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A liberdade das vestes religiosas em colégios militares: dois caminhos se avizinham ao STF

O aumento das escolas militares densifica o embate entre a homogeneidade e o uso de vestes religiosas: O STF ainda é lacônico se a Constituição proíbe quebrar o padrão de unidade em prol das crenças?

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Atualizado às 16:45

Muito além dos parâmetros dispostos nas escolas civis, as academias militares procuram disciplinar todos os trajes de seus colegiais para criar senso de unidade e irmandade entre os comuns. No entanto, em um país lastreado pela diversidade religiosa, pouco surpreende que alguns estudantes ousem desafiar as diretrizes, em benefício de exercer suas crenças em sua plenitude, desde o porte de simples objetos até subversão completa do traje militar.

A exemplo de qualquer outra instituição do gênero, o Colégio Militar Tiradentes XXV, localizado em Santa Inês - MA, dispõe de regrado código de vestimentas para seus alunos, seguido à risca por todos. Um destes, todavia, em atenção ao que lhe fora ensinado na Igreja Adventista do Sétimo Dia da Reforma Cristã, optou por deixar seu cabelo crescer e utilizar mangas longas junto à farda, em dissintonia com o padrão de sua escola. Irresignado, o diretor solicitou que aderisse aos protocolos dos adornos militares, apenas para ser surpreendido por súplicas da mãe do rapaz, com explicações da citada igreja, para que pudesse frequentar as aulas. A negativa foi retumbante.

Ao ser instada a decidir, nos autos do Processo nº 0800191-14.2025.8.10.0056, a Exma. Juíza de Direito Ivna Cristina de Melo Freire, Titular da 1ª Vara de Santa Inês - MA, em sede de Mandado de Segurança, alegou o diretor que o impetrante buscava se eximir de obrigação infralegal de forma desmotivada. A magistrada, porém, entendeu pela existência de violação à liberdade de crença sem prestação alternativa que a respeitasse e decidiu que o aluno pode frequentar o colégio de acordo com a religião.

A ilustração em epígrafe não se traça para perquirir se a decisão ou os argumentos das partes estão corretos, mas antes para asseverar a realidade que está prestes a ingressar na ordem de pauta do STF, ainda sem caminho definido na jurisprudência. Impulsionado pela LC paulista 1.398/24, o modelo cívico-militar foi implementado em 70 unidades da rede estadual, somente em 2025.1 No Paraná, o líder no País, sistema já abrange 312 estabelecimentos, números que tendem a aumentar dada a aprovação de inúmeros pais e governadores, ainda que enfrente notórias resistências.2

A questão, todavia, permanece latente e seguirá nos Tribunais: a Constituição proíbe quebrar o padrão de unidade das vestes dos colégios cívico-militares em prol das crenças? O STF carece de respostas definitivas. Ainda que outros julgados lastreados no art. 5º, VI e VIII, da CF, tenham dado ampla liberdade, inexiste resolução no contexto específico da escola militar. Torna-se, necessário, então, breve incursão em três frentes, no afã de demonstrar os dois caminhos que pairarão diante do STF: a uma, ao significado dos artigos assinalados; a duas, aos casos que pairaram na Corte de seu país se origem próxima (rectius, EUA); e, a três, os caminhos delineados em julgados análogos no STF.

I. Prolegômenos sobre a raiz do art. 5º, VI e VIII, da CF

A conquista da liberdade religiosa é de suma importância para a história constitucional brasileira, posto que a Constituição de 1824 continha, em seu art. 5º, a previsão de uma religião do Império, o que, por muito, turbou o exercício pleno das demais, que somente eram permitidas em seu culto doméstico. Inspirada "Bill of Rights" dos EUA, dispôs o art. 72, § 3º, da Constituição de 1891, seguida pelas demais, que "todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto".

Ensina Virgílio Afonso da Silva que o ponto mais delicado da liberdade de crença são as ações que nela se lastreiam, pois "implica também a possibilidade de agir conforme essa crença e com base em determinadas regras e, em muitos casos, em certos dogmas".3 Daí porque é capital decidir com rigor se qualquer restrição é compatível com a constituição, a exigir parâmetros claros de decisão, pois o sem plena liberdade religiosa não há sequer plena liberdade cultural e política.4

Em todo caso, a lei "deverá indicar, não só a prestação alternativa, mas também quais os direitos que serão perdidos em caso de invocação de escusa de consciência", leciona Manoel Gonçalves Ferreira Filho.5 O Estado Democrático de Direito, assim, busca se adaptar para não produzir efeito desproporcional em grupos religiosos minoritários ao proporcionar obrigação alternativa, ao mesmo tempo em que deve prever com clareza os impactos de seu descumprimento.

Deveras, a liberdade religiosa é fruto de ampla luta, estampada pelos "Founding Fathers" como um dos direitos fundamentais mais relevantes ao "rule of law", com característica indissociável da liberdade de consciência, premissa que inspirou nossa própria "Free Exercise Clause". Segundo Ruy Barbosa, redator do art. 12, § 3º, da CF/1891, os EUA são a fonte da neutralidade religiosa e procura acomodá-las, de forma que lá se deve "buscar as lições, as decisões, as soluções", na inexistência de parâmetro claro.6 É evidente, contudo, que o Brasil sofreu influxos próprios e de outros países, mas que escapam ao objeto e à dimensão do presente artigo, sobretudo por não apresentarem decisão em caráter vinculante sobre o tema versado.

II. O caso "Goldman v. Weinberger" (1986) e seus impactos

No famoso caso "Goldman v. Weinberger", um psicólogo judeu foi orientado a não utilizar seu quipá enquanto estivesse fora do hospital militar em que estava à serviço das Forças Armadas. Foi ameaçado de ser submetido ao julgamento na Corte Marcial, com base na "Air Force Regulation" nº 35-10. Em sua defesa, postulou que "Free Exercise Clause" exigiria passar por ponderação aduzida em outro caso da Suprema Corte (SCOTUS), o "Sherbert Test", de larga aplicação à época, que passa por dois questionamentos: (i) se o governo conferiu um fardo ao livre exercício da religião; e (ii) se essa decisão a impõe uma pena ou a limita. O ato do Estado somente sobrevive se houver um interesse estatal convincente ("compeling state interest") e se não existir alterativa para atingir o fim.

O redator do acórdão da maioria, "Chief Justice" Rehnquist, afirmou que o "Sherbert Test" não poderia se aplicar aos casos militares da mesma forma que na sociedade civil, pois naquele espaço a vestimenta serve para "promover a obediência indistinta, unidade, comprometimento e esprit de corps". Alegou, ainda, que encoraja um senso de hierarquia que é necessário na guerra e na paz, que não se encontra restrito por qualquer passagem constitucional.

Do ponto de vista do stare decisis, Rehnquist não enxergou quebra diante do "Sherbert Test", diante dos seguintes julgados: (a) "Parker v. Levy" (1974), decidiu-se que os militares constituem parcela segmentada e que necessita de standards diferentes em direitos fundamentais; e (b) "Chappell v. Wallace" (1983) e "Orloff v. Willoughby" (1953), reforço à unidade e disciplina no meio militar contra protestos e questões pessoais. Imprescindível assinalar que o Congresso, em nítido "backlash", editou o "National Defense Authorization Act", que permitiu aos membros das Forças Armadas usarem um item religioso junto ao uniforme, desde que seja "simples e conservador" e não "interfira com a performance dos deveres militares" (10 U.S.C. § 774).

Equivoca-se quem supõe a ratio de "Goldman v. Weinberger" foi superada in totum, a despeito de não ter ingressado circunstância de mesma natureza na SCOTUS. A título ilustrativo, em "Tisby v. Camden County Correctional Facility", decidido pela Suprema Corte de Nova Jérsei, em 2015, uma funcionária de um presídio local, após treze anos no cargo, tornou-se muçulmana e passou a usar o "hijab". Seu supervisor, depois de inúmeras advertências, a suspendeu. Ato contínuo, argumentou a oficial pela ausência de acomodação das vestes à religião, como previa lei NJSA 11A: 2-13, em ofensa à "Free Exercise Clause".

Em sua decisão, o Juiz Gibbons Whipple redigiu que empregadores não podem exigir que seus empregados violem práticas religiosas sinceras. Existiria, porém, dano indevido ao exercício policial, que, para se acomodar, "requereria irrazoável dispêndio ou dificuldade, irrazoável interferência com a segurança ou a operação eficiente do local de trabalho", somada a percepção de o "hijab" carrega a "habilidade de esconder e contrabandear itens à cabeça". Inobstante não concordemos com a ótica entabulada pela tribuna neojersiana, a descrição serve para apontar que a via de "Goldman v. Weinberger" permanece viva, o que se percebe, também, em "Webb v. City of Philadelphia" (562 F. 3d256).7

III. Os principais parâmetros traçados pelo STF

Segundo percepção do Ministro Marco Aurélio, na ADPF 54, "[o] Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões"8 A realidade, entretanto, é menos cortês e demonstra certa maleabilidade na ideia de neutralidade religiosa na Suprema Corte. No STA nº 389 AgR, sob relatoria do Ministro Gilmar Mendes, por exemplo, o STF entendeu que prover data ou horários alternativos para realização do ENEM, que se daria no mesmo dia do "Shabat" judaico "não se releva em sintonia com o princípio da isonomia, convolando-se em privilégio para um determinado grupo religioso".9

Lado outro, no ARE 1.099.099 (Tema 1.021), o STF firmou que não se pode privar direitos por motivos religiosos, de forma que qualquer restrição só é autorizada se ocorrer recusa ao cumprimento da obrigação alternativa. E mais, o voto do Relator Ministro Edson Fachin filiou-se à linha próxima da exarada há muito por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a saber:

"A não existência de lei que preveja obrigações alternativas não exime o administrador da obrigação de ofertá-las quando necessário para o exercício da liberdade religiosa, pois, caso contrário, estaria configurando o cerceamento de direito fundamental, em virtude de omissão legislativa." (grifos nossos)10

A bem ver, o STF foi mais enfático na proteção do direito fundamental, porquanto reputou necessária a ação do administrador público para prover a obrigação alternativa, ainda que não exista previsão em lei, sob pena de validar omissão legislativa inconstitucional. Logo, não sucederia simplesmente deixar de acomodar a religião por ausência de lei que preveja obrigação alternativa, conclusão que sugere afastar a questão em xeque de "Goldman v. Weinberger".

Nesse sentir, no recente RE 859.376 (Tema 953), de relatoria do Ministro Roberto Barroso, a maioria do STF entendeu que um item do vestuário que cobre parte do rosto na foto da CNH (in casu, um "hijab"), conquanto não impeça a identificação, não urge sua retirada. Em atenção especial às minorias religiosas, que, não raro, utilizam trajes que fazem parte de seu sistema de crenças ou os adaptam para o exercício de suas profissões, redigiu o voto condutor que "o Estado tem o dever de, na medida do possível, ajustar a aplicação de suas políticas e normas para que não produzam discriminação indireta a grupos vulneráveis",11 em oposição à Corte de Nova Jérsei.

IV. Os caminhos que se avizinham

Duas opções, inevitavelmente, serão apresentadas ao escrutínio do STF sobre o uso de vestes religiosas em colégios militares: rechaçá-las ou permiti-las. Na primeira, seguiria a Corte brasileira o caminho da americana, sob os auspícios de que os meios militares comportam regramento próprio, sem semelhança completa com os meandros da sociedade civil. Na segunda, não pugnaria o Tribunal pela liberdade total, mas antes pela possibilidade de acomodar as vestes a obrigação prevista em lei ou pelo administrador.

Em apoio às lições de Virgílio Afonso da Silva, condicionar o exercício do direito à promulgação de uma lei carece de base jurídica, pois o diploma não é essencial para definir o exercício do direito. Ao revés, a lei se mostra essencial apenas para definir as prestações alternativas, de tal sorte que "na ausência da lei, a objeção de consciência pode ser exercida e o objetor não estará sujeito ao cumprimento de prestação alternativa, tampouco à suspensão de direitos políticos",12 no itinerário cruzado pelo Tema 1.021.

Ainda que se postule que a STA 389 AgR apresente percurso diverso, impede ressaltar, contudo, que este caso configurava situação excepcional, dado um exame nacional que ocorreria dias depois de apreciada a tutela antecipada, o que levou a discussões sobre a real impossibilidade de prover a obrigação alternativa pleiteada, i.e., permitir a admissão nos edifícios mais tarde do que os demais candidatos, realizando as mesmas questões. Ademais, o MEC propunha que os alunos ingressassem nos prédios de realização das avaliações às 14h, o mesmo horário dos demais, e neles ficassem retidos até que findasse o período religioso para, então, realizarem as provas sem qualquer chance de acesso prévio aos cadernos de prova, o que foi considerado proporcional pelo STF.

Se o STF decidir privilegiar a estabilidade de suas decisões, por conseguinte, parece-nos que os casos colacionados se harmonizam, em verdade, ao pensamento do "Justice" Blackmun, em seu voto dissidente em "Goldman v. Weinberger". O então decano da SCOTUS assentou que na ausência de lei, o corpus militaris deveria demonstrar os custos de usar o item da crença específica e os relacionados à acomodação de outros itens religiosos, com consequente apresentação de alternativas se os custos para a unidade e disciplina se mostrassem relevantes. Se não o fizer e não talhar a obrigação alternativa, restará a liberdade plena no uso da vestimenta nos espaços militares.

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1 Cf. BIMBATI, Ana Paula. Veja quais escolas aprovaram o modelo cívico-militar em SP na 1ª Consulta. UOL, 04 abr. 2025. Disponível em: https://educacao.uol.com.br/noticias/2025/04/04/veja-quais-escolas-aprovaram-civico-militar-em-sp-na-primeira-consulta.htm. Acesso em 05 abr. 2025.

2 Cf. DALL'AGNOL. Laísa. Escolas cívico-militares têm nota maior do que escolas 'normais' no Paraná. Veja, 21 ago. 2024. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/maquiavel/escolas-civico-militares-tem-nota-maior-do-que-escolas-normais-no-parana/. Acesso em 05 abr. 2025.

3 Cf. Direito constitucional brasileiro. São Paulo, Edusp, 2021, p. 188.

4 Cf. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. T. IV. 3. ed. rev. atual. e ampl. Coimbra; Coimbra Editora, 2000, p. 408.

5 Cf. Comentários à Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 1990, v. 1, p. 43. 

6 Cf. Plataforma Eleitoral. In: Fundação Casa de Rui Barbosa (Org.). Pensamento e Ação de Rui Barbosa. Brasília: Senado Federal, 1999, p. 331-332.

7 Em sede de excursus, é curioso notar que o no BVerfGE 33, 23 (1), o Tribunal Constitucional Alemão decidiu, ainda em 1972, que a liberdade de crença somente poderia ser restringida pela ex lege, por estreita vinculação à dignidade humana, com o "direito do indivíduo oriental todo o seu comportamento segundo os ensinamentos da sua crença", de tal sorte que o titular jamais pode ser abstratamente privado ("unverwirkbar") de seu exercício, a demonstrar que a rota americana não é unanimidade nas democracias.

8 Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal - STF. ADPF nº 54. Relator Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno. j. 12/04/2012, DJe 30/04/2013.

9 Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal - STF. STA nº 389 AgR. Relator Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. 03/12/2009, DJe 14/05/2010.

10 Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal - STF. ARE nº 1.099.099 (Tema nº 1.021). Relator Ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. 26/11/2020, DJe 12/04/2021.

11 Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal - STF. RE nº 859.376 (Tema nº 953). Relator Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. 17/04/2024, DJe 10/12/2024.

12 Cf. Direito constitucional brasileiro... Op. cit., p. 190

Pedro Gabriel Barroso de Oliveira

Pedro Gabriel Barroso de Oliveira

Sócio no escritório Heleno Torres Advogados Associados. Bacharel e Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo. Foi intercambista na University of Notre Dame pela AUCANI-USP.

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