Te Cuida, Latorraca!
Quem surgiu primeiro, o camelo ou o dromedário? Dizem que foi o dromedário, isto porque a idéia inicial era fazer um camelo, um animal standard, econômico, capaz de transportar pessoas e cargas até mesmo pelo deserto.
sexta-feira, 30 de novembro de 2007
Atualizado em 29 de novembro de 2007 08:58
Te Cuida, Latorraca!
Edson Vidigal*
Quem surgiu primeiro, o camelo ou o dromedário? Dizem que foi o dromedário, isto porque a idéia inicial era fazer um camelo, um animal standard, econômico, capaz de transportar pessoas e cargas até mesmo pelo deserto.
Deus teria entregue o planejamento e a conclusão a um dos seus executivos, um recém chegado ao Paraíso que ainda não perdera a mania terrena de criar grupos de trabalho. Entraram no grupo um arquiteto, um economista e um advogado.
Cada um requisitou assessores especiais e começaram a fazer ponta de lápis, a rasurar papel, a medir espaços com réguas, a folhear vade mecum, as discussões adentravam as madrugadas.
Quando Deus olhou o bicho, reagiu. Mas, gente, isso não é um camelo, é um dromedário. Aí dispensou os técnicos e sozinho produziu, num sopro, mais uma de suas obras primas, o camelo.
Um fabricante de cigarros nos Estados Unidos, pirateando a imagem do animal, lançou a marca Cammel, e o homem que foi contratado para fazer o comercial do Cammel, tempos depois, morreu de câncer. O camelo escapou.
Pois vinha o camelo, essa é mais uma daquelas que nos contavam as avós, vinha o camelo pelo deserto, desgarrado de uma caravana, sadio e assustado, quando se viu numa praia que não era exatamente a sua.
O dono do pedaço era sua majestade, o Rei Leão. Sabe aquele clima de decadência, jejum forçado, arrecadação caindo, cacimbas de mensalão secando, o Leão triste, parecendo um coronel, sabe aquele do livro do Gabriel Garcia Marques, ninguém escreve ao coronel? O camelo, tão ingênuo quanto bem intencionado, gostou de ver a turma do rei unida no sofrimento.
Depois da tempestade, vem a bonança. Recitava esperançoso.
Foi se achegando e o leão perguntou, o que queres tu de mim? A graça da tua proteção, majestade! Terás a minha proteção, és agora cidadão do meu reino, garantiu o leão. Trabalhando juntos vamos tirar essa terra do atraso e o nosso povo será feliz! Logo o verde voltará a esta áfrica. O camelo, idealista, ficou encantado.
O tempo foi passando e o reino foi ficando triste, a fome batendo à porta de todos, ora, mesa onde falta pão todo mundo briga e ninguém tem razão.
O leão não era chegado ao trabalho de administrar. Qual um Nero se achava o máximo, um grande artista. E o pior é que o era, em outras artes, é claro. Delegava tudo, mas só aos parentes, os quais, por sua vez, tinham cada um a sua própria curriola. Manter a cada uma, custava caro.
A inflação cresceu, o produto interno bruto caiu, o desemprego aumentou, o desabastecimento ficou igual àquele do plano cruzado, quando as pessoas tinham papel moeda, mas não tinham o que comprar nos supermercados. Um delegado do rei corria feito doido, que nem um tigre de bengala, pelos pastos do mundo atrás de boi gordo.
O camelo, auto-suficiente, podendo ficar meses seguidos sem comer e sem beber, porque para isso Deus o planejara, ficava olhando aquele ambiente de miséria, vícios e promiscuidades, mas admirando a unidade do Ministério em torno do monarca.
Também só havia ali gente fina, tudo intelectual, corvo, raposa, serpente, chacal. A turma com fome, o Rei com fome e o camelo, tão ingênuo quanto bem intencionado, ali por perto, pau para toda obra, deslumbrado com a intimidade do poder, fingindo que pastava, integro e nem aí para aquelas necessidades tão primárias.
O corvo, um dos conselheiros mais íntimos do Rei, sussurrava. Aquele camelo, hein majestade? O leão que nascera gaúcho, lambia os beiços, salivando, mas logo espancava a tentação. Sai pra lá rapaz, não sabes que eu lhe conferi cidadania e que palavra de rei não volta atrás? O camelo é como se fosse meu filho.
Bolaram um plano, tipo um jogral e cada um dizia - oh majestade, se quiseres eu me ofereço em sacrifício para saciar tua fome. Sossega, desgraçado, disse a raposa ao chacal, não sabes que tua carne é podre, queres matar o nosso rei? Cada um se oferecia em sacrifício e logo vinha outro recriminando, não sabes que tua carne é podre, queres matar o nosso rei?
O nosso camelo, bom caráter, foi se condoendo e vendo que todos já haviam se oferecido, quase que instintivamente, murmurou, ah majestade, se quiseres, eu... Nem terminou a frase e a turma unida avançou nele e nhau!
Moral da historia. O leão não voltou atrás com a sua palavra. O problema do camelo foi que, alem de ter buscado cidadania no lugar errado, não era da curriola, de nenhuma curriola. E quem não é da curriola tem mais é que ficar longe, bem longe das raposas, dos chacais, dos corvos e dos outros que tais. Não fui camelo, mas eu sei.
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*Ex-Presidente do STJ e Professor de Direito na UFMA
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