A auditoria jurídica questiona os partidos na democracia
Desde 2001, estamos repetindo quase um refrão ou um mantra frente à indiferença majoritária dos que a criticam, pois a auditoria jurídica será o mais poderoso escudo para a defesa da democracia e de seus valores dignificantes. E será, quando os advogados profissionalizados pelo mercado se convencerem de que não basta trabalhar para galgar posição pessoal, montar equipes poderosas e contatos em todos os cantos da malha governamental e dos estabelecimentos privados. A advocacia está criando um fosso auto-protetor de interesses corporativos, blindando o mercado e distanciando-se do povo, daquele que, em resumo, é a massa crítica e quantitativa votante, a eleitora.
sexta-feira, 26 de outubro de 2007
Atualizado em 23 de outubro de 2007 10:11
A auditoria jurídica questiona os partidos na democracia
Jayme Vita Roso*
"Os partidos de interesses são artefatos, construídos e registrados de acordo com a lei. Apresentam-se ao eleitorado como se fossem partidos de opiniões.Mas não passam de máquinas, para os pleitos da política.
Seus programas são elaborados para atender aos requisitos da lei, mas não são feitos para valer necessariamente.
Estes partidos são meros instrumentos, não a serviço do bem público, mas a serviço de seus criadores e exploradores. Às vezes, não passam de partidos de aluguel, ou partidos a venda." 1
I
1. Desde 2001, estamos repetindo quase um refrão ou um mantra frente à indiferença majoritária dos que a criticam, pois a auditoria jurídica será o mais poderoso escudo para a defesa da democracia e de seus valores dignificantes. E será, quando os advogados profissionalizados pelo mercado se convencerem de que não basta trabalhar para galgar posição pessoal, montar equipes poderosas e contatos em todos os cantos da malha governamental e dos estabelecimentos privados. A advocacia está criando um fosso auto-protetor de interesses corporativos, blindando o mercado e distanciando-se do povo, daquele que, em resumo, é a massa crítica e quantitativa votante, a eleitora.
2. Percebe-se que a advocacia vem sendo gradativamente engolfada pelos interesses dos clientes e que, muita e reiterada vez, opta por ser partidária de posição neutral frente a um fato social concreto, acontecido e acabado, em detrimento da massa. Basta simplificar. Defendo uma corporação privada, que está sendo contratada pelo governo, no sentido lato e mais amplo possível, ou já o foi e o negócio corre em seus trilhos. Seu cliente está satisfeito; o advogado também, porque justos e dignos e ponderáveis honorários lhe estão sendo pagos. La nave va, em busca de outros negócios, ou o cliente prospecta outros negócios, na área com quem fizera negócio ou
4. Espinhoso repisar às mentalidades contemporâneas, voltadas ao mercado consumista, vivendo o dia-a-dia, para realizar desejos consumistas insaciavelmente, que a profissão do advogado é a única que pode construir uma utopia. A utopia do realizado que não se confunde com o irrealizável, segundo Théodore Munod. Ao advogado é preciso mostrar, por sua vez, a contingência de um funcionamento e sua contínua obrigação de mudar a si e ao mundo para realizar o ideal utópico do direito, através da concreção da Justiça, por isso, muito por isso, que, se o Código de Ética e Disciplina exige tarefas hercúleas do advogado para viver e para ser, com a obrigação de ser independente, "faz a construção utópica do homem, querendo equipará-lo ao super-homem, fora ou além da condição humana", pois, se a felicidade só se concretiza ao construir essa utopia, se essa utopia exige independência autêntica, concluímos "por isso, ocorre freqüentemente, os advogados são incômodos, atrapalham os desígnos dos poderes e, como tantos sacerdotes, são até massacrados, como ocorreu na Guatemala. Mas, a independência, que o causídico tanto deve perseverar como marca distinta da sua profissão, é aceita como desafio não auto-punitivo, como visão do mundo, não como sofrimento de Prometeu"3.
5. Ínsita no exercício profissional, ou para o exercício profissional concreto e desejável, estende-se e amplia-se a exigência da auditoria jurídica como subsunção da independência do advogado no agir, tendo em conta a utilidade pública da função, não exaurida, como querem os mecanicistas que sustentam a plenitude da advocacia, inclusive a auditoria jurídica, em o artigo 1°, inciso II, do Estatuto (Lei n°. 8906/94 - clique aqui -).
A inserção da auditoria jurídica, como espécie, não mera especialização, no referido inciso II, é que poderá formatar a arquitetura dessa espécie. Ela é particularíssima, porque reage, insurge-se, confronta-se com a atividade servil exercida pelo advogado vinculado, coligado ou associado a outras atividades. Não significa um movimento indesejável apartar o auditor jurídico de outras profissões em perseguição ou em construção ou em execução que exige a complementaridade multidisciplinar. Ao contrário, salutar para o profissional envolvido numa tarefa desse calibre, enobrecendo-o, se mantiver perfilado à sua autêntica independência, juiz de si próprio, ético por excelência, prevalecendo ético sob qualquer manto que se queira escrutiná-lo.
6. É, com o exercício independente, que há a plenitude da consagração profissional do advogado, no âmbito da sua atividade pública, com relevo especial, para servir a sociedade democrática e a si próprio, na busca da felicidade pessoal. Isso consagra o advogado, o qual também exercerá sua atividade com dignidade e com probidade. Mais que uma profissão, é uma vocatio e os que a ele são chamados estão no mundo para servir ao seu semelhante. O seu trabalho não é do tipo econômico ou de produção de bens, mas existencial, ou seja, é uma auto-produção da própria existência, não só se satisfazendo com bens materiais ou bens vitais, mas fazendo acontecer à existência humana, na plenitude de suas possibilidades, o sentido superior a que o destino lhe propiciou, como proclamava Marcuse.
Esses requisitos essenciais, que são atributos, exponenciam-se no exercício solitário da auditoria jurídica.
II
1. Nessas linhas, a auditoria jurídica, bem mais a fundo do que o parecerista técnico, atracado no sistema normativo do Direito Eleitoral, questionará dois fatos relevantes, extraídos das notícias publicadas e nas evocações mediáticas: primeiro, a função dos partidos na moderna democracia e, segundo, o custo para a democracia com a transferência de fundos públicos e privados para os partidos.
2. Cabe-nos destacar que o sistema político brasileiro é uma teia de aranha que vem sendo tecida sem peias, à qual se somaram tantas outras teias operadas por outras tantas aranhas, que conduziram à subjugação da democracia. Dos antigos judeus etíopes, a verdade no dito popular: "As teias de várias aranhas podem até aprisionar um leão".
Desde a assunção de Fernando Henrique Cardoso, que refutou a reforma partidária a fundo, mas aplicou uma mini - reforma em proveito próprio para se reeleger, até, atualmente, Luiz Inácio Lula da Silva, sempre esquivando-se, como um toureiro, de enfrentar esse problema, porque não convém à sua agremiação, não há vontade política de ser assumida, enfrentada e resolvida.
Como corolário desse abismo ecológico-político que foi sendo criado, a corrupção no país vem metamorfoseando em capa e cobertura para atos vandalísticos, que tem servido para, afastando pessoas de bem do necessário participar político-partidário, conduzir a sociedade a admitir que a corrupção é da essência da política e que ela, para os políticos, é apanágio do merecimento, da glorificação e da melhor forma para ganhar mobilidade social. Em suma, cria uma sociedade amoral e forma uma geração aética, incentivando o ganguesterismo e dando-lhe valência sobre qualquer outro valor nos escalões sociais.
A contribuir com tudo isso a morosidade da justiça e a leniência na aplicação da lei, porque, afinal, a magistratura é composta de pessoas que se educaram com estes temários recorrentes. Vive-se à beira de um caos, onde a rule of law, em todos os tópicos, vai de mal a pior, projetando uma visão dantesca do país que Caminha esboçava na carta a Dom Manuel.
3. Doravante, o auditor jurídico vai opinar, sem ter em conta o estado-da-arte brasileira. Fá-lo-á, sem ter a pretensão de scholar, mas de curioso que estuda, cientificamente, o tema, à luz da mais apropriada - assim lhe parece -na doutrina e na casuística contemporânea.
Nada como iniciar com o que representam os partidos. Eles per se são entidades com um programa definido para, vencendo eleições, conseguir o Poder. Um passo avante: analogicamente são os tubos condutores para a democracia correta e representativa. Não menos, os partidos e as instituições essenciais, por meio dos quais, aos cidadãos, abrem-se as possibilidades e o acesso para debater os temas de interesse da comunidade e, quiçá, colocá-los na linha correta para ter acesso à elegibilidade. Afinal, não há democracia sem partidos, mesmo porque os partidos são o veículo da representação do povo na condução dos destinos da nação. Os líderes exsurgem dos partidos, por eles podem ser eleitos e reeleitos e, sem eles, não teriam apoio legal e nem criariam confiança no ambiente público. Usando-se um jargão anglo-saxônico, através de uma metáfora, apresentam o partido como o marketplace para qualquer político crescer e criar o seu espaço.
4. Nos recentes anos, melhormente, em quase duas décadas, o Reino Unido teve dois governos que se apresentavam, aparentemente, antitéticos programáticos: Thatcher e Blair. Com a Dama de Ferro, como chamada, menos do que houve como desse metal e na têmpera forjada, os sindicatos foram colocados fora do processo eleitoral, porque, se os incentivavam e os apoiavam, o Big-boy necessitava de dinheiro para consumar a tomada do poder. Com a revolução na economia e com a sua internacionalização; com a facilidade e os favores proporcionados aos investidores sem bandeira; com a troca da liberdade individual, profissional e coletiva, por facilidades e vantagens financeiras; com a profunda reforma no Labour (Blair), que remexeu nos ossos dos túmulos de Laski e Attle, houve canalização de recursos para as campanhas, com incentivo de ricas doações e, como conseqüência, a abertura das comportas da corrupção, porque as empresas não estão interessadas em programas de partidos, particularmente daqueles com avanços sociais. Com isso, abriram-se as comportas para o ingresso de valores amarrados ao lucro, por conseqüência, corruptores dos negócios no país.
Impressionante é que, no período do governo Blair, recentemente substituído, as doações das conhecidas Arthur Andersen e KPMG (esta última com dois milhões e meio de libras esterlinas), proporcionaram-lhes contratos, em seguida às entregas, com o Tesouro para executar serviços profissionais de valores estratosféricos.
5. O jornalista inglês Simon Jenkins, que escreve colunas admiradas por uma multidão de leitores, no Guardian e no Sunday Times, fez a apreciação crítica do livro, que, em março passado, veio a lume, de autoria de K.D. Ewing4. Severos e contundentes comentários negativos foram manifestados por Jenkins, mas ocultados por Ewing, que nos permitimos realçar alguns deles:
a) com subsídios diretos aos partidos, as grandes corporações servem-se deles como veículos para obter vantagens nos contratos públicos, da mesma forma que amordaçam ou corrompem os funcionários;
b) as doações generosas das grandes corporações fizeram com que o governo alterasse as políticas de relação de empregos, em detrimento dos empregados;
c) os grandes doadores não se contentam com os pequenos favores, logicamente e - o escriba alfineta - a Inglaterra tem, nas PPPs, seu maior veículo de serviços públicos privatizados nos últimos anos;
d) embora a Inglaterra não tenha o primado da corrupção, utilizam-se, no país, meios corruptores em virtude da pouca participação do povo na vida pública, uma vez que os partidos, ao contrário do que são seus programas, desencorajam os cidadãos a nela ingressar.
5.1. Jenkins conclui o precioso artigo com várias considerações, um pouco extensas, algumas das quais precisam ser reproduzidas, pois seu texto é de grande valia para todos os que se interessam pelo aperfeiçoamento teórico-prático da democracia, das suas instituições e, por conseqüência, dos partidos políticos:
"Democracy remains the form of government most likely to deliver peace, stability and prosperity. Its health is therefore of universal concern. A political party that cannot persuade enough people to support its cause should not survive and should certainly not be propped up by the exchequer. Parties must direct their energy not to lobbying government for more cash - as they are furiously doing at present - but to reengaging with the public. They should do this primarily through invigorating and empowering local government and thus reviving the web of patronage and power on which parties are based. It is this that revived French communal localism under the loi Deferre of 1982, even as central parties atrophied. The health of parties is central to the democratic process, but any hope of revival involves looking downwards to the people, not upwards to the state".
III
A atuação profissional do auditor nesse processo, em rigorosa síntese, se voltará a:
1) atuar e denunciar as empresas que, através de contribuições partidárias, visam incentivar práticas empresariais contrárias ao bom e necessário funcionamento das relações com os empregados, sobretudo quando as contribuições servirão para diminuir as garantias dos trabalhadores;
2) atuar e denunciar intenções mascaradas de corrupção de funcionários públicos incumbidos de cumprir as regras dos contratos públicos;
3) atuar e denunciar que as doações se destinam a descumprir preceitos legais nos processos eleitorais;
4) atuar e denunciar que os valores das contribuições possam servir, de forma indireta, a canalizar verbas para dar publicidade a obras do governo ou aprimorar a sua imagem ou a desviar a atenção de graves problemas escondidos (apagão aéreo, mortalidade infantil, crise hospitalar, falsificação de dados sobre a ocorrência de homicídios, uso e abuso de benefícios em decorrência do exercício de cargo público, v.g. cartões de crédito, automóveis alugados etc., empregos de assessores, aumento de despesas com profissionais terceirizados e quejandos).
Essa é a modesta contribuição que a auditoria jurídica pregada por este escriba para tão relevante e candente tema, que está a exigir compulsoriamente da nobre classe dos advogados um posicionamento que atenda aos interesses do país e do povo brasileiro. Não esqueçam que Chaves, Morales e outros e outras vêm por aí. Exemplos se repetem, como a história tem, com abundância, comprovado.
1 Goffredo Telles Junior, O povo e o poder, Malheiros editores, p.91, Brasil, 2003
2 Phillipe Coumartin e Albert Rouet, L'homme inaclevé: plaidoyer pour un nouveau développement humanin, Les Éditions de l'Atelier/ Éditions Ourières, p.92, Paris, 1998.
3 Jayme Vita Roso, Auditoria Jurídica para a Sociedade Democrática, Escolas Profissionais Salesianas, p. 83 e 84, São Paulo, 2001
4 The Leader's Cheerleaders,
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*Advogado do escritório Jayme Vita Roso Advogados e Consultores Jurídicos
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