Assembléia Legislativa: amarrada e amordaçada
O princípio republicano da separação de poderes vem sendo iterativamente solapado no Estado de São Paulo, no âmbito das relações entre os Poderes Executivo e Legislativo, contando com a apatia - se não complacência - do Judiciário. São inúmeros os exemplos, os quais vêm-se multiplicando já não é de hoje. Basta ver a enorme dificuldade que os deputados estaduais paulistas tiveram que enfrentar para instalar as primeiras (e insossas, na maioria) comissões parlamentares de inquérito.
sexta-feira, 5 de outubro de 2007
Atualizado em 4 de outubro de 2007 12:37
Assembléia Legislativa: amarrada e amordaçada
Luís Antônio Albiero*
O princípio republicano da separação de poderes vem sendo iterativamente solapado no Estado de São Paulo, no âmbito das relações entre os Poderes Executivo e Legislativo, contando com a apatia - se não complacência - do Judiciário. São inúmeros os exemplos, os quais vêm-se multiplicando já não é de hoje. Basta ver a enorme dificuldade que os deputados estaduais paulistas tiveram que enfrentar para instalar as primeiras (e insossas, na maioria) comissões parlamentares de inquérito.
O mais interessante é notar que esse processo de aniquilação da Assembléia Legislativa mediante a sufocação dos parlamentares - não apenas dos de oposição, mas também dos da situação -, que é patrocinado pelo Palácio dos Bandeirantes, é acintosamente conduzido por alguns dos mais expressivos membros do próprio Parlamento.
No caso das CPIs, o Partido dos Trabalhadores precisou recorrer ao Supremo Tribunal Federal, a cuja apreciação submeteu uma ação direta de inconstitucionalidade, por meio da qual removeu um entrave regimental que submetia a criação de comissões parlamentares de inquérito à aprovação da maioria da Assembléia. O Supremo, como lhe cumpria, reconheceu e proclamou que criar e instalar CPI é direito da minoria. O Ministro Celso de Mello chegou a falar em "direito da oposição", salientando que este não pode sujeitar-se a manobras da bancada majoritária aliada ao governo.
Pouco adiantou, porém, o êxito da ação. A tropa de choque do governador, à época Geraldo Alckmin, adotou o critério da "ordem cronológica" para instalação das comissões criadas, valendo-se do fato de que, por ocasião da decisão do Supremo, já havia uma fila de setenta requerimentos de CPI engavetados.
Nesse meio tempo, parlamentares petistas recorreram por diversas vezes ao Tribunal de Justiça de São Paulo, via mandado de segurança, na defesa de suas prerrogativas, ao argumento de que seu direito subjetivo líquido e certo de fiscalizar os atos do Executivo vem sendo violado por ilegalidade praticada pela Presidência da Casa.
O TJ, em duas ocasiões, secundou o entendimento do Supremo de que "CPI é direito da minoria", mas adotou a esdrúxula decisão de determinar ao presidente da Assembléia (apontado como autoridade co-autora nos referidos processos) que instalasse imediatamente "as CPIs pendentes", até o limite máximo de cinco que o Regimento Interno prevê para funcionamento concomitante. Note-se que os 25 desembargadores do Tribunal de Justiça que integram o Órgão Especial (que faz as vezes do Pleno) acabaram por julgar além do pedido (que se restringia à instalação das CPIs precisamente indicadas, como a da Nossa Caixa, e não a todas as "pendentes"). Para tanto, o Tribunal valeu-se da surrada desculpa de que o tal critério da "ordem cronológica" seria "ato interna corporis", assim recusando-se a reconhecer, nele, o evidente expediente malicioso da maioria governista para sacrificar o direito da minoria, de raiz constitucional.
Com o final da legislatura anterior e início da atual, em 15 de março deste ano, pereceram todos os setenta requerimentos de criação de CPI que jaziam na gaveta da presidência, mas os governistas não perderam tempo. Na velocidade da luz, criaram nova "fila", que já soma quinze requerimentos à frente do único para o qual a oposição obteve o número mínimo de assinaturas, que tem por objetivo investigar graves irregularidades verificadas na CDHU. Em função disso, há em curso novo mandado de segurança por meio do qual o líder Simão Pedro e todos os demais deputados que compõem a bancada petista pedem a instalação da CPI da CDHU. Nele pedem, pela denominada via difusa (em caráter incidental, portanto), que o Tribunal de Justiça reconheça a inconstitucionalidade do limite de cinco CPIs, de modo que lhe dê, ainda que sem supressão de texto, interpretação conforme a Constituição (clique aqui). Em outras palavras, os impetrantes querem ver reconhecido que o limite regimental não pode levar em conta as dezenas de CPIs artificialmente propostas pelos aliados com o claro propósito de esgotar o número máximo de comissões concomitantes.
Mas as artimanhas da base aliada não se limitam a apenas barrar CPIs, nesse inegável processo de blindagem do governador que favoreceu Alckmin e hoje protege José Serra. Recentemente, assim que assumiu a presidência da Casa, o presidente Vaz de Lima editou um ato, veiculado na forma de resposta a uma questão de ordem formulada por deputada da base (Maria Lúcia Amary, do PSDB), por meio do qual eliminava a fase da "discussão" dos projetos enviados com solicitação de urgência constitucional, bem como dos que tratavam da apreciação dos vetos do governador. Nesse caso, a atitude do presidente encontrou pronta resistência de deputados da própria base governista, o que dispensou a bancada petista, ao menos por ora, de recorrer mais uma vez ao Poder Judiciário para defender a prerrogativa mínima de todo parlamentar, que é a de "parlar", ou seja, de expressar sua opinião sobre quaisquer projetos submetidos ao seu exame.
A Constituição Federal, no seu artigo n°. 53, é claríssima ao estatuir a inviolabilidade dos deputados e senadores por suas "opiniões, palavras e votos". Não se trata, a toda evidencia, de apenas criar imunidade civil e penal aos parlamentares, mas, antes de tudo, de proclamar que estes têm o direito de expressar sua opinião e manifestar seu voto em todos os projetos que lhes sejam dados a exame.
Mas ainda há mais. O governador José Serra vem usando - e abusando - da faculdade que lhe confere o art. n°. 26 da Constituição Federal de solicitar urgência em projetos de sua autoria, a chamada "urgência constitucional". Ao ver do Presidente da Casa, basta ao governador "solicitar" a urgência para que, pronto, estejam supridas todas as exigências regimentais, restando aos deputados o prazo de apenas uma sessão (um dia, portanto) para apresentar emendas de pauta. E, se não houver deliberação no prazo de 45 dias, o projeto irá direto à ordem do dia, para votação com preferência sobre os demais (com risco de, a qualquer momento, vir a ser ressuscitada a determinação de supressão da fase da respectiva discussão).
Essa prática desconsidera que o verbo "solicitar", cunhado na mal compreendida Carta Magna, significa pedir, requerer; não tem, portanto, caráter impositivo, de aceitação automática, de modo que está a exigir que a solicitação seja apreciada pela Casa, que pode acatá-la ou rejeitá-la.
O regimento interno da Assembléia estabelece um rito a que denomina ordinário, a par de outros que, por lógica, são extraordinários. É dentre estes que está o regime da urgência constitucional, cujo caráter extraordinário, por conseqüência, não pode ser desconsiderado. Por tantas vezes reiterada, porém, a prática que vem sendo adotada pela presidência acaba por transformar em ordinário o que é excepcional.
Tem-se assistido ao paradoxo de os projetos de iniciativa do governador seguirem o rito de urgência constitucional, ou seja, sem prévio exame de admissibilidade da solicitação, enquanto que os requerimentos de igual urgência efetuados em projetos de iniciativa dos próprios parlamentares são (estes sim!) submetidos à prévia votação. Quer-se prova maior da subserviência do Poder Legislativo paulista ao Executivo do que a genuflexão com que o primeiro tem reiteradamente reverenciado o segundo?
A modalidade mais grave, porém, de ruptura do modelo republicano de separação de poderes é a que vem adotando o próprio governador, como protagonista único e, ao que parece, sem objeção dos seus aliados da Casa. Consiste na edição de decretos por meio dos quais Sua Excelência vem legislando sobre matérias que, de acordo com a Constituição Estadual, deveriam ser objeto de projetos de lei, que a ele caberia apenas iniciar, submetendo-os ao exame e voto do parlamento. O caso mais significativo foi o dos decretos por meio dos quais o governador extinguiu a Secretaria de Turismo e, a pretexto de apenas modificar-lhe o nome, na prática criou a Secretaria de Ensino Superior.
Na ocasião, à parte a discussão (para mim, equivocada) sobre ter sido ou não violado o princípio da autonomia universitária, o governador cometeu ato fraudulento, em grave ofensa à moralidade administrativa, como bem apontado pelo jurista Dalmo de Abreu Dallari em artigo amplamente divulgado pela imprensa por ocasião da recente ocupação da reitoria da USP empreendida por seus alunos. Por isso, e com base na brilhante e percuciente avaliação jurídica elaborada pelo renomado catedrático, o líder Simão Pedro e todos os demais integrantes da bancada petista ajuizaram ação popular, que se acha em trâmite pela 3ª Vara da Fazenda Pública da Capital, apontando a ocorrência de todas as cinco hipóteses que, segundo a lei respectiva (lei n°. 4.717/65 - clique aqui -), ensejam esse tipo de ação: incompetência, vício de forma, ilegalidade do objeto, inexistência dos motivos e desvio de finalidade.
Enfim, há uma séria crise institucional instalada no parlamento paulista, que se vem arrastando há alguns anos, em que todos os seus integrantes - especialmente os de oposição - estão sendo amordaçados e de mãos atadas por obra e graça do chefe do Executivo paulista, mas com inegável e intolerável leniência dos próprios (des)interessados. Com exceção, claro, dos oposicionistas, que vêm tentando livrar-se das amarras e mordaças, mas que se têm deparado com a muralha intransponível da apatia (para dizer o mínimo) das autoridades judiciárias paulistas.
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*Advogado, assessor jurídico da Liderança do PT na Assembléia Legislativa de São Paulo
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