Proteção ao trabalhador juridicamente autônomo e economicamente dependente
O trabalho autônomo pode ser definido como aquele em que o trabalhador tem a faculdade de dispor de forma plena sobre o modo de execução da prestação de serviço, enquanto no trabalho dependente ou subordinado, ao contrário, uma pessoa distinta do trabalhador aufere e tem um poder jurídico de disposição sobre o esforço laboral do prestador.
terça-feira, 23 de outubro de 2007
Atualizado em 22 de outubro de 2007 10:08
Proteção ao trabalhador juridicamente autônomo e economicamente dependente
Francisco das C. Lima Filho*
O trabalho autônomo pode ser definido como aquele em que o trabalhador tem a faculdade de dispor de forma plena sobre o modo de execução da prestação de serviço, enquanto no trabalho dependente ou subordinado, ao contrário, uma pessoa distinta do trabalhador aufere e tem um poder jurídico de disposição sobre o esforço laboral do prestador.
De acordo com Manuel Carlos Palomeque López1, as notas que caracterizam o trabalho dependente ou subordinado - dependência e trabalho por conta alheia - supõem que o trabalhador exerce seu trabalho em um marco da boa-fé contratual e com um dever de obediência as legítimas instruções que recebe do empresário, que deve proteger sua vida e integridade, e a necessidade de que atue conforme o sentido da produtividade e o respeito aos interesses econômicos do empresário.
Na verdade o critério para distinguir o trabalho autônomo do trabalho subordinado, é que no primeiro o trabalhador promete um resultado, que deve obter com a realização da obra, enquanto no último o trabalhador coloca à disposição da outra parte a própria atividade física ou intelectual.
De acordo com o pensamento de Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena2, autônomo é o trabalhador que desenvolve sua atividade com organização própria, iniciativa e discrionariedade, além da escolha do lugar, do modo, do tempo e da forma de execução.
Para o jurista mineiro o trabalho autônomo pode ser precisado levando-se em conta dois contornos:
a) vínculo fundado na determinação da prestação, que não sofrerá intervenção do credor do trabalho (empregador);
b) poder jurídico reservado ao prestador de organizar o trabalho próprio, com ou sem o concurso de outrem.
Desse modo, diferentemente do trabalho assalariado ou subordinado, no trabalho autônomo o trabalhador se relaciona diretamente com o cliente ou usuário, através do correspondente contrato de atividade que, em regra, é de caráter civil ou mercantil, ou seja, no trabalho autônomo não existe a intervenção do credor não estando o trabalhador submetido ao poder de ingerência daquele.
Antonio Palermo, citado por Ribeiro Vilhena3, qualifica o trabalho autônomo sob a suposição da individualidade, que no seu pensar se desdobra sobre os seguintes fundamentos:
a) liberdade de organização e de execução do próprio trabalho, ou seja, o trabalhador autônomo pode valer-se de substitutos ou de auxiliares;
b) liberdade de disposição do resultado do próprio trabalho, sobre a livre base do contrato de troca, vale dizer: não aliena a sua atividade, na medida em que ele labora por conta própria, podendo se assim estiver acordado, alienar o próprio resultado trabalho, ao contrário do trabalho subordinado em que o prestador exerce uma atividade para outrem, alienando a força de trabalho, ou seja, pondo à disposição de outra pessoa a sua atividade sem assumir os riscos tendo assim de se sujeitar às sanções que o credor entenda devam ser aplicadas, sempre que venha violar os deveres impostos pela relação laboral submetendo-se, portanto, ao poder de direção empresarial, inclusive no aspecto disciplinar;
c) autonomia do prestador de obra no duplo sentido: liberdade de vínculo de subordinação técnica, na medida em que a prestação de trabalho é fruto de uma manifestação da capacidade profissional ou artística individual, e econômica, considerando que o trabalhador assume o risco do próprio trabalho, sofrendo eventualmente as perdas.
Nesse passo, pode-se afirmar que o trabalhador autônomo não se encontra sujeito a um dever de obediência, não recebendo ordens do beneficiário da atividade, o qual se limita, no momento da celebração do contrato, a dar indicações quanto ao resultado a ser obtido. Por conseguinte, o trabalhador autônomo não está submetido ao poder disciplinar, podendo, em caso de descumprimento dos deveres contratuais, ser-lhe exigida uma indenização com base na responsabilidade civil.
Entretanto, como alerta abalizada doutrina4, existem casos em que o trabalhador autônomo presta seus serviços de modo regular e continuado para uma empresa. Embora não seja considerado como integrante do conjunto dos empregados da empresa, participa de forma intensa no desenvolvimento da atividade empresarial.
Essa categoria de trabalhadores é denominada pela doutrina italiana de parassubordinados, em face de sua proximidade com o trabalhador assalariado, como os corretores, vendedores e representantes comerciais autônomos, os trabalhadores a domicilio, aqueles que aqui no Brasil trabalham em seus próprios veículos (automóveis ou motocicletas) entregando mercadorias às vezes de forma exclusiva para determinada empresa, entre outros que não têm a proteção das normas tutelares do trabalho subordinado.
Por se realizar sem subordinação às ordens e instruções de outra pessoa, o trabalho autônomo em princípio encontra-se excluído da proteção das normas tutelares do Direito Laboral, embora entre nós, pelo menos a partir da Emenda Constitucional n°. 45/2004 (clique aqui), as lides decorrentes do trabalho autônomo foram incluídas na competência da Justiça do Trabalho (art. n°. 114, inciso I, da Carta de 1988 (clique aqui), na redação dada pela mencionada Emenda), o que demonstra que pelo menos sob o aspecto instrumental, o trabalho autônomo merece tutela da jurisdição laboral.
Tentando resolver o problema da falta de proteção dessa categoria de trabalhadores, na Espanha recentemente foi aprovada a Lei n°. 20/2007, de 11 de julho, instituindo o Estatuto do Trabalhador Autônomo.
De acordo com referida norma além do trabalhador autônomo ordinário, que é aquela pessoa física que realiza de forma pessoal, habitual, direta, por conta própria e fora do âmbito de direção e organização de outra pessoa, ou empresa uma atividade econômica ou profissional a título lucrativo, foi criada a figura do trabalhador autônomo dependente (TRADE).
Essa nova figura - trabalhador autônomo dependente - que se situa na fronteira entre o trabalhador autônomo e o dependente é conceituada pela citada norma como aquele trabalhador que realiza uma atividade econômica ou profissional a título lucrativo e de forma habitual, pessoal, direta e predominantemente para uma pessoa física ou jurídica, denominada cliente, de quem depende economicamente por perceber dela, ao menos setenta e cinco por cento (75%) de seus rendimentos de trabalho e de atividades econômicas ou profissionais.
Para a doutrina5 o elemento básico dessa definição é a dependência econômica, ainda que também tenham de concorrer outras circunstâncias ou elementos exigidos pela lei. Esses elementos que definem os trabalhadores autônomos como dependentes, são:
a) que referidos trabalhadores não sejam empregadores;
b) que não executem suas atribuições de maneira conjunta ou em igualdade de condições com os trabalhadores da empresa cliente;
c) que desenvolvam seu trabalho com critérios organizativos próprios;
d) que disponham de infra-estrutura produtiva e dos materiais necessários para sua atividade;
e) que percebam uma contraprestação econômica em função do resultado de sua atividade, e;
f) que não sejam titulares de estabelecimentos ou locais abertos ao público.
Para que o trabalhador autônomo seja considerado dependente e possa ser tutelado pela nova regra, deverá firmar com a empresa cliente um contrato formal, por escrito que deverá ser registrado no órgão público competente, e a condição de dependente somente poderá ser ostentada com um único cliente.
Quando não se tenha fixado uma duração ou um serviço determinado, presume-se, salvo prova em contrário, que o contrato foi pactuado por tempo indeterminado.
Foi reconhecido, por força da aludida norma ao trabalhador autônomo dependente, o direito de interromper por 18 dias por ano a prestação de serviços destinados às férias, devendo o próprio contrato ou o acordo de interesse profissional6 fixar o regime de descansos e jornada máxima de trabalho.
O contrato pode ser extinto em razão das seguintes causas:
a) mutuo acordo;
b) causas validamente consignadas no contrato;
c) morte, aposentadoria ou invalidez que resulte incompatível com a atividade;
d) desistência do trabalhador mediante aviso prévio pactuado ou o que resulte conforme aos usos e costumes;
e) vontade do trabalhador fundada no descumprimento contratual grave do cliente;
f) vontade do cliente devidamente justificada e mediante aviso prévio pactuado ou de acordo com os usos e costumes;
g) por decisão do trabalhador autônomo dependente na hipótese de ter sido vítima de violência de gênero.
No caso da extinção do contrato motivada pelo descumprimento obrigacional por uma das partes, a parte inocente tem o direito de perceber uma indenização pelos danos e os prejuízos ocasionados pelo comportamento da outra devendo essa indenização ser fixada no próprio contrato ou no acordo de interesse profissional.
As controvérsias decorrentes da contratação de trabalhadores pelo mencionado regime serão decididas pelos "Juzgados y Tribunales de orden social", que correspondem à Justiça do Trabalho aqui no Brasil. Todavia, para o ingresso das reclamações em juízo é necessário que primeiro tenha havido tentativa de conciliação ou mediação perante o órgão administrativo.
O acordo celebrado nesse órgão administrativo terá força executiva podendo ser executado perante o Julgado Social de acordo com o procedimento da execução de sentenças judiciais.
Ademais, os trabalhadores autônomos dependentes deverão ser incorporados no âmbito protetor da Seguridade Social, inclusive com a cobertura de incapacidade temporária e em caso de acidente de trabalho e enfermidades profissionais.
Como se vê, há uma tendência no sentido de se garantir ao trabalhador autônomo economicamente dependente algum tipo de direito e proteção inerentes ao trabalhador subordinado.
Hoje existem milhares de trabalhadores nessa situação no mundo inteiro, inclusive aqui no Brasil que não desfrutam de nenhuma proteção social.
Esses trabalhadores apesar de não serem juridicamente subordinados, participam ativamente das atividades da empresa para essa laborando por anos e não raro de forma exclusiva, porém sem nenhum tipo de proteção. Quando dispensados nenhum tipo de indenização costumam receber e muitas vezes por não haverem sequer contribuído para o sistema previdenciário, terminam desempregados sem qualquer assistência ou proteção.
Assim, talvez fosse conveniente o legislador brasileiro inspirar-se na experiência internacional, e a espanhola parece bastante interessante, para editar norma que desse algum tipo de proteção a essa categoria de trabalhadores que apesar de serem considerados autônomos, na realidade são economicamente dependentes não raro de uma única empresa para a qual trabalham de forma permanente participando de sua atividade principal, mas não têm nenhum tipo de garantia ou proteção, principalmente quando o contrato é rompido.
Não seria o momento de se pensar nesse contingente de trabalhadores desprovidos de proteção também aqui no Brasil? Que tal se os defensores da tão prometida reforma da legislação trabalhista ampliassem o raio de proteção das normas laborais para estender à categoria dos juridicamente autônomos, mas economicamente dependentes algum tipo de proteção laboral?
Já que a experiência internacional costuma ser copiada aqui no Brasil ainda que muitas vezes se mostre incompatível com nossa realidade, que tal se tomar como exemplo a lei espanhola, na medida em que parece perfeitamente adaptável a realidade brasileira e se editar norma dando algum tipo de proteção laboral e previdenciária ao trabalhador brasileiro juridicamente autônomo, mas economicamente dependente? Fica a sugestão aos responsáveis pela reforma trabalhista ora em discussão.
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1 PALOMEQUE LÓPEZ, Manuel Carlos et al. Derecho del Trabajo. Madrid: Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, 2006, p. 483.
2 RIBEIRO DE VILHENA, Paulo Emílio. Relação de Emprego. São Paulo: LTr, 2005, p. 531-534.
3 RIBEIRO DE VILHENA, Paulo Emílio. Ob. cit., p. 533-534.
4 MARTÍN VALVERDE, Antonio et al. Derecho del Trabajo. Madrid: tecnos, 2007, p. 212.
5 MARTÍN VALVERDE, Antonio et al. Ob. cit., p. 213.
6 Convênio ou acordo celebrado entre o empresário e o sindicato representante dos trabalhadores autônomos dependentes, na medida em que por força da nova norma se prevê a esses coletivos o direito de se integrarem em associações (sindicatos) próprias. As mais representativas poderão, inclusive, ser interlocutoras perante a Administração Pública e gerir programas dirigidos ao coletivo autônomo. GÓMEZ, Ana Maria. Nueva regulación del trabajo autónomo. In: Revista Internauta de Práctica Jurídica. Espanha: Num. 20 (Julio-Diciembre), 2007.
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*Juiz Titular da 2ª Vara do Trabalho de Dourados. Mestre e Doutorando em Direito Social pela UCLM (Espanha). Professor na Unigran (Dourados-MS).
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