Matemática constitucional: Alguns números dos últimos 200 anos de história
A história do fenômeno do constitucionalismo no Brasil é povoada por diversos documentos, acontecimentos e rupturas. O que uma análise guiada pelos números pode revelar dessa história?
sexta-feira, 11 de abril de 2025
Atualizado às 14:18
"Os números não mentem!"1 Ao longo dos últimos duzentos (e um) anos, o Brasil teve sete constituições (ou oito, a depender do constitucionalista considerado). Não vamos entrar no mérito individualizado do estigma da outorga ou da dádiva da promulgação em relação a cada uma delas. Vale dizer, primeiramente, que a mais curta foi a de 1891, obra de Rui Barbosa, que só foi promulgada após ser precedida por duas constituições provisórias (publicadas através do decreto 510, de 22/6/1890 e do decreto 914-A, de 23/10/1890, respectivamente), as únicas de toda a nossa história constitucional.
A constituição formal de existência mais efêmera foi a de 1934, que vigeu durante apenas três anos. Não obstante, foram apenas cinco as constituintes: 1891, 1934, 1946, 1967 (há dúvidas!) e 1988. A assembleia de 1823 foi dissolvida por Dom Pedro I na chamada "noite da agonia" e a que deveria ter precedido a Carta de 1937, nem sequer existiu. Francisco Campos trabalhou na solidão de seu escritório. Como consequência das constituintes que puderam trabalhar até a entrega do seu produto final - razão de sua existência - temos cinco coleções de anais desses congressos, fonte privilegiada que revela o teor dos debates travados.
Os anteprojetos que vingaram também foram cinco, valendo mencionar a ausência de um texto prévio produzido por uma "comissão de sábios", ou fruto do intelecto de um único homem, em 1937 e em 1946. Somente uma história constitucional especulativa daria conta dos anteprojetos descartados e dos dispositivos retirados das versões finais. Aqui, todavia, estamos tratando daquilo que foi e não daquilo que poderia ter sido.
As assembleias constituintes de 1891, 1934, 1946 e 1988 tiveram regimentos internos dispondo sobre o seu funcionamento. Todos eles foram publicados previamente ao início dos trabalhos, com exceção da constituinte de 1891, que teve um regime interino e um definitivo produzido posteriormente.2
Atos das disposições constitucionais transitórias ou apenas "disposições transitórias" - juntas ou separadas do texto principal, com ou sem numeração própria, mas sempre ao final - estiveram presentes em seis das sete constituições, com exceção da primeira (1824). Todas elas trouxeram preâmbulos e a grande maioria destes incluiu alguma menção religiosa. Ademais, nos momentos autoritários era comum que os documentos de status constitucional trouxessem ainda uma elaborada exposição de motivos, ou, minimamente, uma série de considerandos justificando o injustificável...
"Atos constitucionais provisórios" ou "atos constituintes" foram três: O decreto 1, de 15/11/1889; o decreto 19.398 de 11/11/1930, e o Ato Institucional 1 de 9/4/64. "A cada manifestação constituinte, editora de atos constitucionais como Constituição, atos institucionais e até decretos (veja-se o dec. 1, de 15/11/1889, que proclamou a república e instituiu a Federação como Forma de Estado), nasce o Estado. Não importa a rotulação conferida ao ato constituinte. Importa a sua natureza. Se dele decorre a certeza de rompimento com a ordem jurídica anterior, de edição normativa em desconformidade intencional com o texto em vigor, de modo a invalidar a normatividade vigente, tem-se novo Estado".3 O decreto 1/1889 marcou passagem do Império para o período republicano; o decreto 19.398/30 marcou a passagem da Primeira República (1889-1930) para a Era Vargas, logo após a Revolução de 1930; já o AI-1 foi o marco legal da última ditadura, encerrando o interregno democrático iniciado em 1946.
Quanto às emendas destacam-se o ato adicional de 1834, que trouxe mudanças significativas ao texto de 1824; a Reforma Constitucional de 1926, única alteração feita ao longo dos mais de 40 anos de vigência da primeira constituição republicana; o decreto legislativo 6, de 18/12/35, que implantou, de uma só vez, três emendas à Constituição de 1934 no contexto do endurecimento da lei de segurança nacional e da perseguição política que se seguiu; as "leis constitucionais", tipo normativo não previsto na Carta de 1937, mas que foi utilizado para emendá-la durante todo o Estado Novo, ressaltando-se a lei constitucional 9, de 28/2/45, que alterou vastamente a "polaca" na tentativa de se salvaguardar o regime varguista que se encontrava em franco declínio4; a EC 1, de 17/10/69, objeto de celeuma doutrinária quanto a sua natureza e autonomia; o "Pacote de Abril", conjunto formado pela EC 8, de 14/4/77 e seis decretos-leis que baixaram "uma série de medidas de grande alcance político"5 e instituíram os famosos "senadores biônicos" durante o governo de Ernesto Geisel e a EC 26 de 27/11/85, que, paradoxalmente, convocou a Assembleia Constituinte que viria a substituir a própria Constituição que estava sendo alterada.
Não podemos nos esquecer da Constituição de 1946, que foi emendada 21 vezes até 1966, mesmo após o Golpe Militar de 1964 e o advento dos atos institucionais. Isto porque o texto de 1946 não foi substituído imediatamente por uma nova constituição formal [situação semelhante também ocorreu no Governo Provisório de Deodoro da Fonseca (1889-1891) e no Governo Provisório de Getúlio Vargas (1930-1934)]. Em verdade, passou por um processo gradual de aleijamento, mal e porcamente disfarçado de recepção. Os atos institucionais eram os protagonistas agora. A substituição só seria feita em 1967, após convocação extraordinária do congresso nacional, apenas "para inglês ver". Da "Quarta República" ou "período populista" (1946-1964) podemos ainda salientar a EC 4, de 2/9/61, que implantou o parlamentarismo no Brasil após a conturbada renúncia de Jânio Quadros. A Constituição de 1988, por fim, passou por uma revisão em 1994 e foi emendada 135 vezes até a presente data. Essa história, portanto, não acaba aqui.
Em termos de Teoria Geral do Estado, já tivemos duas "formas de Estado" distintas: Unitária no Império e federativa a partir de 1889 até os dias atuais, isso se desconsideramos a união real entre Espanha e Portugal durante a chamada "União Ibérica" (1580-1640) e a união pessoal entre Brasil e Portugal através de Dom Pedro I, que assumiu o trono português após a morte de seu pai em 1826, como Pedro IV. Além disso, durante a égide da Constituição de 1967, apesar desta ter mantido nominalmente o federalismo, o sistema que vigorou efetivamente mais se assemelhava ao de um Estado Unitário, em virtude da centralização excessiva. Duas também foram as "formas de governo": Monarquia constitucional no Império e a república da proclamação em diante; quanto aos "sistemas de governo" tivemos o parlamentarismo durante o Império, de 1847 a 1889, uma rápida passagem durante o governo do presidente João Goulart, de 1961 a 1963, e o presidencialismo na maior parte do tempo; o sistema jurídico, por seu turno, sempre foi o mesmo: O romano-germânico, apesar dos recentes e relevantes influxos do Common Law no Direito Processual e na jurisprudência brasileira como um todo.
Finalmente, no que pertine aos "regimes de governo" ou "regimes políticos", oscilamos diversas vezes entre a democracia e o autoritarismo, intermediados por períodos de redemocratização. É despiciendo descrever cada uma dessas oscilações, materializadas em golpes de estado, putschs, intentonas e planos conspiratórios, tanto os que tiveram sucesso quanto aqueles que foram apenas tentados, além das inúmeras aberturas e fechamentos do Congresso Nacional. Não há espaço aqui para contar cada uma das vezes nas quais esses acontecimentos se repetiram. Foram muitas... Em geral, o que se percebe é o caráter dualista, bifronte ou dúplice da sucessão dessas categorias classificatórias, ora temporariamente, ora definitivamente. É fato que a alternância entre as formas e sistemas componentes dessas duplas, conformou diferentes versões do Estado Brasileiro nos últimos dois séculos.
Ao longo de toda essa trajetória, tivemos algumas situações sui generis: duas revoluções pedindo uma nova constituição para o país, a saber, a "Confederação do Equador", em 1824, e a Revolução Constitucionalista encabeçada pelos paulistas, em 1932, além de um ato de um poder de fato que se autoproclamou como fruto de um suposto Poder Constituinte Revolucionário, o AI-1, e um ato de um poder de fato que se pretendeu "supraconstitucional"6, o famigerado AI-5.
Em relação ao constitucionalismo subnacional, temos hoje vinte seis constituições estaduais e a lei orgânica do Distrito Federal, devendo todas elas guardar simetria com a sua congênere federal. Milhares de leis orgânicas regem os 5.570 municípios brasileiros, se assemelhando a constituições municipais. Essa última afirmação que pode ser considerada um impropério para alguns constitucionalistas...
Sete, por coincidência, são as espécies normativas previstas no art. 59 do texto constitucional em vigor (emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções), além dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos que possuem status de emendas.7 Quatro são as cláusulas pétreas explícitas. Quatro também são os entes federados (União, estado, DF e municípios), correspondentes a três níveis de governo (federal, estadual e municipal), excluindo-se os territórios federais, distritos, bairros e outras unidades administrativas. Três são os poderes, mas já foram quatro (lembremo-nos do Poder Moderador). Duas são as espécies do gênero "poder constituinte": Originário e derivado, sendo que este último se divide em outras subespécies (reformador, revisor e decorrente). A soberania, por sua vez, é una e indivisível.
Os números não mentem, de fato, e nesse sentido específico nossa história constitucional mais se assemelha a da França - que teve doze constituições entre 1791 e 1875 - do que a dos Estados Unidos. Mesmo fazendo as contas corretamente, ou se assustando com elas, essa história não precisa ser contada através de seus fracassos. Por outro lado, pode ser encarada como um processo de aprendizagem social de longa duração, que emerge dessas sucessivas experiências constitucionais. Nem a mística da numerologia cabalística é capaz superar a militância pragmática, firme e constante em torno do projeto de sociedade que se pretende construir. Pergunto: O número de constituições superadas no passado se compara ao de direitos conquistados no art. 5º? A efetividade desses direitos, por outro lado, são outros quinhentos...
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1 Agradeço os comentários e sugestões dos amigos e professores: Dr. Raoni Bielschowsky, Dr. Bruno Burgarelli Albergaria Kneipp, Júlia Guimarães e Erick Cabello.
2 Cf. FRANCISCO, Henrique Sugahara. ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE DE 1891 (verbete). In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV.
3 TEMER, M. Elementos de direito constitucional. 13. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 1997.
4 Foram alterados os arts. 7º, 9º e parágrafo, 14, 30, 32 e parágrafo, 33, 39 e parágrafos, 46, 48, 50 e parágrafo, 51, 53, 55, 59 e parágrafos, 61, 62, 64 e parágrafos, 65 e parágrafo, 73, 74, 76, 77, 78 e parágrafos, 79, 80, 81, 82 e parágrafo, 83, 114 e parágrafo, 117 e parágrafo, 121, 140, 174 e parágrafos, 175, 176 e parágrafo, 179.
5 COUTINHO, Amélia; GUIDO, Maria Cristina. GEISEL, Ernesto (verbete). In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV. Disponível em: https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/dicionarios/verbete-biografico/geisel-ernesto. Acesso em: 26 mar. 2025.
6 Apesar da reflexão aqui empreendida ter mais ver com a aritmética do que com a gramática vale notar que, assim como um golpe, revolução ou assembleia constituinte precede uma constituição na vida real, no campo gramatical diversos prefixos podem preceder o vocábulo "constituição" e suas palavras derivadas, por exemplo: "anticonstituição" (parafraseando Ulysses Guimarães ao se referir ao AI-5 e ao texto de 1967), infraconstitucional, supraconstitucional, neoconstitucionalismo e etc. A derivação prefixal não para por aí pois cabe a criatividade do jurista adjetivar outros documentos da nossa história constitucional como contra, pré, semi, proto ou pseudo... constituição, constitucional ou constituinte, fazendo o seu próprio juízo de valor e defendendo sua posição, seja ela contrária ou não a opinião dos manuais de doutrina jurídica. Essa questão é relevante pois a interpretação gramatical é ensinada como forma de interpretação do Direito nas disciplinas propedêuticas da academia, muito se fala sobre o giro linguístico e qual o seu lugar nas ciências jurídicas, e, para além disso, multiplicam-se os estudos sobre a relação entre Direito e Literatura. É importante saber como se fazem coisas com palavras, portanto, remetendo a "teoria dos atos de fala" de John Austin.
7 Vide a Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, que trouxe a "Reforma do Judiciário".