Impactos do julgamento com perspectiva de gênero no Brasil
O julgamento com perspectiva de gênero busca combater desigualdades históricas, enraizadas no Poder Judiciário, que serão analisadas neste artigo.
sexta-feira, 11 de abril de 2025
Atualizado às 08:48
O julgamento com perspectiva de gênero, previsto na resolução 492/23 do CNJ, busca mitigar as desigualdades históricas no âmbito do Poder Judiciário. Muito embora a referida resolução já tenha sido instituída há mais de ano, os avanços e as aplicações práticas se revelam ainda embrionários, o que impõe aprofundamento do estudo do assunto e esforço intenso para a efetividade da proteção das pessoas vulneráveis em virtude do gênero.
Inicialmente, nos parece importante definir, ainda que em linhas gerais, o significado de "gênero". Utilizamos essa palavra para tratar do conjunto de características socialmente atribuídas aos diferentes sexos. Ao passo que sexo se refere à biologia, gênero se refere à cultura.1 Assim, diversos fatores podem influenciar na sua definição, incluindo aspectos sociais, etários, raciais, dentre outros.
A compreensão desse conceito nos parece fundamental para a melhor elucidação dos cenários do julgamento com perspectiva de gênero e para identificação de suas consequências de acordo com as especificidades de cada caso.
No contexto de processos judiciais, em primeiro lugar, o contato com o procedimento, seja em fase administrativa ou judicial, pode apresentar assimetria de gênero de pronto e, consequentemente, impor a análise dos acontecimentos sob um olhar mais cauteloso não só do julgador, mas de todos os integrantes da relação processual.
Exemplo clássico que chama atenção em assuntos relacionados à disparidade de gênero é a violência doméstica, fruto de quase 20 anos de vigência da lei Maria da Penha, que proporcionou debates e pesquisas profundas sobre o assunto, ainda em fase de desenvolvimento e progresso.
Acontece que outras situações de disparidade podem não ser evidentes, o que exige a avaliação dos fatos com cautela e olhar sempre atento à identificação de possíveis desigualdades.
Em segundo lugar, o julgamento com perspectiva de gênero pode se demonstrar crucial de acordo com os sujeitos processuais, ou seja, às pessoas que participam dos atos processuais como advogadas, juízas, promotoras, delegadas de polícia, peritas, vítimas, testemunhas, rés, dentre outras, ante a assimetria que pode estar escondida por trás do exercício de suas funções, de acordo com a fragilidade de cada uma delas.
Em terceiro lugar, identificada a necessidade de julgamento diferenciado, surge a exigência de mapear as medidas de proteção cabíveis, que poderão assumir as mais variadas formas, de acordo com o grau e com a espécie de vulnerabilidade da pessoa.
A título exemplificativo, é evidente que o amparo destinado à uma criança vítima de violência sexual praticada em âmbito familiar é distinto do cuidado adequado para uma promotora de justiça lactante. Ambas devem ser protegidas de forma especial, mas em proporções diversas, resguardadas as peculiaridades do caso e dos sujeitos envolvidos.
Em quarto lugar, a fase de instrução processual nos parece a etapa mais delicada e desafiadora do julgamento sob perspectiva de gênero, principalmente em virtude das distintas experiências dos integrantes da relação processual. Como sabido, as dimensões do nosso país criam barreiras sociais, econômicas e culturais que, mesmo com esforço, podem ser incompreendidas.
Por isso, é fundamental a adoção de postura ativa e atenta em busca da identificação de eventuais desigualdades com o fim de neutralizá-las, tarefa que certamente depende de conscientização social, começando pelos membros do Poder Judiciário e pelos sujeitos indispensáveis à manutenção da justiça.
Em quinto lugar, ainda, a avaliação das provas expõe a imprescindibilidade de cuidado especial, sobretudo ao apreciar a necessidade e a possibilidade de sua produção. O desenvolvimento das provas deve respeitar as partes processuais, ainda mais quando identificada a existência de imparidade de gênero.
Sob essa perspectiva, expondo a relevância do reconhecimento da vulnerabilidade de determinadas partes processuais, as Cortes Superiores possuem entendimento consolidado no sentido de que a palavra da vítima de violência doméstica e familiar tem especial relevo no contexto probatório2.
Ainda em relação às provas, em especial à testemunhal, sua apreciação sob perspectiva de gênero impõe atenção a estereótipos, que devem ser afastados. Inadiável a cautela às testemunhas preocupadas com represálias, como ocorre em casos de assédio moral, em que essas são subordinadas hierarquicamente ao agressor e, naturalmente, apresentam insegurança ao prestarem depoimento.
É preciso, também, evitar a revitimização, que consiste na reiterada exposição da pessoa ofendida ao constrangimento de reviver os fatos, notadamente marcado pela repetição de sua descrição e narrativa em fases processuais distintas, como ocorre na ocasião do registro do boletim de ocorrência, seguido da oitiva em sede policial, que é sucedido pela narrativa dos eventos quando da realização de eventual laudo pericial, e repetido, mais uma vez, quando da oitiva em juízo.
O último momento consistirá na decisão judicial, seja aquela sentença proferida pelo juízo de primeira instância, seja o acórdão do colegiado. Nesta fase devem ser considerados os princípios e as normas aplicáveis de acordo com as peculiaridades do caso concreto, em busca do afastamento de desigualdades de gênero.
Muito embora abstratamente o julgamento sob perspectiva de gênero possa parecer simples, na prática os dados são alarmantes e expõem um caminho desafiador a ser trilhado.
O banco de sentenças e decisões com aplicação do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero do CNJ3 mostra que a maioria esmagadora dos procedimentos julgados com perspectiva de gênero envolvem assuntos de natureza criminal, escancarando a vulnerabilidade das vítimas e reforçando a necessidade da tutela de bens jurídicos tão relevantes e sensíveis, que merecem proteção penal.
Em 2025, no período compreendido entre janeiro e março, dentre 437 casos submetidos ao julgamento com perspectiva de gênero, 71 estão relacionados à lesão corporal e 101 à ameaça, ambos praticados em situação de violência doméstica.
Entretanto, de acordo com o referido banco de dados, são inexpressivos os feitos julgados com perspectiva de gênero correlatos às disparidades diversas daquelas decorrentes do contexto doméstico e familiar.
Esse cenário reforça a urgente necessidade de desenvolvimento de políticas de conscientização atinentes às demais pessoas vulneráveis a fim de promover um tratamento mais justo e equitativo.
Para tanto, é preciso compreender que a assimetria de gênero engloba múltiplas situações, que extrapolam as já reconhecidas violências perpetradas em âmbito doméstico e familiar.
Apenas para efeito elucidativo, mencionamos as desigualdades que ensejam substituição de prisão preventiva por prisão domiciliar para mulheres presas gestantes, puérperas, ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência4.
Do mesmo modo, aplicável o instituto àqueles eventos em que identificamos o direito da pessoa custodiada de ser tratada por seu nome social, de acordo com sua autodeclaração5.
Esgotar o rol de hipóteses submetidas à assimetria de gênero seria tarefa impossível, sobretudo em virtude das constantes mudanças sociais e dos imensuráveis avanços pretendidos. Justamente por esse motivo, a atenção para a adequada identificação dos casos deve ser reiterada, contando com o suporte de todos os integrantes da relação processual.
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1 Conselho Nacional de Justiça (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero recurso eletrônico / Conselho Nacional de Justiça. - Brasília : Conselho Nacional de Justiça - CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - Enfam, 2021. P. 16.
2 STJ - AREsp: 2832488, Relator.: Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Data de Publicação: Data da Publicação DJEN 11/03/2025.
STJ - APn: 943 DF 2019/0213257-0, Relator.: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Julgamento: 10/06/2024, CE - CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: DJe 26/06/2024.
STJ - AgRg no AREsp: 2285584 MG 2023/0022027-0, Relator.: Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Data de Julgamento: 15/08/2023, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/08/2023.
3 https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=f3bb4296-6c88-4c1f-b3bb-8a51e4268a58&sheet=03bb002c-6256-4b1d-9c93-a421f1bf8833&theme=horizon&lang=pt-BR&opt=ctxmenu,currsel. Último acesso em 30.03.2025.
4 HC n. 143.641, STF.
5 Resolução n. 348/2020 do Conselho Nacional de Justiça.