A linguagem jurídica em inglês: desafios da tradução jurídica
Ter conhecimento da formação histórica da linguagem jurídica em inglês e do sistema da Common Law é essencial na tradução de textos jurídicos para que o tradutor seja capaz de tomar escolhas estilísticas, convencionais e idiomáticas embasadas. Neste artigo faremos uma breve exposição de alguns desafios da tradução jurídica, da formação histórica do sistema da Common Law, da evolução da linguagem jurídica em inglês e das implicações dessa evolução na tradução entre o português e o inglês, abordando, como exemplo, o caso dos binômios.
quarta-feira, 5 de março de 2008
Atualizado em 26 de fevereiro de 2008 08:26
A linguagem jurídica em inglês: desafios da tradução jurídica
Luciana Carvalho*
Ter conhecimento da formação histórica da linguagem jurídica em inglês e do sistema da Common Law é essencial na tradução de textos jurídicos para que o tradutor seja capaz de tomar escolhas estilísticas, convencionais e idiomáticas embasadas. Neste artigo faremos uma breve exposição de alguns desafios da tradução jurídica, da formação histórica do sistema da Common Law, da evolução da linguagem jurídica em inglês e das implicações dessa evolução na tradução entre o português e o inglês, abordando, como exemplo, o caso dos binômios.
A tradução jurídica
São dois os principais desafios da tradução jurídica envolvendo o inglês e o português. O primeiro é o fato de a linguagem jurídica ser uma linguagem de especialidade, fazendo com que o tradutor tenha que, necessariamente, conhecer não apenas as duas línguas (i.e. o inglês e o português), mas as duas linguagens de especialidade (i.e. o inglês jurídico e o português jurídico) para que possa, assim, traduzir 'linguagem jurídica em inglês' por 'linguagem jurídica em português'. O segundo desafio é o fato de a tradução entre o português e o inglês envolver dois sistemas jurídicos de diferentes famílias do direito. O sistema brasileiro pertence à família Romano-germânica, enquanto o anglo-americano pertence à família da Common Law. Conseqüentemente, a tradução jurídica implica a passagem do texto de partida não só para uma língua de chegada, mas também para um sistema jurídico distinto.
Processo tradutório
Língua 1 |
Língua 2 |
Inglês |
Português |
Sistema 1 |
Sistema 2 |
Common law |
Civil law |
A Common Law
Recebe o nome de Common Law a família de direito que compreende os países de língua inglesa que adotaram a tradição jurídica da Inglaterra. A Common Law foi introduzida no século XI por Guilherme, o Conquistador. Até a conquista normanda, o território que conhecemos hoje por Grã-Bretanha era dividido em tribos que falavam línguas germânicas (e.x.: anglo, saxão, nórdicas) e outras (e.x.: celta). Eram várias as línguas usadas no Direito que era próprio de cada tribo e, predominantemente, oral.
Para consolidar e centralizar o poder em uma área tão pulverizada, Guilherme, o Conquistador, implementou um sistema jurídico que recebeu o nome de common law of the land (uma tradução literal seria o direito comum do território). Entretanto, ao contrário do que o nome parece sugerir, o sistema nada tinha de comum a todos, pois se tratava de um sistema para tratar unicamente dos interesses do poder central, i.e., da coroa. O rei nomeou juízes para julgar as ações envolvendo questões de interesse da coroa, porém não preestabeleceu normas a serem adotadas. Assim, os juízes, ao resolver as ações que lhes eram apresentadas, passaram a sedimentar a jurisprudência (precedents) que serviria de base para os futuros casos semelhantes e inauguraria o fim da tradição oral do período anterior, formando um sistema jurídico essencialmente jurisprudencial.
Comparação dos sistemas
Romano-germânico |
Common Law |
Origem no direito romano |
Origem no direito inglês |
Fonte de direito : Codificação (Poder Legislativo) |
Fonte de Direito: jurisprudência (Poder Judiciário) |
Europa continental |
Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte |
América Latina |
Estados Unidos |
Brasil |
Além das diferenças jurídicas e históricas entre o sistema da common law e o romano-germânico, há ainda importantes conseqüências sentidas até hoje e decorrentes da variedade de influências lingüísticas sofridas pela common law.
A partir da chegada de Guilherme, o Conquistador em 1066, enquanto o francês era a língua da corte, era o latim que predominava no Direito, pois era a língua do clero, dos instruídos, ou seja, dos juízes da coroa e dos redatores de documentos oficiais, leis, cartas e ordens. Mellinkoff (1963:69) afirma que é possível deduzir, mas talvez nunca realmente provar, que durante a época posterior à conquista normanda três línguas eram usadas: o latim, o francês e o inglês. Até o século XIV, apesar de a língua do povo ser o inglês, o latim era a língua do direito que foi gradativamente substituída pelo francês, e não pelo inglês, mais tarde. Até o século XVIII na Inglaterra, o direito ainda adotava o francês (Law French) e o latim (Law Latin) em menor escala.
A linguagem jurídica em inglês
Com tantas influências lingüísticas, desde as línguas germânicas, passando pelo latim e pelo francês, a linguagem jurídica cresceu desordenadamente e até hoje sentimos as conseqüências desse fenômeno, principalmente ao traduzir documentos em inglês para o português.
Uma das conseqüências que temos que enfrentar até hoje é a existência de termos jurídicos com acepções similares, mas com origem em línguas diferentes, pois devido às múltiplas influências lingüísticas, o inglês assumiu a tendência de associar palavras sinônimas. É o que ocorre com freedom e liberty, em que uma tem origem no inglês, a outra no francês.
Francês e Inglês
Inglês (anglo-saxão) |
Francês (normando) |
Bid |
Offer |
Freedom |
Liberty |
Land |
Country |
Worth |
Value |
Theft |
Larceny |
Outros exemplos são bargain and sale e breaking and entering, que combinam um termo oriundo do francês com outro do inglês antigo. O resultado desse fenômeno é interessante. No caso de freedom e liberty, por exemplo, as palavras são muitas vezes empregadas juntas, formando um binômio: freedom and liberty, com uma única acepção. Em outros casos, como em bid e offer, os termos são empregados em contextos diferentes: bid para o caso de leilão e licitação e a palavra offer, em matéria contratual. O primeiro caso (i.e. a formação de binômios) é um dos mais interessantes para a tradução jurídica.
Os binômios
Os binômios que examinaremos são os compostos por palavras sinônimas.
Binômios presentes na linguagem jurídica |
deem and consider |
Nesse sentido, Garner (2001: 43) recomenda de forma explícita evitar o uso de binômios, afirmando que a linguagem jurídica é historicamente redundante e que essas expressões não são exigência da área. O autor recomenda, no caso de as palavras serem sinônimas (e.g. convey and transport), usar a que se encaixar melhor no contexto.
De acordo com essa orientação, os binômios na tabela abaixo (Mellinkoff, 1963:25) deveriam ser, no próprio texto original, lidos e simplificados pelo termo na coluna da direita.
Duplicação inútil |
Usar |
annul and set aside |
annul |
entirely and completely remove |
remove |
last will and testament |
will |
totally null and void |
void |
without let or hindrance |
without hidrance |
As conseqüências para a tradução
Apesar de a bibliografia sobre linguagem jurídica em inglês ser unânime em recomendar a simplificação e indicar a leitura dos binômios como unidade, - além de definir os binômios formados por palavras sinônimas como duplicação inútil -, temos notado que os tradutores brasileiros não conferem esse tratamento aos binômios durante a tradução. Acabam por traduzir os componentes do binômio isoladamente em uma busca infrutífera de palavras sinônimas a serem empregadas no texto de chegada. A conseqüência é a produção de um texto-alvo pouco idiomático que não representa uma tradução de 'linguagem jurídica por linguagem jurídica'.
O que propomos é que, na tradução de binômios e com a preocupação de traduzir 'linguagem jurídica por linguagem jurídica', o tradutor brasileiro deva, antes, verificar se cada um dos elementos dos binômios com que se depara tem utilidade. Assim, diante de um binômio formado por sinônimos, o tradutor deverá adotar a recomendação de Garner acima (i.e. escolher a palavra ou que melhor se aplicar ao contexto) e, em seguida, traduzi-la para a língua-alvo levando em conta a terminologia adotada no sistema jurídico de chegada. Ao proceder dessa forma, o tradutor garantirá um texto-alvo mais natural e evitará possíveis problemas de interpretação que um termo supérfluo pode causar.
Binômio |
Tradução literal |
Tradução jurídica |
of any kind or nature |
de qualquer tipo ou natureza |
de qualquer natureza |
|
total direito e autoridade |
plenos poderes |
|
dor e sofrimento |
danos morais |
|
uso e desgaste |
desgaste natural |
Por fim, cabe ressaltar a importância de o profissional da tradução conhecer não só os sistemas jurídicos envolvidos na tradução, mas também a origem e formação históricas de suas línguas de trabalho para poder tomar decisões embasadas que lhe permitam traduzir 'linguagem jurídica por linguagem jurídica' respeitando as convenções e estilo da área de especialidade.
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Bibliografia citada e consultada
BHATIA, V. K. (1997) Translating Legal Genres. In: Text Typology and translation. Amsterdam/Philadelphia.
CARVALHO, L. (2006) Os dicionários jurídicos bilíngües e o tradutor - dois binômios em direito contratual in TradTerm 12 - Revista do CITRAT. São Paulo: Humanitas.
CARVALHO, L. (2007) A tradução de binômios nos contratos de common law à luz da lingüística de corpus.
CHILD, B. (1992) Drafting Legal Documents. Principles and Practices. 2nd. edition. St. Paul, Minn.: West Group.
DAVID, R. (1998) Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Trad. Hermínio de Carvalho. São Paulo: Martins Fontes.
DE GROOT, G.-R. (1998) Language and law In:
GARNER, B. (20021) The elements of legal style.
MELLINKOFF, D. (1963) The language of the law. Eugene: Resource Publications.
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*Advogada com graduação pela Universidade Federal do Pará - UFPA (1999), Especialização em Direito Contratual pela Pontíficia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2001), Especialização em Tradução pela Universidade de São Paulo (2003) - USP e Mestrado em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela Universidade de São Paulo USP (2006) na área de tradução jurídica e lingüística de corpus. Atualmente é professora assistente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Tem experiência na área de Lingüística e Direito, com ênfase em Tradução jurídica e lingüística de corpus, atuando principalmente nos seguintes temas: direito contratual, terminologia jurídica, tradução jurídica, lingüística forense.
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