MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. OBB - Ordem dos Bacharéis do Brasil

OBB - Ordem dos Bacharéis do Brasil

Já contei que tenho um grande amigo, advogado dos bons, que costuma dizer: "nossa, mas se os advogados que passam na ordem são assim, imagina os que não passam...". É um gozador.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Atualizado em 22 de janeiro de 2008 07:20


OBB - Ordem dos Bacharéis do Brasil

Mauro Tavares Cerdeira*

Já contei que tenho um grande amigo, advogado dos bons, que costuma dizer: "nossa, mas se os advogados que passam na ordem são assim, imagina os que não passam...". É um gozador.

Agora tem a juíza federal no Rio, que "pôs pra dentro" da advocacia seis bacharéis, apesar da decisão já ter sido cassada. Parece que o caso é que a juíza em questão entende que o exame da ordem é inconstitucional. O presidente da ordem de lá diz que não, que já tem manifestação do Supremo pela constitucionalidade. Segundo matéria que li no Migalhas (Migalhas 1.821 - 18/1/08 - clique aqui -), ele classifica de ignorantes e despreparados a maioria dos bacharéis em direito, relatando que apenas 10% dos inscritos são aprovados nos exames no estado do Rio, e termina dizendo que no Brasil existem hoje 600 mil advogados habilitados pela ordem, e 1,5 milhão de estudantes nas 1.077 faculdades brasileiras (se os dados citados estiverem corretos, a redução de 7 mil vagas em faculdades de direito, anunciadas recentemente pelo MEC, representa, em cálculo singelo, menos de 0,5% das vagas existentes.

A ação que obteve liminar, de seis bacharéis, na verdade é uma iniciativa de uma associação, denominada "movimento nacional dos bacharéis em direito do Rio de Janeiro" (é nacional ou é do estado do Rio?). Na realidade, esse pessoal deveria fundar uma espécie de OBB. Daí teríamos a OAB e a OBB, sendo esta última a ordem dos bacharéis do Brasil.

A notícia dos bacharéis que estão fora dos quadros da ordem estarem se organizando não é nada surpreendente. Se estamos com 1,5 milhão de estudantes, ou pelo menos mais de 1 milhão, já há vários anos, e se considerarmos que o índice de reprovação médio nos exames, ao longo dos últimos dez anos, em todo País, inclusive em provas consecutivas realizadas pelos mesmos candidatos, seja 30%, seremos obrigados a concluir que o número de bacharéis não advogados é pelo menos o dobro dos bacharéis advogados, podendo ser até o triplo, a depender da real taxa média de reprovação. Isso obviamente daria muito poder aos membros da OBB. Todos obviamente tem família, amigos etc. Uma pessoa indignada e se julgando vítima tem um poder de persuasão bem maior que uma pessoa razoavelmente satisfeita, o que é explicado pela psicologia. Pode a OBB formar um lobby fantástico, eleger deputados e senadores. Alguém tem um problema, ou melhor, we have a problem. E o problema é bem maior do que o presidente da ordem do Rio imagina, julgando-se vítima de uma leva de "despreparados ignorantes".

O problema é bem maior que a ação judicial (parece que um mandado de segurança) do Rio, e o nervosismo do presidente da ordem daquele estado, e o apoio que recebeu das outras ordens, porque, por uma razão ou outra, milhões de pessoas acreditaram que ser advogado era uma boa idéia, prestaram vestibular em uma faculdade regular, e "passaram", bem ou mal "estudaram" ou deveriam assim ter feito, e a grande maioria pagou caras mensalidades, a partir de grandes sacrifícios familiares, e foram aprovados, mês após mês, ano após ano, e ao final receberam efetivamente um diploma com registro no MEC. Não são "foras da lei", nem são tampouco ignorantes, pelo menos no nosso sistema vigente. Eles tem um diploma universitário válido.

A questão é que há uma desregulamentação, um "livre mercado" de porteira aberta pra quem tem dinheiro, no critério criação de faculdades de Direito, sem fiscalização adequada quanto à medição de resultados no decorrer do curso, e há uma regulamentação bem mais rigorosa na habilitação para a advocacia (e olha que, em termos absolutos, não há realmente como considerar o exame da ordem difícil). Isso é totalmente errado, pois se o objetivo final é advogar, a faculdade então é uma ilusão, vendida a preço de ouro ao estudante. Por que a OAB então, caso o procedimento de controle de mercado, ou como quer que denominem o sistema, seja correto, não se responsabiliza pelo vestibular nas faculdades de direito, e pelo controle das faculdades, através de um convênio com o MEC? Porque deixar o pobre gastando seus últimos vinténs para depois acontecer o óbvio, ser barrado por não ter condições de passar no exame, já que não devidamente preparado? Notem que são cinco anos, que, para quem almeja a advocacia, não servirão para absolutamente nada, caso não haja aprovação no exame.

Os médicos, os arquitetos e também os engenheiros, dentre outros profissionais, não tem exame do órgão de classe respectivo. Pedem apenas a sua inscrição ao se formarem. O mercado cuida de dizer quem tem capacidade ou não. Então, se uma faculdade começa a despejar despreparados, eles simplesmente não arrumam emprego ou colocação, pois o mercado seleciona. O mercado, aliás, tem uma prova bem melhor que a da OAB. Nela, além de ter conhecimento, tem que ter energia, ser simpático, ser pragmático, ter boas relações, conhecer outras matérias que a vida ou outras faculdades e cursos ensinam, saber idiomas, e ter também muita sorte. Mas a circunstância de não haver exame, talvez obrigue a própria classe envolvida e as autoridades a exercerem uma vigilância contínua. Na área do direito o exame talvez acabe prejudicando. Qualquer um, desde que tenha dinheiro para investir, pode abrir uma faculdade, e qualquer um pode entrar numa faculdade e, pelo visto, também se formar, já que o exame da ordem vai barrá-lo mesmo! Acho que isso é uma espécie de fraude, pois talvez esse "qualquer um" não saiba desse plano todo ou dessa infeliz estratégia, e esteja acreditando que vá indo bem, que "conseguirá vencer". As impressões, lembremos, são relativas. Ninguém se julga idiota ou ignorante, a menos que sofra de ausência aguda de auto-estima.

E tem um amigo nosso, que trabalha no RH de uma grande empresa, muito competente naquilo que faz, que estudou Direito depois de "mais velho" com muita dificuldade, e não consegue passar na tal da prova. Acho que é porque fica muito nervoso. Toda vez que vem ao escritório, meio que para justificar seu insucesso, diz para quanto subiu o preço da vaga na OAB. Que o fulano comprou etc. Dependendo do fulano eu acredito que comprou a vaga mesmo. E agora, depois desse exame "anulado", acabei dando razão para o nosso amigo, e parei de me divertir com as histórias dele, que até então julgava ilusórias, geradas pela raiva. E quantas vagas já foram compradas na OAB? Ou será que a única fraude que já existiu no País foi esta que foi descoberta recentemente em São Paulo? Todos sabem que as provas são regionalizadas, os critérios são distintos, as correções subjetivas, a redação das questões não é lá muito "religiosa", e muitos dizem que existem apadrinhamentos, privilégios, etc. Ou estou contando alguma novidade? E olha, no mercado, pelo menos na iniciativa privada, ninguém compra prova não. E tem prova todo dia. E engraçado é que acabei de ler naquele jornal de propaganda da OAB/SP, n°. 324, que o presidente disse ao delegado da polícia federal, que já tem "elementos para afirmar, de forma categórica, que o vazamento não ocorreu dentro da OAB/SP". Pois é, quem sabe foi no quintal lá de casa.

E esse negócio de chamar um tanto de gente no Brasil, nesse País de imensa desigualdade na distribuição da renda, campeão ao contrário nos índices internacionais que medem esta modalidade econômica e social, de "ignorante" ou "despreparado", eu entendo condenável. Acho que ignorante é o País e são os governantes. Sei que tem bastante gente mole, que não se esforça e não quer se desenvolver. Isso é fato. Mas a maioria das diferenças vem da desigualdade de oportunidades. Vou contar então uma breve história.

Quando menino (tinha uns nove ou dez anos), na minha pequena cidade, meu pai comprou uma caixa de livros, destas de coleção, do José Mauro de Vasconcelos. Nunca vi livros de histórias mais tristes, a mais conhecida é meu pé de laranja lima. No sábado, ficava sentado no jardim lendo aqueles livros. Cada página eram umas três ou quatro lágrimas. Depois do almoço, passava lá um menino de minha idade, engraxate, com aquela caixa de madeira nas costas. Seu nome era Alberto, e a gente o chamava de Dinho. Quando ele passava, dava um rapa nos sapados de casa, e convencia meu pai a contratar o serviço para todos, mesmo que não precisassem. E ficava lá mais de hora conversando com o Dinho e ajudando ele a engraxar os sapatos. Era um menino muito bom. Se eu fosse mais esperto, naquela época, nem precisaria ler os livros do Vasconcelos, tamanho o sofrimento do Dinho em sua pequena casa (ou barraco), em que morava com a mãe solteira, o padrasto e uns cinco irmãos. Vida realmente dura, desde a mais tenra infância. Há uns dois anos, visitando meus pais, ao passar por um boteco da cidade, encontrei com algumas pessoas que me disseram que o Dinho tinha vindo para São Paulo, trabalhado em tudo que é canto, e conseguido se formar em Direito. É um vitorioso o Dinho. Tentei de toda forma arranjar o seu endereço ou telefone, e até hoje não consegui. Mas estou orgulhoso dele, de ter vencido tantas dificuldades e conseguido se formar.

Não sei se o Dinho, tendo se formado em Direito, conseguiu ser aprovado no exame da OAB. Não sei qual faculdade ele cursou, já que a minha fonte não tinha estas informações. Vamos que o Dinho seja um bacharel sem OAB, que não tenha conseguido ser aprovado, que seja um desses 1,2 ou 1,8 milhão. Vamos que ele não saiba falar inglês e espanhol ou não consiga assessorar a abertura de capital de uma empresa. Desculpem os que não concordam comigo, mas o Dinho não é um ignorante. A diferença entre mim e o Dinho é que eu ficava na cama de minha mãe conversando e ouvindo histórias até tarde da noite, para depois meu pai me carregar adormecido para a minha cama; a diferença é que andei mais de bicicleta, comi fígado de boi de quinta feira e li o José Mauro de Vasconcelos, o Fernando Sabino e o Guimarães Rosa. Se o pior cego é aquele que não quer ver, o pior poderoso, sem dúvida, é o que ignora as razões que o levaram a ter o seu poder, seja ele de que natureza for.

Quando estudei na Unicamp, uma universidade realmente de primeiro mundo, e lá eu não estudei Direito, era curioso observar as roupas, carros, e depois as casas dos meus colegas. A Unicamp é pública e só estuda lá quem é realmente abastado, ressalvadas as exceções, pois, como aprendi com um grande mestre que tive na faculdade de Direito, o saudoso Mentala Anderi, "as exceções nada mais fazem do que confirmar as regras". E até mesmo eu, muitíssimo mais bem aquinhoado que o Dinho, lá era uma evidente exceção.

E, mudando de assunto sem realmente mudar, a proliferação de faculdades de Direito é uma das coisas mais impressionantes que já vi. Só comparável à primeira vez que vi chegar um fax, mandando um papel escrito para outra cidade no mesmo segundo; coisa realmente de maluco. Quando fui para Campinas, jovem mineiro "sem dinheiro no banco", mas com esperança de sobra, e olha que não faz tanto tempo assim e que algumas coisas não mudaram nada, lá tinha só uma faculdade de Direito, que acabei cursando. Eram duas turmas matutinas e duas noturnas, cada uma com uns cinqüenta alunos. Quando me perguntavam se não era muito estudante de uma coisa só, respondia que em direito eram muitas as opções e caminhos. De concursos específicos ou gerais até bons cargos em empresas privadas, passando pela carreira típica de advogado militante. Hoje, em Campinas, são inúmeras faculdades. Somente uma, segundo me contaram, recebe alunos que formam doze ou catorze turmas iniciantes. Muitos deles ficam no meio do caminho. Não conseguem pagar as mensalidades até o final, ou realmente não tinham a mínima base. Ponto para as faculdades, que receberam o dinheiro por um tempo. E mais da metade, pelos números que vimos, deixam lá seu dinheiro e seu esforço, mas não concluem o objetivo final, a sua meta, pois não passam na OAB, na prova de um dia que julga os cinco anos.

E sabem quem são os para-legais (outro dia conto como é nos EUA) em alguns escritórios brasileiros? Os advogados que não passam no exame, e viram estagiários eternos, ou advogados invisíveis a baixo custo. E mais ainda, existe um jeito, conforme me disseram, de eternizar a condição de estagiário, sendo necessário apenas ir renovando a carteira da OAB e, lógico, pagando a mensalidade respectiva. E então estes pseudo-advogados, ou bacharéis, ou como quer que sejam chamados, tem acesso a autos, despacham em secretarias e até com juízes, fazem petições assinadas por outros etc. Só não fazem audiência e sustentação oral. E a OAB logicamente que sabe disso tudo. E isso é um caso para a OAB ou para a OBB? E isso é certo ou errado? Seria mesmo justo, então, negar a estas pessoas ao menos esta condição? Mas eticamente, dentro dos "rigorosos" princípios da casa, isso não seria incorreto? E não há, portanto, um aproveitamento da situação toda gerada por esta estrutura ignóbil e falida? Pensemos, ou melhor, oremos!

E agora, que o País está cheio de bacharéis advogados, e mais cheio ainda de bacharéis não advogados, e que todos estão democraticamente se organizando, o que também é perfeito, pois tanto o direito de se associar quanto o de propor ações é constitucional, não havendo, a meu ver, motivos para tanto estresse de quem quer que seja, quanto mais de um advogado talentoso como o líder da OAB/RJ, o País está precisando mesmo é de engenheiros. Será que alguém acredita que algum País, instituição ou empresa vai para frente sem o mínimo planejamento ou direcionamento de longo prazo? Será que não foi por isso, que pelo menos no critério desenvolvimento, a Coréia do Sul nos deixou comendo poeira? Pois é, será que ainda dá tempo deu me formar engenheiro? Será que até eu me formar o Edson Lobão sairá da pasta de Minas e Energia?

E porque este povo todo, o governo e o ministério da educação, e a OAB e as universidades todas, e as associações dos bacharéis, e instituições outras diversas com representatividade, e até o judiciário, se o caso (lembram que estamos em uma democracia?), não sentam então e começam a resolver isso? A planejar o futuro? A tentar um futuro melhor e mais digno?

Vejam que a mesma situação está fazendo com que quase todos sejam vítimas. São vítimas os bacharéis que não consolidam seu objetivo. São vítimas os advogados que vêem ameaçado seu status, afinal comprovaram seu conhecimento no exame do órgão de classe e não merecem a concorrência dos "despreparados"; e é vítima a sociedade, em vista da qualidade dos serviços, que, convenhamos, já não vai às "mil maravilhas", e que será reduzida caso não exista o controle atual. Além destas vítimas principais, há algumas secundárias, e há também, ao que parece, os que se beneficiam com a situação, que deixo a critério de conclusão e escolha de cada leitor (a). E imaginem só uma coisa: se todas as faculdades fossem boas, e todos passassem no exame da ordem, o que seria desta profissão e deste mercado? Viu como o sistema inconveniente é até conveniente? Dá mesmo para continuar assim?

Eu sei que ciente de tudo isso, ontem de madrugada, tentei dormir. Foi quando começou a marcha. Eram milhões e milhões, de advogados, bacharéis, estudantes e enganados, todos munidos daqueles códigos antigos, de dizeres ainda mais antigos, procurando trabalho, uma colocação, respeito à sua condição, ou ao menos uma petição ou contrato para fazer, um divórcio que fosse; e em sua marcha massacravam toda a sociedade, que antes os engolia, e derrubavam prédios que antes eram sólidos, e faliam instituições já então desacreditadas, e todos, mas todos mesmo, reclamavam por seus legítimos direitos.

__________________


*Advogado do escritório Cerdeira e Associados











__________________

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca