Alguns apontamentos sobre retificação da matrícula e o georreferenciamento de imóvel rural
Comentários sobre o procedimento de retificação da matrícula e a averbação do georreferenciamento, que passa a ser obrigatórios para todos os imóveis rurais depois de 21/11/25.
quinta-feira, 10 de abril de 2025
Atualizado em 9 de abril de 2025 16:01
1. Introdução
A lei 10.267/01, posteriormente regulamentada pelo decreto 4.449/02, alterou a lei 6.015/73 (lei de registros públicos), para impor a obrigatoriedade de averbação da descrição georreferenciada e certificada pelo Incra - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária do perímetro dos imóveis rurais, aperfeiçoando a especialidade objetiva (art. 176, §§ 1º, 3º e 4º, da lei de registros públicos).
O georreferenciamento foi exigido de forma escalonada no art. 10 do decreto 4.449/02. Todos os prazos foram cumpridos, faltando apenas o último, com início em 21/11/25, aplicável aos imóveis com área inferior a 25 hectares. Assim, todos os imóveis rurais deverão ser georreferenciados, com certificação do Incra; as matrículas deverão ser retificadas no tocante à descrição, sob pena de ficarem vedados desmembramentos, parcelamentos, remembramentos e quaisquer transferências de imóvel rural.
O presente artigo visa a comentar essa espécie de retificação por meio da averbação do georreferenciamento dos vértices definidores das divisas dos imóveis rurais.
2. Apontamentos
2.1 Geo-referenciamento ou georreferenciamento?
A grafia correta é georreferenciamento, de acordo com o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras. Apesar disso, a lei 10.267/01 trouxe as duas grafias: geo-referenciadas (art. 176, § 3º e art. 225, § 3º, da lei de registros públicos) e georreferenciado (art. 176, § 5º, art. 195-A e art. 213, § 11, III, da lei de registros públicos). O decreto 4.449/02 usou a grafia correta: georreferenciamento.
2.2 Imóvel rural
Por ora, a obrigatoriedade do georreferenciamento se aplica somente aos imóveis rurais públicos e privados. O conceito de imóvel rural está no art. 4º, I, da lei 4.504/64 (Estatuto da Terra), como sendo uma área contínua de exploração rural, de mesma titularidade, independentemente da sua localização (Tema repetitivo 174, STJ), com uma ou mais matrículas ou transcrições. O imóvel rural obrigatoriamente é cadastrado no Cadastro de Imóvel Rural, cujo certificado - CCIR -, quando ativo, é indispensável para a certificação do georreferenciamento no Sigef - Sistema de Gestão Fundiária do Incra. Ademais, é obrigatório para todos os atos no registro de imóveis, por força do art. 22 da lei 4.947, de 1966. A partir da IN do Incra 77/13 (3º edição da norma para georreferenciamento de imóveis rurais - Incra), o Incra permite a certificação por parcela ou por matrícula do imóvel rural. Precisa ser assim, porque, se o proprietário quiser manter o imóvel em mais de uma matrícula, sem promover a unificação, terá de averbar o georreferenciamento em cada matrícula.
3. Quem pode requerer a averbação do georreferenciamento no registro imobiliário?
Qualquer pessoa física ou jurídica, que demonstre interesse, pode requerer a retificação do registro imobiliário para incluir na matrícula a descrição georreferenciada. Não precisa ser proprietário. Uma cópia do título ainda não registrado é suficiente para demonstrar a legitimidade ativa1.
4. Documentação exigida para a averbação
Conforme § 5º, do art. 9º, do decreto 4.449/02, e item 57.2, Cap. XX, Tomo II, NSCGJ, os documentos exigidos para a averbação do georreferenciamento de imóvel rural são: i) requerimento com firma reconhecida, que pode ser eletrônico, mas com autenticação na modalidade avançada (sem o certificado digital) ou eletrônica qualificada (com o "certificado digital" ICP-Brasil)2; ii) CCIR vigente; iii) declaração do ITR vigente e certidão negativa relativa ao imposto; iv) planta e memorial descritivo certificados pelo Incra; v) ART - anotação de responsabilidade técnica ou documento correspondente; vi) declaração de dispensa da anuência dos confrontantes, prevista no § 13, do art. 176, da LRP, e vii) recibo de inscrição no Cadastro Ambiental Rural e o respectivo demonstrativo.
Não há exigência legal de que o CCIR e o ITR estejam atualizados para a retificação do registro imobiliário. Os documentos precisam ser somente vigentes. As atualizações dos cadastros devem ser feitas depois da conclusão da retificação e envio das informações pelo Cartório de Registro de Imóveis, pelos órgãos competentes, de forma automática, nos termos do art. 4º do decreto 4449/02.
5. Anuência dos confrontantes?
A anuência dos confrontantes na retificação do registro imobiliário, por meio do georreferenciamento, é dispensada, por força dos arts. 176, §§ 3º, 4º e 13; e 213, II, § 11, ambos da LRP, e do item 57.2, Cap. XX, Tomo II, NSCGJ. Nesse sentido é a jurisprudência do TJ/SP (agravo de instrumento 2330503-91.2023.8.26.0000; relator: Álvaro Passos; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santa Cruz do Rio Pardo - 2ª vara cível; Data do Julgamento: 20/12/23).
6. Cadastro Ambiental Rural e aprovação da área de reserva legal
O Código Florestal desobrigou a averbação da área de reserva legal na matrícula do imóvel (art. 18, § 4º, lei 12.651/12). Para fins ambientais, basta apenas a inscrição do imóvel rural no CAR - Cadastro Ambiental Rural, nos termos da citada lei3. Não obstante a isenção da obrigação da averbação da área de reserva legal na matrícula, as Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo condicionam a prática de atos de registro (ex. retificação, desmembramento etc.) à averbação do número de inscrição no CAR, devidamente preenchido, principalmente com indicação da área de reserva legal (Cap. XX, item 123.3, I, Tomo II, NSCGJ).
Para fins de registro, não há exigência nas NSCGJ de que seja declarada no CAR a área de reserva legal exigida no art. 12 do Código Florestal; tampouco há exigência nas NSCGJ de que a área de reserva legal seja aprovada, exceto nos casos dos arts. 67 e 68 do Código Florestal (Cap. XX, item 123.7, Tomo II, NSCGJ)4.
Por fim, não é necessária a coincidência de área e total identidade entre a matrícula e o CAR do imóvel rural (Cap. XX, item 123.2), assim como não é necessária a coincidência entre a área certificada pelo Incra e a área declarada no CAR, em razão dos diferentes sistemas de projeção cartográfica utilizados para um e outro.
7. Retificação judicial x retificação extrajudicial
O art. 212 da lei registros públicos faculta ao interessado requerer a retificação por meio de procedimento judicial ou extrajudicial (administrativo), quando o registro ou a averbação for omissa, imprecisa ou não exprimir a verdade.
A nota do item 136.6, Cap. XX, Tomo II, NSCGJ, que determina o indeferimento da retificação por falta de correspondência entre o registro e o material técnico apresentado, deve ser aplicado com cautela pelo registrador de imóveis, pois há previsão normativa, a qual estabelece instrumentos administrativos para solucionar eventuais questões no procedimento de retificação, sem a necessidade de intervenção judicial, conforme nota explicativa do item 136.15, Cap. XX, Tomo II, NSCGJ5.
O desembargador José Marcelo Tossi Silva comenta que "o Oficial de Registro de Imóveis, quando necessário, deve realizar diligências e vistorias externas e utilizar os documentos e livros mantidos no acervo de sua serventia visando apurar se o requerimento de retificação atende a todos os seus requisitos, podendo também, para essa finalidade, ou se a descrição realizada estiver incompleta, intimar o requerente e o profissional habilitado para que complementem ou corrijam a planta e o memorial descritivo do imóvel, quando os apresentados contiverem erro ou lacuna, ou apresentem outros esclarecimentos e documentos, fazendo-o por meio de ato fundamentado."6.
8. Georreferenciamento: Certificação 2ª norma (SNCI) x certificação 3ª norma (Sigef)
Não há previsão legal nem normativa de obrigatoriedade de revalidação da certificação nem de refazimento do georreferenciamento já averbado pelas normas atuais do Sigef (3ª norma). A lei 10.267/01 e o decreto 4.449/02 não impõem a atualização da certificação. Tampouco as normas de serviço da CGJ.
A atualização da certificação da 2ª norma (SNCI) para a 3ª norma (Sigef) é uma prerrogativa do proprietário, conforme item 8.1.3, do Manual para Gestão da Certificação - 2ª Edição do Incra - Conversão de parcela certificada no SNCI para o Sigef7.
Caso o interessado opte pela atualização da certificação do georreferenciamento para a 3ª norma do Incra, mesmo sem previsão legal, poderá adotar o procedimento criado pelas Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça, no Cap. XX, item 135.1, h.
Considerações finais
Em resumo, aí está o posicionamento atual da jurisprudência e da doutrina sobre alguns aspectos da retificação extrajudicial (administrativa) da matrícula de imóvel rural, para substituir a descrição antiga pela georreferenciada.
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1 TJSP, Recurso Administrativo n° 1001107-41.2023.8.26.0201; Juíza Assessora: Maria Isabel Romero Rodrigues Henriques; Órgão Julgador: Corregedoria Geral de Justiça; Diário da Justiça Eletrônico de 20.02.2024.
2 Provimento CNJ nº 160/2024.
3 GRUPPI, Bruno Drumond; SUPPIA, Manuela Cortez. As exigências ilegais do cadastro ambiental rural nas NSCGJ. Migalhas. São Paulo, 1ª de abril de 2022. Disponível: https://www.migalhas.com.br/depeso/362879/as-exigencias-ilegais-do-cadastro-ambiental-rural-nas-nscgj. Acesso em 22 mar. 2025
4 GRUPPI, Bruno Drumond; ABBÁ, Laura. Novas regras ambientais para imóveis rurais impostas pela Corregedoria Geral de Justiça - Provimento 25/23. Migalhas. São Paulo, 1ª de março de 2024. Disponível: https://www.migalhas.com.br/depeso/402603/regras-ambientais-para-imoveis-rurais-impostas-pela-cgj. Acesso em 22 de mar. 2025.
5 TJSP, Recurso Administrativo n° 1000578-40.2017.8.26.0554; Juíza Assessora: Stefânia Costa Amorim Requena; Órgão Julgador: Corregedoria Geral de Justiça; Diário da Justiça Eletrônico de 11.09.2019.
6 O procedimento de retificação do registro imobiliário direito brasileiro. In: Direito Imobiliário Brasileiro: novas fronteiras na legalidade constitucional. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 1.125.
7 Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://sigef.incra.gov.br/static/documentos/manual_gestao_certif_v2.pdf. Acesso em 23 mar. 25.
Helio Lobo Junior
Advogado (Faculdade de Direito de Sorocaba). Promotor de Justiça. Juiz de Direito. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Sócio do Escritório Lobo e Orlandi, Advogados. Autor de diversos artigos e pareceres em revistas especializadas sobre direito registral e direito notarial. Membro honorário da ADNOTARE.
Narciso Orlandi Neto
Advogado (USP). Juiz de Direito. Desembargador aposentado do TJSP. Sócio do Escritório Lobo e Orlandi, Advogados. Autor de livros sobre direito registral e notarial. Membro honorário da ADNOTARE.
Bruno Drumond Gruppi
Advogado e geógrafo. Especialista em direito ambiental, agrário, registral e notarial. Coordenador da Adnotare, associado do Ibradim e membro das comissões de meio ambiente e agrário da OAB/SP.