado, atrelado aos pedidos formulados pelas partes. Se este ou aquele pedido merece ser provido ou não, é - em regra - questão de interpretação normativa. Em tese, pura exegese.
Assim, por mais esta razão, entendo exagerada a posição tomada pela brilhante Ministra, pois, repito, se há "milagreiros", há quem intervenha para que estes "milagres" aconteçam. Na verdade, a "boa parcela dos advogados" que se refere à douta Ministra tão somente pedem que "milagres aconteçam", data maxima venia, quem realmente possui o "poder" (não o dever) de operar tais milagres são os próprios pares (no sentido lato) de V.Exa.
E, ao contrário do que se afirma, acredito que estes "milagreiros" não são a maioria, nem cometem tais atos em razão da tenra idade ou da pouca experiência. É, antes de tudo, para a minha desilusão e vossa revolta, uma questão de formação ética e técnica.
V- Conclusão
Forçoso, portanto, concluir que o grave problema trazido à baila pela festejada Ministra Eliana Calmon, qual seja a baixa qualificação de parcela dos operadores do direito no Brasil, não encontra esteio nas causas elencadas em seu artigo: a pouca experiência e maturidade profissional, assim como a "pouca idade".
Trata-se, sem sombra de dúvida, de um problema ocasionado por falhas na formação ética e técnica dos profissionais do direito. Nada tendo a ver com idade ou tempo de exercício profissional. Razão pela qual manifesto a minha crítica à proposta delimitadora exarada pela célebre Ministra.
Além do que, se a proposta defendida no artigo criticado fosse veiculada em enunciado normativo, possivelmente, em pouco tempo, nos depararíamos com inúmeras peças elaboradas por "ghost-writers". E, imaginem, se esta prática também fosse adotada por alguns Magistrados ("os milagreiros"), que limitariam a sua atividade à assinatura de decisões redigidas por assessores ou auxiliares...
Sendo assim, nesta oportunidade, de espeque no Art. 7º, XVII, da Lei 8.906/94, proponho uma moção de desagravo a todos os jovens advogados do Brasil que, como eu, se sentiram ofendidos em razão de sua profissão pelas idéias expostas no artigo da Ministra Eliana Calmon, que diante do seu propalado saber jurídico e ilibada reputação, certamente, não teve a intenção de ofender ninguém.
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* Advogado