Zolgensma no SUS: uma vitória parcial no tratamento da AME
Quando o SUS incorpora a medicação mas muitas vezes o processo judicial ainda é necessário.
segunda-feira, 7 de abril de 2025
Atualizado às 17:12
Zolgensma no SUS: uma vitória parcial no tratamento da AME
Por Flaviane CalerA Atrofia Muscular Espinhal (AME) é uma doença genética rara e devastadora, que afeta os neurônios motores e compromete funções vitais como movimentação, deglutição e respiração. Após intensa mobilização social, jurídica e científica, o Sistema Único de Saúde (SUS) incorporou em março de 2025 o medicamento Zolgensma - uma terapia gênica de dose única, considerada uma das mais inovadoras e caras do mundo. Mas, apesar do avanço histórico, a realidade das famílias brasileiras ainda esbarra em barreiras burocráticas e critérios rígidos que podem tornar essa conquista inócua para muitos.
Diagnóstico da AME: quando cada dia conta.
A AME é causada por mutações no gene SMN1 (Survival Motor Neuron 1), responsável pela produção da proteína essencial à sobrevivência dos neurônios motores. O diagnóstico precoce é fundamental para garantir a eficácia do Zolgensma, que apresenta melhores resultados quando administrado nos primeiros meses de vida.
Esse diagnóstico pode ser feito por:
- Teste genético molecular, que confirma a deleção ou mutação bialélica do gene SMN1;
- Triagem neonatal (teste do pezinho ampliado), já disponível em alguns estados, mas ainda não obrigatória no Brasil;
- Avaliação clínica neurológica, com base em sinais como hipotonia, dificuldade de sucção, ausência de reflexos e atraso no desenvolvimento motor.
- A falta de acesso universal à triagem neonatal ampliada e a demora nos resultados laboratoriais ainda comprometem a janela terapêutica ideal para o uso do Zolgensma.
O que é o Zolgensma?
O Zolgensma (onasemnogeno abeparvoveque) é uma terapia gênica inovadora, administrada em dose única, que insere no organismo uma cópia funcional do gene SMN1. Seu objetivo é interromper a progressão da AME, devolvendo à criança a capacidade de produzir a proteína necessária para a função motora.
Com custo médio estimado em R$ 7 milhões por aplicação, o medicamento vinha sendo obtido por famílias brasileiras por via judicial. Dados do Ministério da Saúde indicam que, entre janeiro de 2019 e setembro de 2022, foram ajuizadas 136 ações judiciais com pedidos de fornecimento do Zolgensma, gerando um gasto de aproximadamente R$ 944,8 milhões, com decisões favoráveis em 83% dos casos.
As regras do SUS para fornecimento do Zolgensma:
A partir da formalização do Acordo de Compartilhamento de Risco com a farmacêutica, o Ministério da Saúde estabeleceu critérios específicos para a administração do medicamento pelo SUS:
- Crianças com até 6 meses de idade;
- Diagnóstico confirmado de AME tipo 1;
- Pacientes em uso de ventilação mecânica invasiva por mais de 16 horas/dia;
- Atendimento em um dos 28 centros de referência habilitados, localizados em 18 estados brasileiros.
Além disso, o acordo prevê que o pagamento à indústria farmacêutica será condicionado ao desempenho clínico do paciente ao longo de 5 anos, seguindo metas definidas de eficácia e sobrevida.
Quando a vitória que pode escapar pelas mãos:
Embora a incorporação do Zolgensma represente uma conquista para as famílias, os entraves administrativos e os critérios restritivos ainda tornam o acesso desigual:
- Crianças diagnosticadas após os 6 meses de idade, ou que tenham ultrapassado esse marco enquanto aguardavam exames, não são mais elegíveis;
- A ausência de uma política nacional de triagem neonatal ampliada impede a identificação precoce em grande parte do país;
- O tempo entre a suspeita clínica e o início efetivo do tratamento, seja por falta de informação ou lentidão do sistema, compromete a janela terapêutica;
- Famílias em regiões sem centros habilitados enfrentam dificuldades logísticas para conseguir encaminhamento e transporte;
Muitos continuam a judicializar o acesso ao medicamento, enfrentando desgaste emocional e incertezas.
Considerações finais
A disponibilização do Zolgensma pelo SUS marca um passo importante na democratização do acesso à medicina de ponta. No entanto, a efetivação desse direito depende da superação das barreiras estruturais e administrativas que ainda impedem crianças elegíveis de receber o tratamento no momento certo.
Como advogada especializada em Direito da Saúde, vejo diariamente os impactos devastadores de uma política pública que reconhece o direito, mas não o garante plenamente. É hora de avançarmos não apenas no discurso, mas também na implementação concreta desse acesso, com revisão dos critérios, aceleração dos fluxos e apoio integral às famílias.
O tratamento existe. A tecnologia está disponível. O que falta, muitas vezes,évontade administrativa de viabilizar o que a Constituição já assegura: o direito à vida e à saúde com dignidade.