Saudades
Poetou Drummond de Andrade que "Não há vivos; há os que morreram e aqueles que esperam a vez...". Pois bem. Enquanto paciente (e irresignadamente!) aguardo a minha, assisto à partida dos amigos e contemporâneos.
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008
Atualizado em 6 de fevereiro de 2008 13:37
Saudades
Manuel Alceu Affonso Ferreira*
Poetou Drummond de Andrade que "Não há vivos; há os que morreram e aqueles que esperam a vez...".
Pois bem. Enquanto paciente (e irresignadamente!) aguardo a minha, assisto à partida dos amigos e contemporâneos. Alguns, de partidas antes anunciadas pela velhice, pelas doenças ou pelos riscos negligentemente assumidos. Já outros, todavia, apartando-se de súbito, sem os pré-avisos que servem, ao menos, para suavizar o choque futuro.
Destes últimos, pensava eu durante o concorrido velório na Assembléia Legislativa, Hélio Quaglia Barbosa foi o derradeiro, carregando consigo o patrimônio moral, intelectual e jurídico, que suas imensas virtudes, e apenas elas, souberam construir.
O "Quaglia", como o chamávamos, a um só tempo era visceralmente ético, sem ser farisaico; inteligente, sem ser presunçoso; culto, sem ser pedante; tenro, sem ser demagogo; sensível, sem ser piegas; arguto, sem ser ladino. Tinha, dos bacharéis de sua geração, a magnânima emoção e o calor humano. Juiz na essência e na imanência, reverenciava a lei, mas jamais a manejou como édito inflexível, transformando-a em jus durum alheio ao drama concreto submetido a julgamento.
Tais talentos, o mais tarde ministro do Superior Tribunal de Justiça exerceu-os desde os idos em que, no Secretariado Paulista, colaborou com Hely Lopes Meirelles. E transportou-os à Magistratura, onde os autos que recebia não representavam mero e achavascado papelório de intermináveis laudas, mas sim fiel tradução das imensas angústias de litigantes aflitos.
Dizia Rolland que a verdadeira justiça não permanece sentada diante de sua balança, limitando-se a ver oscilarem os seus pratos. Ao contrário, Quaglia pertencia à categoria dos juízes ativos e conscienciosos, estes que esmiuçam as particularidades de cada litígio antes de fazer sobressair o peso de um daqueles pratos, cientes de que, antes de corresponder a um medíocre e glacial cumprimento da disposição legislada, a justiça há de conformar-se à vontade constitucional e homenagear o que for adequado.
Faz pouco, contou-me certo ilustre membro de tribunal superior que, ao receber qualquer processo, desde logo forma convicção lastreada na noção de justiça, para aí então - e somente então - averiguar se o seu projeto decisório combina com aquele adotado pelo legislador. Sem chegar a tanto, mas disso próximo, Quaglia teimosamente perseguia o justo, pelo que, preservado o objetivo maior buscado, a justiça, cuidava de emprestar à lei a interpretação ditada pela eqüidade.
Tudo isso relembrei, esperando a minha vez (...), durante aquela vigília póstuma na qual, a evidenciar a tocante simplicidade do ali velado, a bandeira do São Paulo Futebol Clube ocupava lugar destacado. Quiçá tenha sido, no apaixonado torcedor, a melhor oportunidade em que, vencendo a inata timidez de menino, conseguiu alardear a (justíssima...) preferência tricolor.
É, a imortalidade principia com a morte. O nosso querido Quaglia deixa riquíssimas lições e infindáveis saudades, ainda que, nessa transitória ausência física, graças a Deus eternamente presente...
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