O desafios da aplicação dos precedentes no processo penal
A aplicação automática de decisões e a omissão frente a precedentes vinculantes revelam distorções no uso da jurisprudência no processo penal.
terça-feira, 22 de abril de 2025
Atualizado às 14:37
A recente decisão de Alexandre de Moraes, no caso de 8/1, em que aplicou dispositivo do CPC para dispensar a obrigatoriedade de intimar testemunhas de defesa, para além de demonstrar o nítido cenário de insegurança e decisionismo judicial, tem a potencialidade de causar enormes repercussões ao direito de defesa, notadamente, nos juízos de primeiro grau.
Ainda que seja uma decisão proferida num julgamento específico, não é possível dizer, no atual cenário jurídico penal, que ela não causará efeitos abstratos e "extra partes".
Aliás, quem é criminalista há pelo menos uma década vai lembrar da decisão proferida pelo plenário do STF nos autos do HC 126.292, que, em fevereiro de 2016, considerou constitucional a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, mesmo que sujeito à interposição de recursos excepcionais.
Na época, com base nessa decisão, proferida em habeas corpus e, portanto, com limitações subjetivas, inúmeros foram os mandados de prisão expedidos após o julgamento do recurso de Apelação. Longos foram os debates e inúmeros os manejos usados pela defesa para afastar a aplicação imediata e irrestrita daquele julgado, já que se tratava de uma situação pontual, proferida em procedimento subjetivo cuja análise deveria ser individual.
A partir de então, não são raras as situações em que decisões proferidas com efeitos subjetivos passam a ser indevidamente replicadas com caráter erga omnes, isto é, com força de precedente, ainda que tenham sido proferidas sem o rigor técnico exigido para tanto. A distinção entre decisões vinculantes e aquelas de efeitos apenas inter partes tem sido, por vezes, ignorada por juízos de primeiro grau, que passaram a justificar prisões e outras medidas restritivas com base em entendimentos firmados fora do regime constitucional dos precedentes.
A experiência tem revelado uma fragilidade estrutural no modo como se compreende - e aplica - a teoria dos precedentes na seara penal. E mais: evidenciou como, sem o devido rigor técnico, decisões tomadas em contextos específicos podem ganhar status normativo, impactando diretamente o direito de liberdade.
A construção jurisprudencial tem, indiscutivelmente, papel relevante na formação do Direito. No entanto, quando aplicada de forma acrítica, a jurisprudência transforma-se em uma espécie de atalho argumentativo, que dispensa a devida análise do caso concreto. A citação de julgados passa a funcionar como substituto da fundamentação, em prejuízo ao devido processo legal e à presunção de inocência.
O CPC de 2015 estabeleceu, nos arts. 926 a 928, um verdadeiro regime de precedentes obrigatórios, exigindo dos tribunais a observância da estabilidade, integridade e coerência jurisprudencial. Tais normas, embora originárias do processo civil, possuem aplicação subsidiária ao processo penal, sobretudo quando se trata da fundamentação das decisões judiciais.
O art. 315, § 2º, do CPP, com redação dada pela lei 13.964/19 (Pacote Anticrime), reforça essa exigência, ao determinar que a decisão que decretar a prisão preventiva deve estar fundamentada em elementos concretos, sendo vedada a utilização de fundamentos genéricos, por mais "jurisprudenciais" que possam parecer.
É exatamente nesse ponto que se encontra um dos principais desafios da aplicação dos precedentes na seara penal: a tentação de juízes e tribunais de fundamentarem decisões restritivas de liberdade apenas com base em "entendimentos consolidados", sem a devida demonstração de sua pertinência ao caso concreto. O precedente, para ser aplicável, exige que sua ratio decidendi - a razão jurídica da decisão - seja identificada e demonstrada de forma explícita.
A atuação da defesa, nesse contexto, deve ser ativa: cabe ao advogado impugnar decisões que utilizam precedentes de forma automática, requerendo a demonstração da compatibilidade entre o caso concreto e a tese invocada. Ferramentas como a distinção (distinguishing) e a superação (overruling), embora ainda pouco exploradas na prática forense penal, precisam ser compreendidas e aplicadas como mecanismos de controle da força vinculante dos precedentes.
Precedentes não podem ser tratados como normas rígidas e automáticas. No processo penal, onde estão em jogo direitos fundamentais, sua aplicação exige não apenas conhecimento técnico, mas responsabilidade institucional. O respeito ao regime de precedentes - em sua forma e substância - é também uma forma de garantir segurança jurídica, previsibilidade e controle do poder punitivo estatal.
A fidelidade ao precedente exige mais do que citação: exige coerência, integridade e, sobretudo, a análise rigorosa do caso concreto. Só assim será possível compatibilizar a força normativa da jurisprudência com os princípios constitucionais que regem o processo penal brasileiro.


