A mordaça para os membros do Ministério Público
Não raro, é o membro do Ministério Público procurado por repórteres ou jornalistas, em busca de notícias sobre processos em andamento ou sobre questões jurídicas de maior repercussão. Outras vezes, é ele quem procura relacionar-se com a imprensa.
quinta-feira, 23 de agosto de 2007
Atualizado em 22 de agosto de 2007 15:21
A mordaça para os membros do Ministério Público
Hugo Nigro Mazzilli*
Não raro, é o membro do Ministério Público procurado por repórteres ou jornalistas, em busca de notícias sobre processos em andamento ou sobre questões jurídicas de maior repercussão. Outras vezes, é ele quem procura relacionar-se com a imprensa.
Entendemos normal que sejam prestados pelo Ministério Público os devidos esclarecimentos à população, final destinatária de seus trabalhos.
O Ministério Público paulista tem longa tradição de recomendar que o representante da Instituição se abstenha de participar de programas de rádio, televisão ou de qualquer outro meio de comunicação que, por sua forma ou natureza, possam comprometer a respeitabilidade de seu cargo ou o prestígio da Instituição. Entretanto, já houve época em que se entendia que "qualquer entrevista à imprensa, rádio ou televisão, na condição de representante do Ministério Público, envolvendo assunto da administração pública ou funcional, deveria ser precedida de autorização do Procurador-Geral de Justiça"1.
Pode um ato regulamentar criar uma exigência como essa ?
Sabemos que o regulamento não pode "criar direitos ou obrigações novas, que a lei não criou; ampliar, restringir, ou modificar direitos ou obrigações constantes de lei; ordenar ou proibir o que a lei não ordena nem proíbe; facultar ou vedar por modo diverso do estabelecido em lei; extinguir ou anular direitos ou obrigações que a lei conferiu; criar princípios novos ou diversos; alterar a forma que, segundo a lei, deve revestir um ato; atingir, alterando-o por qualquer modo, o texto ou o espírito da lei"2.
Gozando os membros do Ministério Público de regime jurídico especial e independência no exercício de suas funções, e não constando desse regime a proibição pretendida, a vedação contida em tal dispositivo continha autêntica e írrita inovação regulamentar. Não há dúvida de que não tem o membro do Ministério Público o direito de expor assuntos sigilosos da Administração ou do seu ofício, que soube por força de seu exercício funcional: isso poderia até mesmo constituir ato de improbidade administrativa, além de crime de violação de sigilo funcional. Contudo, as revelações à imprensa que não violem o sigilo funcional não será o regulamento que as pode vedar: o critério para a entrevista há de ser o bom senso do próprio membro do Ministério Público, e os limites, apenas os da lei.
O primeiro precedente de maior repercussão que tivemos no Ministério Público paulista sobre entrevistas de um membro da Instituição à imprensa envolveu o Procurador de Justiça Hélio Pereira Bicudo, no célebre caso do Esquadrão da Morte, na década de 1970. O então Procurador-Geral de Justiça tentou punir seu par por ter dado entrevistas à imprensa, mas o Colégio de Procuradores de Justiça acolheu o recurso do Procurador, para inocentá-lo.3
Não há dúvida de que não pode o membro do Ministério Público utilizar-se do seu direito à liberdade de expressão para violar o sigilo funcional ou para referir-se de forma depreciativa às autoridades constituídas ou ainda aos atos da Administração.4 Contudo, tem todo o direito de fazer críticas às atuações ou omissões de sua própria Instituição, com manifesto intuito construtivo. E, como ficou destacado nas razões do Procurador de Justiça Hélio P. Bicudo, "não constitui quebra do sigilo o direito inalienável de cabal explicação, à opinião pública, de atos praticados por representantes da Administração e que, por equívocos, podem ser interpretados de forma negativa, em detrimento do patrimônio moral de um cidadão, seja ele, ou não, membro do Ministério Público".
A tendência de querer calar os membros do Ministério Público é, porém, algo recorrente e tem defensores dentro e fora da Instituição.
Três décadas depois dos fatos relatados anteriormente, agora quando a chefia do Ministério Público de São Paulo estava nas mãos de aliado político do Governador do Estado, fizemos pela grande imprensa duras críticas à falta de independência do Ministério Público paulista e, em razão disso, fomos atacados porque não deveríamos "lavar roupa suja fora de casa"... como se a falta de independência do Ministério Público fosse uma questão apenas interna corporis...6
No Congresso Nacional, o relatório da Reforma do Judiciário (1999) tinha proposto uma alteração constitucional para proibir, entre outras autoridades, que os membros do Ministério Público, quando investigassem crimes, atos de improbidade administrativa ou outra matéria afeta à sua atuação, revelassem indevidamente a terceiros ou aos meios de comunicação fatos ou informações de que tivessem ciência em razão do cargo, e que violassem o sigilo legal, a intimidade, a vida privada, a imagem e a honra das pessoas.7
Ao mesmo tempo, outros projetos de leis ordinárias têm insistido em temas semelhantes, tendo a matéria ficado conhecida na imprensa como Lei da Mordaça. Dizem os autores dessas propostas que querem impedir o estrelismo de autoridades que devassam a vida de acusados, causando-lhes prejuízos insuperáveis, mesmo se depois vierem a ser reconhecidos inocentes.
Embora entendamos que os membros do Ministério Público devem ter extrema sobriedade no contato com a imprensa, de nossa parte cremos, porém, que, para combater eventuais abusos, a lei já pune criminalmente a quebra do sigilo funcional, além de sujeitar seus infratores às graves sanções da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n°. 8.429/92 - clique aqui), isso tudo sem prejuízo da responsabilização cível por danos patrimoniais e morais. Mas, amordaçar e intimidar quem investiga em nome da sociedade é tentativa condenável, até porque, agentes públicos que são, o delegado, o juiz e o promotor têm seu trabalho iluminado pelos princípios gerais da Administração, como os da legalidade, impessoalidade, moralidade, eficiência, razoabilidade e, especialmente, publicidade.
A publicidade pode e deve ser restrita quando isso decorra de exigência de lei (sigilo legal) ou ainda quando convenha ao interesse da própria investigação ou ao interesse da coletividade (como é o caso da privacidade das pessoas). Mas, se transformarmos em regra a exceção (o sigilo nas investigações), voltaremos às investigações secretas, com o alheamento da imprensa e da sociedade para toda a corrupção que só será saneada em público neste País.
Por fim, é sintomático que essa reação dos políticos brasileiros se volte contra a publicidade das investigações, exatamente agora que o Ministério Público, mais bem dotado pela Constituição de 1988 (clique aqui), está investigando os atos de improbidade dos próprios políticos e dos administradores, como nunca ainda se tinha feito neste país...
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1Ato n. 1/84-PGJ/CSMP/CGMP, já revogado pelo Ato n. 168/98, que é omisso sobre a matéria (Justitia, 128:168).
2RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos, Resenha Universitária, v. 1, t. 2, n. 225, p. 269, 1976.
3DJE de 12-07-77, p. 32.
4V. revista Jurispenal, 43:147.
5O então Procurador-Geral de Justiça renunciou ao seu cargo para tornar-se Secretário de Estado do Governador (dez. 1993).
6Naturalmente, os membros do Ministério Público de São Paulo endossaram majoritariamente nossas críticas, investindo-nos no Conselho Superior para resgatar a independência da Instituição (v. nosso discurso de posse em Justitia, 165:281, jan. 1994).
7Esse dispositivo não foi, porém, aprovado na Reforma do Judiciário (EC n. 45/04).
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*Procurador de Justiça aposentado, advogado e professor no CJDJ - Complexo Jurídico Damásio de Jesus.
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