Peso vitalício
Se o Senado Federal se encontra em crise ou se, talvez, padece de falta de experiência, deveria ele se centrar em sua atividade básica, um tanto esquecida, que é legislar.
quarta-feira, 2 de outubro de 2002
Atualizado em 1 de abril de 2003 11:49
Peso vitalício
José Rubens Scharlack
*É o povo quem, através do processo legislativo talhado nos artigos 77 e seguintes da Constituição, elege o Presidente da República, a fim de que este exerça o Poder Executivo pátrio, privativamente ou com o auxílio dos Ministros de Estado.
Também é o povo quem, através do voto direto, habilita seus pares a legiferar, seja na Câmara dos Deputados, seja no Senado Federal. A estas duas casas - chamadas, em conjunto, de Congresso Nacional - cabe a constitucional tarefa de exercer o Poder Legislativo, vale dizer, de fazer emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias e decretos legislativos, além de delegar leis aos demais poderes. Ao menos, isso é o que prevê a atual Constituição Federal.
Trocando em miúdos, e consoante o mais comezinho princípio constitutivo de um Estado Democrático de Direito (estampado, aliás, nos artigos 1º, § único, e 2º da Carta Constitucional), são independentes e harmônicos entre si os Poderes Executivo e Legislativo, e cada um deles emana do povo, que elege seus representantes.
Feito esse breve - e, muito provavelmente, desnecessário - esclarecimento, é de se indagar: para que serve a Proposta de Emenda Constitucional nº 445, de autoria do Senhor Deputado Federal José Carlos Martinez?
Tal proposta, é bom que se esclareça, estende o caput do artigo 46 da Constituição e embute-lhe um §4º, de modo que seu resultado é o seguinte:
"Art. 46. O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário, e de Senadores vitalícios.
....................................................
§ 4º. Os ex-Presidentes da República que tiverem concluído seus mandatos e estiverem com seus direitos políticos preservados ocuparão cargo de Senador vitalício, gozando de todas as prerrogativas, com exceção do direito de voto."
Abre-se, como se vê acima, as portas do Congresso Nacional para Senadores vitalícios. Senadores para a vida toda. Sem que, ao menos, tenham sido eleitos para mandato legislativo. Foram, é verdade, eleitos pelo povo, mas para presidir o Executivo.
Assim, com esse pequenino adendo no artigo 46, cria-se um razoável imbróglio no sistema representativo brasileiro: o Presidente não será mais eleito para ser só Presidente, mas também para exercer o cargo de Senador, logo após seu mandato terminar. Então, a par dos Senadores eleitos, haverá também, naquela Casa Legislativa, Senadores não eleitos, advindos do Executivo após o término de seus mandatos como Presidentes da República.
Ao que parece, está-se a inverter valores, passando-se por cima de conceitos assentes no ordenamento jurídico brasileiro, de que são exemplo a separação de poderes e o alcance de cargos legislativos mediante o sufrágio universal. Isso sem se imaginar, só de farra, a confusão que tal mudança causará no cerebelo do eleitorado...
Mas o principal problema da Proposta de Emenda nº 445 parece, ainda, ser outro.
É que o Senador vitalício - acoplado residualmente ao Congresso Nacional da maneira que se viu acima - não tem poder de voto. Isto é, ele não vota. Não vota leis, não vota decretos legislativos, não vota emendas constitucionais, enfim, não vota texto legislativo algum.
Ora, lembrando-se que a razão de existir do Congresso Nacional é exercer o Poder Legislativo - isto é, criar e votar leis -, repete-se a pergunta: para que serve a Proposta de Emenda Constitucional nº 445?
Segundo a justificação registrada pelo Senhor Deputado, a sistemática proposta visa a "revitalizar o Senado". No seu entender, "diante das repetidas crises que estamos presenciando", seria "da maior relevância aproveitar os conhecimentos e a experiência dos primeiros mandatários em assuntos cruciais para a estabilidade e a própria sobrevivência do estado democrático como os submetidos à apreciação do Senado Federal". Ou seja, consoante se depreende das razões do Senhor Deputado Federal, os Senadores vitalícios - os não eleitos e não votantes - funcionariam como conselheiros dos demais senadores - os eleitos e votantes -, orientando-os nos "assuntos cruciais para a estabilidade" e para a "sobrevivência do estado democrático".
Convém assinalar, ainda, que os Senadores vitalícios não orientariam apenas um punhado de Senadores "temporários", mas todos os membros de todas as legislaturas, ad infinitum, ao menos sob a ótica da instituição, o que, invariavelmente, leva a refletir sobre o poder de articulação e de influência que, aos poucos, seria fomentado no Senado Federal, bem como os danosos efeitos que poderiam ser infligidos aos novos representantes do povo que ali adentram para tentar transformar em normas jurídicas suas idéias e propostas.
Em todo caso, é de se salientar uma certa prudência da proposta, que ressalvou, em seu artigo 2º, ser aplicável "sem efeito retroativo". Todavia, uma vez implementada a sistemática sugerida, o único efeito que aquele artigo coibirá é o de não levar à cadeira legislativa perpétua figuras públicas já conhecidas do povo brasileiro. De resto, a porteira - só de entrada - estará aberta.
É claro que não se daria à proposta nº 445 a atenção que se está, aqui, a despender, acaso não tivesse sido ela já admitida pela Relatoria da Comissão de Constituição e Justiça e de Redação. Por certo ainda existem oportunidades de tal projeto ser abortado dentro do próprio Congresso Nacional. Contudo, a irrazoabilidade da medida preocupa os espectadores do processo legislativo federal brasileiro.
De fato, se porventura o Senado Federal se encontra em crise ou se, talvez, padece de falta de experiência, deveria ele se centrar em sua atividade básica, um tanto esquecida, que é legislar. Acaso precise de ajuda para formar suas idéias, mais democrático seria recorrer à própria população, e não aos seus ex-presidentes.
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* escritório Rayes, Fagundes & Oliveira Ramos Advogados Associados.
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