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Litigância predatória - Um modelo de negócio desregulado: altos custos sociais

Maria Rita Rebello Pinho Dias, Airton Pinheiro de Castro e Paula Lopes Gomes

Sociedade brasileira deve refletir, à luz da teoria do abuso de direito, se é justo obrigar o Estado a arcar com custos extras para aumentar a estrutura do Poder Judiciário para acomodar aumento da demanda.

sábado, 5 de abril de 2025

Atualizado às 12:35

Constata-se o crescimento do debate sobre o fenômeno da litigância predatória, não raro incorretamente relacionado ao aumento da litigiosidade observado em ações de massa.

Ainda que o fenômeno da litigância predatória possua uma única característica semelhante às demandas de massa - notoriamente o maior volume de processos distribuídos -, necessário destacar, de plano, que sequer esse aspecto aproxima os dois fenômenos processuais. Ao contrário, em muitos casos o grande volume das ações de massa é utilizado pelo litigante predatório para mascarar a sua prática abusiva, pretendendo, com isso, construir artificialmente maliciosa associação indevida desta última à proteção de interesses legitimamente tutelados.

A compreensão de que esses dois fenômenos processuais são distintos - a litigância da massa a consubstanciar exercício regular de direito, e a litigância predatória a encerrar abuso de direito processual, como tal qualificado como ato ilícito - é imprescindível à identificação dos respectivos efeitos e impactos sociais, e, em especial, para permitir adequada reflexão, como sociedade, quanto ao que se pretende com relação a cada um deles.

Pretende-se, nesse breve artigo, contribuir com o mencionado debate, apontando, a partir de estudos empíricos realizados, aspectos que podem ser utilizados para distinguir os dois fenômenos processuais em análise. Para tanto, esse artigo será estruturado em cinco partes: a primeira, destinada a compilar as características já detectadas às lides qualificadas como predatórias; a segunda, para refletir sobre dados empíricos extraídos a partir de análise qualitativa sobre ações predatórias; a terceira, para estudar, a partir de insights da economia, aspectos  que podem contribuir para fomentar essa prática abusiva; a quarta, para refletir sobre suas consequências sociais, seja quanto ao seu potencial de captura da estrutura de organização judiciária em benefício exclusivo de um particular, seja quanto aos danos sociais em si, pelo virtual esgotamento da estrutura judiciária de prestar jurisdição; e, por fim, a última, referente à conclusão.

I. Das características da litigância predatória já identificadas

Em diversos relatórios e notas emitidos por NUMOPEDEs e Centros de Inteligência dos Tribunas Brasileiros, é possível identificar algumas características comuns nas lides qualificadas de predatórias.

Além do assustador volume de feitos, em números proporcionais e absolutos, constatam-se, também, características frequentes e rotineiras associadas a esse fenômeno, a saber: (i) distribuição repentina de grande número de ações por pessoas físicas, em regra consumidores, em curto período de tempo; (ii) petições iniciais idênticas ou muito semelhantes, com o mesmo relato fático, vago, despido de maior especificidade; (iii) pedidos formulados de forma genérica, não customizada; (iv) fragmentação dos pedidos em inúmeras ações, muitas vezes envolvendo o mesmo autor e o mesmo réu; (v) dispensa da audiência de conciliação do art. 334 do CPC, por manifestar previamente ausência de interesse de conciliação; (vi) solicitação da concessão do benefício da justiça gratuita; (vii) e invocação dos preceitos protetivos do Código de Defesa do Consumidor, tanto para requerer a inversão do ônus da prova, quanto para pretender justificar a distribuição de feito em território diverso daquele da residência do consumidor1. Em muitos casos, nessa espécie de ação, alega-se desconhecimento da relação contratual ou do débito e solicita-se a revisão de contratos ou a declaração da inexistência de débito ou de relação contratual, com consequente cancelamento de apontamento negativo e condenação por danos morais.

Em uma primeira e açodada análise, aspectos como "grande volume de distribuição", "concessão de justiça gratuita" e "aplicação do CDC", poderiam levar à conclusão de que o fenômeno apenas retrata hipótese de litigância massificada, que traz por questão de fundo vício na prestação de serviço ou oferta de produto ao consumidor vulnerável.

Contudo, é justamente a análise do conjunto das características do fenômeno processual da litigância predatória, em especial aquelas relacionadas à forma escolhida para se litigar e deduzir os pedidos em juízo, que permite concluir que se está diante de situação distinta daquela observada em meras demandas de massa.

Pertinente, a esse propósito, o preciso magistério de Paulo Henrique dos Santos Lucon2, segundo o qual "O abuso do processo materializa-se na distorção ou obliteração da finalidade natural e legítima do processo ou dos atos processuais. Por essa razão que o abuso do processo não corresponde necessariamente à prática de um ato vinculado ou à prática de um ato flagrantemente ilícito; na verdade, o abuso do processo está também relacionado ao exercício de uma faculdade ou discricionariedade processual, prima facie lícita, mas que é praticada com uma finalidade diversa daquela para a qual o ato é ordenado, que corresponde a um fim específico ou internalizado no sistema processual e equivale ao fim sistemático de observância dos escopos do processo". Prossegue, nessa quadra de considerações, afirmando que "... o abuso processual é definido como o uso impróprio, inadequado e distorcido dos institutos de direito processual considerados na essência como legítimos, mas que são utilizados para produzir consequências que não aquelas as quais são devidamente preordenadas pelo ordenamento jurídico... Verifica-se no abuso processual o desvio de finalidade ou uso inapropriado, mas também a falta de seriedade ou lealdade do ato, a ilicitude do objetivo desejado pelo agente, a presença do dolo ou culpa ou, ainda, a lesão ou dano causado à parte, a terceiros, ao processo individualmente considerado, ao sistema de justiça ou à própria arbitragem. ..... o desvio de finalidade está ligado à obliteração dos objetivos da jurisdição, atingindo o cerne dos escopos políticos, jurídicos e sociais do processo" (pp. 27/28 - destaques nossos). 

A experiência de magistrados acostumados a conduzir ações de massa, sobretudo na área do consumo, confere-lhes sensibilidade para detectar que nos casos com as particularidades acima descritas, há situação absolutamente atípica e inconfundível com aquela detectada para a grande maioria das ações ordinárias de massa, o que os leva a constatar tratar-se de situação distinta, a merecer, portanto, tratamento jurídico também diverso.

A análise individual do fenômeno da litigância predatória, limitada à perspectiva da dimensão do processo, permite apenas identificar as características a ele associadas. Tais características, contudo, por se valerem de regras protetivas de hipossuficientes (justiça gratuita) e de vulneráveis (consumidor), poderiam facilmente ser confundidas com questões regularmente suscitadas em ações de massa.

Para melhor compreensão da litigância predatória, é imprescindível proceder à análise global, não apenas considerando a integralidade das pretensões deduzidas em nome de um único autor, como, em especial, as características atípicas identificadas na forma específica de deduzir tais pretensões3.

Portanto, para contribuir, com dados objetivos, para a tradução dessa percepção empírica de magistrados atuantes na área do consumo, e viabilizar a identificação de cenário global, foi efetuado estudo, ainda preliminar, nos Foros localizados na Capital de São Paulo, do qual se extraem evidências conclusivas do uso disfuncional do Poder Judiciário, a seguir analisadas4.

II. Análise empírica do fenômeno da litigância predatória

O primeiro estudo5 realizado consistiu em pesquisa efetuada nas distribuições de ações cíveis em todos os Foros da Capital do Estado de São Paulo, o qual identificou expressiva tendência de crescimento, a partir de 2022, em especial, considerando o período de 2021 a 2024, variando entre 33% a 66% na competência "cível", sendo que em 6 fóruns tal aumento foi superior a 50%, conforme se evidencia do gráfico a seguir:

Tentando compreender as causas do aumento vertiginoso observado em período tão curto de tempo (3 anos), procedeu-se à pesquisa dos assuntos que mais tiveram crescimento a partir de 2021 nos Foros da Capital nos quais se observou aumento superior a 50% na distribuição de casos novos. Apurou-se, dessa indagação, que o assunto com maior crescimento em distribuição foi o de "Práticas Abusivas" - assunto este tradicionalmente associado às demandas de massa -, sendo que, apenas no Foro de Santo Amaro, o crescimento médio mensal de distribuição foi superior a 449% no período de 2021/2023:

Diante das evidências apontadas acima, optou-se por estudar o perfil da distribuição de processos que utilizaram o assunto "Práticas Abusivas", de 2021 a agosto/2024, apurando-se que, nesse período, foram distribuídos na Capital de São Paulo cerca de 73.600 novos casos, por cerca de 16.400 advogados.

A despeito do grande universo de profissionais que atuaram nesse assunto - cerca de 16.400 advogados -, o estudo do perfil de distribuição revelou a existência de dois comportamentos absolutamente distintos entre os membros integrantes desse universo.

Chamou atenção o fato de que apenas 37 advogados - ou seja, 0,23% do total - distribuíram mais do que 3 casos novos por mês, com curva crescente de distribuição, ao passo que todos os demais advogados que atuaram nesse assunto no período de 2021 a agosto/2024 manifestaram padrão uniforme, linear e estável de distribuição (até 3 casos novos/mês):

Depreende-se, dos dados empíricos analisados, que enquanto 99,77% dos advogados mantiveram, durante o período de estudo, tendência de estabilidade de distribuição de casos novos mensais (3 casos novos/mês), no grupo dos 37 advogados com média mensal superior a 3 casos novos por profissional foi verificada curva exponencial de distribuição, com média mensal consideravelmente maior - 50 casos novos por mês.

O padrão de estabilidade da distribuição mensal observada pelo grupo formado por 99,77% dos advogados que atuam no assunto "Práticas Abusivas" é compatível com cenário econômico-social brasileiro no período, no qual não houve qualquer fato específico a justificar tendência persistente, exponencial e crescente de ajuizamento de feitos no Poder Judiciário.

Vale ressaltar que, como consequência direta da diferença dos perfis de distribuição de feitos identificados, o grupo de 37 advogados, ou seja, 0,23% do total, foi responsável por cerca de 28.000 feitos distribuídos no assunto "Práticas Abusivas" no período de estudo, o que representa 38% do total de processos distribuídos.

Ao comportamento adotado por maciça maioria dos advogados (99,77%) e ao cenário macroeconômico estável, contrapõe-se padrão atípico de distribuição, absolutamente distinto, observado em apenas 0,23% dos advogados que atuam no assunto "Práticas Abusivas". Diante de padrões tão distintos de litigar e da inexistência de causa econômico-social específica, é inevitável se questionar sobre quais seriam as causas para comportamentos tão destoantes, notadamente com vistas a identificar práticas ilícitas6, a serem devidamente repelidas.

A busca por respostas a essa pergunta se mostra ainda mais relevante quando se constata o grande impacto provocado na estrutura da organização judiciária (cerca de 40%) por grupo tão inexpressivo de profissionais (0,23%), em especial diante da tendência exponencial de crescimento de distribuições. Receia-se, diante desse volume relevante e da tendência vertiginosa de crescimento, que fatalmente a estrutura judiciária existente esteja fadada a não ser capaz de acomodar todas as demandas, sujeitando-se a risco de colapso iminente.

Para melhor compreender a forma de peticionamento dos advogados que integravam o grupo dos 37 profissionais, cujo perfil de distribuição destoava do padrão uniforme de litigância observado nos demais (99,77% do total), aprofundou-se o estudo conduzido.

Observou-se que, desses 37 profissionais: (i) 15 advogados haviam distribuído de 4 a 20 processos por mês, com média mensal de 6 processos/mês, totalizando cerca de 2.100 processos no período de estudo (ou 2,85% do total); (ii) 7 advogados haviam distribuído entre 21 a 50 processos novos por mês, com média mensal de 31 casos novos/mês, totalizando cerca de 4.300 processos no período de estudo (ou 5,84% do total); (iii) 11 advogados haviam distribuído entre 51 a 100 processos novos por mês, com média mensal de 65 casos novos/mês, totalizando cerca de 7.300 processos (ou 9,91% do total) e (iv) 4 advogados haviam distribuído mais do que 100 processos novos por mês, com média mensal de 126 casos novos/mês, totalizando cerca de 17.800 processos (ou 24,18% do total). Dentro desse grupo de 4 advogados que distribuíram mais de 100 processos novos por mês, as médias mensais de distribuição de casos novos para cada um deles foi de 107, 109, 132 e 524.

É de se ressaltar que dentro do grupo de 37 advogados estudados não se identificou membro integrante da Defensoria Pública.

Chama a atenção, por fim, que do universo de cerca de 16.400 advogados que distribuíram feitos no período de 2021 a agosto/2024 no assunto "Práticas Abusivas" na Capital do maior Estado brasileiro, somente 4 foram responsáveis por cerca de 24,18% dos feitos distribuídos.

Como etapa seguinte do estudo realizado, cotejou-se os advogados que haviam distribuído mais de 21 casos novos por mês (ou seja, um total de 22 profissionais) no assunto "Práticas Abusivas" entre 2021/2024, com análises anteriores de perfil de litigância realizado pelo NUMOPEDE do E.TJSP, tendo-se identificado que muitos deles haviam tido o seu perfil de distribuição analisado, com a identificação, em muitos dos feitos por eles patrocinados, das características descritas no item "I" deste artigo, compreendidas como sugestivas de litigância predatória.

O estudo descrito acima permitiu identificar, portanto, que, a despeito da coincidência de assunto - "Práticas Abusivas" - existiam dois perfis bastante distintos de comportamentos: em contraposição a um padrão uniforme e estável de de litigância, observado em 99,77% dos advogados que atuam nessa área, constatou-se perfil crescente e exponencial de distribuição em feitos patrocinados por 0,23% dos advogados que integram o universo de análise.

Para se tentar compreender o que poderia justificar padrão processual tão atípico de distribuição de feitos, observado por esse grupo formado por apenas 0,23% dos advogados, mostra-se válido destacar um segundo estudo empírico realizado quanto ao perfil de litigância do advogado que, no primeiro estudo, obteve maior média de distribuição mensal, a saber, 524 feitos7.

Esse segundo estudo conduzido revelou que os autores pessoas físicas patrocinados pelo mencionado profissional possuíam grandes médias de distribuição de feitos em curto período, sobretudo se comparada com a média de distribuição de todas as pessoas físicas no mesmo assunto, foro e período.  

Identificou-se que a média de distribuição de processos por pessoa patrocinada pelo referido profissional foi de 24 feitos, no período de setembro/2023 a fevereiro/2024, sendo que em relação a um desses autores foram distribuídos 67 processos.

Também esse dado trouxe evidências de atipicidade. Isso porque, enquanto a média de distribuição por pessoas físicas no Foro e assunto em que esse profissional atuou no período de setembro/23 a fevereiro/24 foi de 1 caso para 87% das pessoas físicas, 2 casos para 8% das pessoas físicas e 3 casos para 2% das pessoas físicas, a média de distribuição por pessoa física patrocinada pelo mencionado advogado foi de 24 casos novos no mesmo período.

Outra constatação interessante, extraída do perfil de litigância adotado pelo referido advogado, foi identificar que, no período de junho/22 a dezembro/23, dentro do grupo de pessoas físicas patrocinadas por ele, havia muitos casos em que a mesma pessoa física chegava a distribuir muitas ações em face da mesma instituição financeira. O "par" autor/réu com maior número de feitos distribuídos no período foi observado em 23 processos.

Por fim, identificou-se que a maioria das ações distribuídas por esse advogado, no período de estudo, possuía valor da causa ínfimo. Essa constatação não é irrelevante, visto que, para tais casos, a legislação processual, no artigo 85, §8º e §8º-A, do Código de Processo Civil - CPC, indica que o juiz deve observar, no arbitramento dos honorários sucumbenciais, os valores recomendados pelo Conselho Seccional da OAB, o qual adota como patamar mínimo para procedimentos ordinários, R$ 5.716,05.

Curiosamente, o §8º-A do artigo 85 foi incluído pela Lei nº 14.365/22, que entrou em vigor em 2/6/22, coincidindo com o aumento exponencial de distribuição.

As evidências empíricas acima analisadas corroboram a conclusão quanto à existência de fenômeno processual diverso daquele relacionado às ações de massa tradicionais, diretamente relacionado a um grupo muito restrito de advogados, sendo caracterizado por volume exponencial de feitos distribuídos, nos quais identificada expressiva fragmentação de pretensões deduzidas por uma única pessoa física autora. Tais evidências corroboram, em números, informações extraídas em manifestações dos Tribunais brasileiros quanto às características que definem a litigância predatória8.

Identificadas pelos Tribunais características específicas associadas ao fenômeno processual que denominam como litigância predatória e, também, apurados dados empíricos hábeis a corroborar tal constatação, não apenas quanto à existência desse fenômeno, mas, em especial, quanto a se caracterizar por padrões distintos de litigância daqueles observados em advogados que tradicionalmente atuam na defesa de ações de massa, entende-se que a abordagem desses aspectos sob uma perspectiva econômica, permitirá melhor compreender as suas causas e, em especial, suas consequências.

III. Insights da Economia para compreensão das causas e dos impactos sociais do fenômeno da litigância predatória

A teoria econômica tradicional estrutura-se a partir do conceito de que o ser humano é um agente econômico e que, portanto, seu processo de tomada de decisão envolve análise quanto à otimização e maximização de seus ganhos individuais.  Dentro dessa perspectiva, quando aplicada ao processo civil, a teoria econômica contribui para melhor compreensão das normas processuais, na medida em que evidencia que tais regras desempenham importante papel de alocação de custos e de incentivos entre as partes para a solução ou continuidade do litígio, impactando, inclusive, no comportamento por elas adotado no processo e na tomada da própria decisão de litigar.

Quando se pensa, no direito processual, em regras que podem importar na alocação de custos e incentivos aptos a influencer decisão que será tomada pela parte, claramente se pensa em regras processuais que disciplinam custas processuais e distribuição dos ônus da sucumbência.

A doutrina reconhece que a cobrança de custas processuais exerce três funções distintas: (1) indicar opção do Estado por não custear o exercício da jurisdição de forma indistinta a todos os usuários; (2) impor ao usuário interessado a necessidade de adiantamento dos custos, evitando, com isso, lides irresponsáveis e aventureiras e (3) atender a preceito ético-econômico, de responsabilizar aquele que causou dano a terceiro9.

Nesse sentido, o Código de Processo Civil - CPC, em seu artigo 85, impõe ao vencido o ônus de arcar com os custos do processo, e, também, os honorários do vencedor. A imposição ao vencido de tal custo consiste em importante norma de incentivo. Afinal, sob uma perspectiva econômica, onerar com custo comportamentos contrários ao direito importa em verdadeiro incentivo a comportamentos lícitos, cooperativos e aderentes ao ordenamento jurídico.

Por outro lado, a regra processual que impõe a antecipação do pagamento de custas e despesas processuais pelo autor, em momento inicial da lide, prevista no artigo 82 do CPC, também consiste em regra de incentivo de comportamentos cooperativos. Isso porque, ao antecipar ao autor a responsabilidade pelas custas iniciais, fomenta, no agente econômico, reflexão quanto às suas concretas expectativas de êxito em um determinado litígio, evitando, assim, lides temerárias. Ao ter que arcar com despesa inicial, o autor irá efetuar matemática mental quanto às suas concretas chances de êxito, após todo o tempo do processo, e cotejar com utilidades que poderia obter, caso utilizasse outras soluções, como o caso da composição, por exemplo.

Interessante observar que, no fenômeno processual identificado pelos Tribunais brasileiros como litigância predatória, algumas dessas regras processuais que fomentam comportamentos cooperativos e racionais, sob uma perspectiva econômica, acabam sendo afastadas.

Conforme já mencionado, no item "I" deste artigo, observa-se nos processos identificados pelos Tribunais como associados ao fenômeno da litigância predatória, em regra, solicitação da concessão do benefício da justiça gratuita.

Diante da opção constitucional de que os usuários do sistema de justiça arquem com os respectivos custos, o benefício da justiça gratuita consiste em direito excepcional, destinado apenas às pessoas que não conseguem arcar com os custos processuais sem prejuízo da própria sobrevivência, conforme se depreende do disposto no art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal. Uma das consequências da concessão desse benefício, é que o beneficiado não precisará adiantar o recolhimento de custas e despesas processuais, e ainda que sucumbente ao final, as obrigações decorrentes de sua sucumbência restarão sob condição suspensiva de exigibilidade, somente podendo ser executadas se, nos 5 (cinco) anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão da gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário (CPC, art. 98, caput e §§ 2º e 3º).

Independentemente da receita relativa às custas, para a presente análise releva perquirir sobre o impacto que a concessão do benefício da justiça gratuita pode ter sobre o comportamento processual da parte, sobretudo considerando que, conforme mencionado, na vasta maioria dos processos em que os tribunais identificam o fenômeno da litigância predatória, a regra é o processamento do litígio sob o manto da gratuidade.

Sob a perspectiva econômica, a dispensa do custo de antecipação das custas processuais tem como imediata consequência o afastamento de regra que incentiva e fomenta comportamentos cooperativos e desincentiva lides temerárias. Afinal, o autor, como agente econômico, não terá mais que considerar, em sua equação mental, o maior custo que lhe será imputado se adotar comportamento temerário.

Além disso, e ainda sob uma perspectiva econômica, ao afastar do processo de tomada de decisão quanto a ajuizar ou não uma ação o custo referente à antecipação das custas e despesas processuais, exclui-se, dessa equação, o olhar otimizador dos próprios recursos do agente econômico racional. Em outras palavras, caso o autor tivesse que antecipar o pagamento das custas processuais, iria concentrar todos os seus pedidos contra uma instituição financeira em um único processo, para tentar pagar o menor valor possível (que hoje é de cerca de R$ 171,30), ao invés de deduzir suas pretensões em 23 processos em face da mesma parte - o que, apenas considerando o valor mínimo das custas iniciais, aumentaria o seu desembolso inicial de R$ 171,30 para R$ 3.939,90. Vale dizer, a antecipação das custas evita a fragmentação temerária dos pedidos, na medida em que a torna antieconômica.

Por fim, observa-se que o afastamento da responsabilidade por arcar com as custas e despesas processuais, além de honorários advocatícios, caso o vencido seja beneficiário da justiça gratuita, também impacta no comportamento processual. Isso porque, por não onerar a parte, caso seja vencida, afasta-se regra processual que tinha por objetivo fomentar comportamentos lícitos e aderentes ao ordenamento jurídico e, também, evitar lides temerárias. A parte vencida, se beneficiária da justiça gratuita, não irá sofrer qualquer oneração se tiver ajuizado lide temerária, ressalvada excepcional circunstância de comprovada superação da situação de insuficiência de recursos, na forma do § 3º do art. 98 do CPC.

A partir dessa breve reflexão, quanto ao impacto no comportamento processual das partes, provocado pelo afastamento de regras processuais que fomentam comportamentos cooperativos e em conformidade com o ordenamento jurídico, consegue-se ter outra percepção sobre os pedidos de concessão do benefício da justiça gratuita nos feitos associados pelos tribunais às lides predatórias.

Requerer a concessão do benefício da justiça gratuita permitirá o ajuizamento de multiplicidade de processos, sem qualquer custo adicional, eliminando, na prática, qualquer perspectiva de risco de eventual condenação10. Certamente, se o autor tivesse que arcar com as custas iniciais ou corresse de fato o risco da condenação em verbas de sucumbência, refletiria com maior atenção e vagar quanto à estratégia de ajuizar 23 ações contra instituição financeira ou, alternativamente, de o fazer em apenas 1 feito.

Há, portanto, clara correlação entre a distribuição de número vertiginoso de feitos e o requerimento, em cada um deles, da concessão do benefício da justiça gratuita. Somente essa última, sob uma perspectiva econômica, viabiliza a primeira. Trata-se, pois, de clara constatação do uso disfuncional de uma posição jurídica processual, atentatório à diretriz da boa-fé objetiva, a consubstanciar abuso de direito, como estratégia para a eliminação dos riscos inerentes ao processo.

Importante destacar que não se está questionando a concessão do benefício da justiça gratuita em si. Ao contrário. Trata-se de importante garantia constitucional e direito fundamental do cidadão, imprescindível para que se possa assegurar a existência de um Estado Democrático de Direito, que tem, no acesso à Justiça, uma de suas mais relevantes manifestações. Contudo, como todo direito, deve ser exercido nos limites impostos por seu fim econômico e social, conforme preceitua o artigo 187 do Código Civil, ou seja, deve ser requerido, se necessário, para o exercício regular da defesa dos interesses desse cidadão vulnerável - e não terceiros11.

Diante dessa constatação, indaga-se: em que medida a fragmentação do pedido em diversas lides, com apresentação de causas de pedir genéricas e não customizadas - características estas típicas das lides em que os tribunais reconhecem como havendo prática de litigância predatória -, contribui para a melhor defesa dos interesses do autor, o cidadão vulnerável em favor de quem o benefício da justiça gratuita é assegurado?

A par da mitigação do risco de improcedência, pela submissão da questão controvertida a um número maior de juízes que irão conhecê-la, e da potencialização das chances de ganho de honorários advocatícios, não se identifica outra potencial vantagem na adoção dessa estratégia de litigar. Diante dessa percepção, deve-se refletir quanto à licitude de o autor ou seu patrono perseguir esses objetivos no processo, valendo-se, para tanto, dos benefícios processuais outorgados pela assistência judiciária gratuita. Em outras palavras, é para a persecução desses objetivos que se assegura na Constituição Federal o benefício da justiça gratuita?

Vale ressaltar, também, que a despeito de os processos identificados pelos tribunais como associados ao fenômeno da litigância predatória terem como característica, em sua maciça maioria, a postulação do benefício da justiça gratuita, nenhum dos estudos empíricos conduzidos, mencionados no item II supra, identificou nesse grupo feitos patrocinados pela Defensoria Pública. Eram todos advogados particulares. Trata-se de interessante achado, sobretudo considerando que a Defensoria Pública também atua em ações massificadas, no patrocínio de interesses de hipervulneráveis, mas certamente não se vale de estratégias disfuncionais, como a fragmentação de pretensões, tão marcante na litigância predatória.

Antes de aprofundar a análise sobre as questões apresentadas nos parágrafos acima, mostra-se salutar efetuar investigação mais ampla. Até o presente momento foram apontados os impactos do uso disfuncional de posições jurídicas no comportamento adotado pela parte no processo. Necessário perquirir, agora, o impacto provocado por tal comportamento no Sistema de Justiça, quando considerado em seu conjunto.

Para tanto, impende levar em conta expressivo conceito que se extrai da teoria econômica, do qual deflui o enquadramento da "justiça" como um bem comum, ao qual tradicionalmente se associa a "Tragédia dos Comuns"12. Segundo essa teoria, os bens assim se descrevem: (a) bens privados: são aqueles excludentes e concorrentes no consumo, ou seja, somente seu titular os pode utilizar e, quando o faz, há alguma perda de utilidade; (b)  bens públicos: são bens não excludentes e não concorrentes, de modo que todos os podem utilizar, sem que haja perda de valor; e (c) bens comuns: por serem bens não excludentes e concorrentes, são aqueles a que todos podem ter acesso e cujo consumo importa em sua perda de utilidade, de forma que sua utilização no tempo conduziria ao risco de esgotamento13.

A Justiça, em razão da garantia constitucional de amplo acesso, e diante de seus recursos materiais finitos, deve ser compreendida e enquadrada como bem comum.

Na falta de modulador de uso de bem comum, a teoria econômica aponta a tendência de seu esgotamento no tempo, como decorrência da racionalidade econômica de cada indivíduo que o impulsiona a continuar utilizando-o, na medida em que o custo de sua utilização é compartilhado com todos os demais14.

Desse modo, paradoxalmente, quanto maior o acesso a um bem comum, há crescente redução de utilidade pelo esgotamento da capacidade dos recursos finitos disponíveis15. Para se evitar essa situação e prejuízo à toda a comunidade, não é possível deixar o uso do bem comum ser dimensionado pela racionalidade econômica do agente privado, movido por interesses marcadamente egoísticos.

Não por acaso, a solução do nosso constituinte para equilibrar o direito fundamental de amplo acesso à justiça foi imputar ao usuário o custo da respectiva prestação jurisdicional. A regra adotada pelo constituinte foi de que somente para partes beneficiárias da justiça gratuita é que o Estado arcará com o custeio da atividade jurisdicional que lhe for prestada, em atenção à sua situação de hipossuficiência.

Necessário frisar que a discussão quanto ao custeio do sistema de justiça não se confunde com a concessão do benefício da justiça gratuita. Enquanto a primeira se destina a assegurar a utilização do sistema de justiça em níveis racionais e desejáveis, sob uma perspectiva social, a segunda se destina a assegurar a indivíduo específico o direito constitucional de acesso à justiça. Os enfoques não se confundem e não são coincidentes.

A imposição do custeio, além de se tratar de regra que atende a preceito de justiça, na medida em que limita o acesso gratuito apenas a pessoas carentes, consubstancia solução que fomenta racionalidade ao uso de bem comum, conforme se infere da aplicação de insights da teoria econômica.  Isso porque, conforme já apontado, a responsabilização do usuário pelo custeio conscientiza-o dos custos inerentes à fruição da estrutura judiciária que lhe foi disponibilizada, na medida em que imputa a ele, e não aos demais, o compartilhamento dos ônus de acionamento do sistema.

O crescimento vertiginoso das ações comumente associadas pelos Tribunais ao fenômeno da litigância predatória parece ilustrar, com clareza cristalina, a "Tragédia dos Comuns".

A falta de mecanismo de modulação da fruição do uso, umbilicalmente vinculada à disfuncional invocação da benesse da gratuidade, traz, como efeito direto, tendência crescente do mesmo uso, que passa a ser orientado exclusivamente pela racionalidade utilitarista do agente econômico egoísta, focada exclusivamente na maximização de seu ganho (seja pela redução dos riscos inerentes ao processo, seja pela majoração dos honorários advocatícios).

A questão apontada no parágrafo acima, atinente à utilização disfuncional de benefício concebido pelo legislador constitucional com o intuito de tutelar hipossuficiente, no propósito de maximizar ganhos econômicos, mediante o expediente de multiplicação da distribuição de ações, poderia ser mero questionamento ético e moral, não fosse o pernicioso e deletério efeito social sofrido que é, como se depreende da "Tragédia dos Comuns", o consumo e esgotamento do bem comum - no caso, a Justiça.

A questão que se coloca, portanto, é saber se é razoável admitir que o agente individual, motivado por sua racionalidade econômica egoística, de maximização de sua utilidade privada, possa impor à coletividade, com tal prática, risco concreto de esgotamento de bem comum de toda a sociedade, com a sobrecarga do Sistema de Justiça - já claramente identificada -, a um custo social altíssimo, decorrente do comprometimento da eficiência do Poder Judiciário. É esse resultado que se espera obter, quando se pensa em assegurar a todos, indistintamente, acesso à justiça?16

IV. Reflexões sobre os custos sociais incorridos

Os estudos empíricos analisados neste artigo evidenciaram a existência de fenômeno processual, distinto daquele decorrente de ações de massa, dotado de características próprias, seja quanto à forma de peticionar em si, seja quanto ao perfil de comportamento de litigância associado pelos tribunais à litigância predatória.

A análise desse fenômeno, sob uma perspectiva econômica, permitiu compreender melhor a apropriação das regras da assistência judiciária gratuita como seu elemento propulsor, na medida em que afasta riscos e custos inerentes à solução judicial de litígios, permitindo e sustentando crescimento vertiginoso e persistente da distribuição de ações com essas características. Apontou, todavia, o risco de exaurimento do sistema de Justiça, caso tal prática se perpetue.

Por fim, a análise conjunta desses dois aspectos, não permitiu compreender qual seria o ganho estratégico para os autores dessas ações.

As análises econômica e empírica evidenciaram que o afastamento do custo e do risco do processo, aliado à potencialização do ganho de verbas de sucumbência, são resultados não que trazem utilidade adicional ao autor, em si considerado, mas sim e tão somente ao profissional que elabora a estratégia do litígio.

Quanto ao autor, em si considerado, necessário destacar que em muitos desses processos, associados pelos Tribunais ao fenômeno da litigância predatória, os pedidos são deduzidos genericamente e pretendem a declaração da inexigibilidade de um débito com fundamento em alegadas ilegalidades de contratos firmados. Tais situaçoes são sugestivas de expressivo grau de endividamento dos autores pessoas físicas, o qual poderia ter tratamento mais adequado no regime do Superendividamento (Lei nº 14.181/21), que pretende, além da negociação coletiva com credores e eventual revisão de contratos, também implementar política pública centrada na educação financeira, como forma de prevenção e tratamento do superenvididamento, objetivando evitar a exclusão social do consumidor (art. 4º, IX e X, da Lei nº 8.078/90).

Vale destacar que, com a perspectiva disfuncional de ganho de honorários de R$ 5.700,00 multiplicado artificialmente pela fragmentação de pretensões, dificilmente se permitirá implementar, nos feitos objeto deste estudo, associados à litigância predatória, política pública de desjudicialização de conflitos e de persecução de meios autocompositivos de solução de controvérsias. Isso porque, ao se aplicar esse valor mínimo ao expressivo quantitativo de feitos distribuídos, consegue-se extrair expectativa de rendimento que jamais poderia ser obtida em acordo judicial. Apenas a título de exemplo, no segundo estudo empírico mencionado no item II deste artigo, apurou-se a distribuição de cerca de 10.000 processos, no período de quase 4 meses, em ações com valores da causa irrisórios. Neste caso, em se considerando uma probabilidade de êxito conservadora de ¼, a expectativa de ganhos a título de honorários de sucumbência seria de aproximamente R$ 14,3 milhões.

Além da inexistência de ganho específico ao autor, pessoa física, com a utilização dessa forma particular de litigar (identificada como sendo a litigância predatória), os dados trazidos neste artigo evidenciam altíssimo custo social imposto à sociedade brasileira, porque não dizer insuportável, em virtude dessa prática, presente a concreta perspectiva de comprometimento da eficiência do Poder Judiciário.

A par da frustração da execução de relevantes políticas públicas - como é o caso da desjudicialização, mediante o fomento dos meios alternativos de composição dos conflitos e do superendividamento, apenas para citar exemplos -, mostra-se premente compreender o altíssimo custo social advindo do fenômeno da litigância predatória.

O estudo empírico mencionado neste artigo evidenciou aparente tendência de crescimento exponencial e de não estabilidade da distribuição anual de feitos, em face da qual é imperioso questionar: qual instituição consegue aumentar sua estrutura organizacional (física, imobiliária, de tecnologia e de pessoal) em 66%, em curtíssimo espaço de tempo (2021 a agosto/2024), para acomodar aumento atípico e não esperado de demanda?

Questiona-se, também, sobre ser aceitável a imposição à sociedade brasileira dos custos do crescimento da sua estrutura judiciária nessa proporção, em curto espaço de tempo, para atender aumento inesperado e crescente de demanda, e que aparentemente ocorre apenas para proporcionar incremento individual de ganhos de uma ínfima minoria de advogados, que abusam do exercício de posições ou situações processuais? Como, nesse contexto, será possível prestar satisfatória jurisdição a essa demanda inesperada, e, sobretudo, à demanda esperada - essa sim a traduzir o exercício regular do direito de acesso à justiça -, em face da qual se estruturou a organização judiciária existente, com base em regras tradicionais de distribuição de competência territorial?

Não é crível imaginar que qualquer organização conseguiria ampliar a sua estrutura em 66% em período de pouco mais de 3 anos, de forma a acomodar crescimento de distribuição de feitos. Por esse motivo, é inevitável a conclusão de que o fenômeno da litigância predatória importa captura ilícita da capacidade do Estado de prestar jurisdição em detrimento da tutela dos interesses legítimos de todos os demais jurisdicionados. Essa situação fica evidente quando se constata que cerca de 40% das ações distribuídas no assunto "Práticas Abusivas", em 3 anos, decorreram da iniciativa de 0,23% dos advogados que atuam nessa área.

Além da clara impossibilidade fática de crescimento da estrutura judiciária em montante compatível e proporcional ao crescimento vertiginoso de pleitos associados ao fenômeno da litigância predatória, é preciso se questionar, também, se deve a sociedade brasileira buscar esse crescimento.

Os dados acima analisados sugerem que a forma de litigar associada ao fenômeno da litigância predatória mostra-se mais coerente com a implementação de novo modelo de negócio tendente a potencializar ganhos individuais do advogado que patrocina esse feito, não resultando em concretos ganhos de defesa de direitos para o autor pessoa física.

Tais dados sugerem, ainda, que esse novo modelo de negócio se vale, em seu business, de regras protetivas de pessoas físicas hipervulneráveis (como é o caso da justiça gratuita e da proteção dos direitos de consumidor) como mecanismos de eliminação do risco da atividade e de potencialização das oportunidades de ganho individual do advogado, capturando, para tal mister, a capacidade do Estado de prestação da jurisdição, sem qualquer repercussão relevante na tutela do direito de seu cliente.

 A apropriação de regras jurídicas para processamento de vulneráveis em modelo de negócio privado, desvirtua a utilização jurídica desses institutos, que deixam ser utilizados como instrumentos necessários para assegurar o acesso à justiça do cidadão cujo interesse se tutela, e passam a ser utilizados em prol da potencialização de ganhos individuais do advogado, pela eliminação do risco do litígio.

Vale ressaltar que essa forma de litigar, identificada nas lides predatórias, não é verificada em lides distribuídas por autores que arcam com o pagamento das respectivas custas, nem, tampouco, por beneficiários da assistência judiciária gratuita patrocinados pela Defensoria Pública.

Se ao ganho individual esperado pelo advogado nas lides predatórias não estivesse associado altíssimo custo social, a questão quanto ao desvirtuamento da utilização dos institutos da justiça gratuita e dos direitos do consumidor ensejaria quiçá, quando muito, debate ético e teórico sobre tal fenômeno, sem qualquer implicação prática.

Contudo, é impossível ignorar o altíssimo custo social imposto à sociedade brasileira. Tal custo decorre do comprometimento da capacidade do Poder Judiciário de prestar jurisdição adequada a jurisdicionados. Decorre, também, do aumento do custo relacionado à prestação de serviços ou fornecimento de produtos por empresas afetadas por essa forma de litigar e que precisam, também, assim como o Poder Judiciário, incrementar sua estrutura de defesa jurídica, sob pena, no seu caso, não do colapso da capacidade de prestar jurisdição, mas sim de preclusão de seu direito constitucional de ampla defesa. Esse aumento de custo observado pelas empresas afetadas, certamente será refletido no valor dos serviços/produtos por elas oferecidos.

Nesse ponto da análise, questiona-se: pode um particular se apropriar de regras jurídicas de proteção de vulneráveis e da estrutura de organização do Estado, em detrimento de toda a sociedade, apenas para majoração de seus ganhos individuais? Pode o particular, na fruição de seu direito de livre exercício de profissão e de sua capacidade postulatória, optar por utilizar estratégia de tutela de defesa dos interesses de seus clientes que não lhes traga qualquer ganho efetivo, e imponha, reflexamente, grande custo à sociedade, apenas para fins de majoração de seus ganhos individuais?

Certamente a resposta aos questionamentos apresentados acima impõe a análise do exercício desse tipo de conduta à luz do quanto dispõe o artigo 187 do Código Civil17, o qual positiva dever de todas as pessoas de exercerem seu direito sem exceder os limites impostos por seu fim econômico ou social e de atuarem em consonância com os preceitos da boa-fé, e, também, do artigo 6º do CPC, a impor a todos os sujeitos do processo comportamento em conformidade com a diretriz da boa-fé objetiva. 

Vez mais vem bem a calhar o magistério de Paulo Henrique dos Santos Lucon18, segundo o qual "O estudo dos remédios adequados para coibir o fenômeno dos abusos dos direitos processuais é hoje uma importante exigência não somente do direito brasileiro, mas de toda a ordem jurídica mundial, estabelecendo uma ordem delicada de equilíbrio entre, de um lado, os interesses privados e, de outro, os interesses coletivos em sentido amplo ou, ainda, de um lado a garantia dos sujeitos processuais e de outro, a própria eficiência do processo".

Imperioso ter presente, nessa perspectiva, expressivo precedente persuasivo consubstanciado no Recurso Especial n. 1.817.845/MS, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, no qual se vê traçada a necessidade de se "repensar o processo à luz dos mais basilares cânones do próprio direito, não para frustrar o regular exercício dos direitos fundamentais pelo litigante sério e probo, mas para refrear aqueles que abusam dos direitos fundamentais por mero capricho, por espírito emulativo, por dolo ou que, em ações ou incidentes temerários, veiculem pretensões ou defesas frívolas, aptas a tornar o processo um simulacro de processo ao nobre albergue do direito fundamental de acesso à justiça" (j. 10.10.2019).

Nessa linha de entendimento, a verificação de que a adoção de estratagemas processuais temerários, revelados em padrão de conduta despido de qualquer repercussão relevante na tutela do direito da parte, importa no reconhecimento de conduta atentatória ao princípio da boa-fé objetiva, impondo o acionamento de sua função limitadora, a atuar como máxima de conduta ético-jurídica resultante do reconhecimento do cognominado "exercício inadmissível de posição jurídica", tão propalado pelo festejado Menezes Cordeiro.

V. Conclusões

Apresentou-se, neste artigo, dados empíricos e insights advindos da teoria econômica, que permitem identificar nitidamente a existência da litigância predatória como fenômeno distinto daquele referente às ações de massa, compreendendo-o como um modelo de negócio privado que abusa de direitos processuais, capturando a estrutura de serviço público de Justiça e de regras de tutela de vulneráveis e hiperssuficientes, com o único intuito de turbinar ganhos individuais.

Procurou-se evidenciar, ainda, neste artigo, que a exploração desse modelo de negócio privado impõe altíssimo custo para a sociedade: seja por privá-la de Poder Judiciário eficiente, seja por incrementar o custo do serviço por diversos fornecedores e prestadores de serviços privados, os quais certamente serão arcados por todos os consumidores em geral. Ao altíssimo custo social detectado, não se constata ganho específico da parte litigante, mas, apenas, como já mencionado, a potencialização dos ganhos individuais do profissional que atua em seu nome.

É necessário, portanto, que a sociedade brasileira reflita, a luz da teoria do abuso de direito, se lhe é exigível imputar custo adicional para ampliação de estrutura do Poder Judiciário, em ordem a acomodar aumento vertiginoso de demanda, criado artificialmente, no escopo de favorecer e turbinar exclusivamente modelo de negócio privado, de grupo ínfimo de advogados, cuja conduta, a toda evidência, trafega na contramão dos preceitos éticos nos quais se assenta o princípio da boa-fé objetiva.


1 https://api.tjsp.jus.br/Handlers/Handler/FileFetch.ashx?codigo=151470.

2 "Abuso do Processo", Editora Direito Contemporâneo, 2024, p. 27.

3 Vez mais emerge a pertinência do magistério de Paulo Henrique dos Santos Lucon, aludindo à propositura de demandas idênticas e a adoção de atos estrategicamente coordenados entre si, que isoladamente poderiam não ser considerados abusivos, mas que em uma análise global, autorizam o intérprete a considerar a existência de prática configuradora de abuso processual (ob. cit., p. 297). Daí ponderar que a identificação do uso abusivo, do desvio das finalidades éticas do processo, enquanto método idôneo de resolução de controvérsias, demanda uma análise macroscópica e não individual do conflito, pois com tal investigação holística da lide é possível se constatar um estratagema processual temerário revelado em um padrão comportamental abusivo (ob. cit., p. 297 - destaques nossos).

4 CPA 2024/80525 (expediente administrativo NUMOPE/SP).

5 CPA 2024/80525 (expediente administrativo NUMOPE/SP).

6 Pode-se citar, a título meramente exemplificativo, (i) mercantilização da advocacia, mediante captação ilícita de clientela e agenciamento de causas; (ii) fabricação de lides artificiais, sem pretensão resistida, sem autorização da parte ou mediante fragmentação de pretensões; (iii) utilização de mecanismos ilícitos, notadamente violação de dados pessoais, omissão de informações (consentimento informado), manipulação e falsificação de documentos; e (iv) intenção fraudulenta (em benefício da parte ou do advogado), a contrastar com a diretriz da boa-fé objetiva.

7 CPA 2024/2461

8 https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/litigancia-predatoria/

9 "A primeira delas, é premissa das demais, consiste na opção do Estado por não custear o exercício da jurisdição e da defesa das partes. Em virtude dessa opção, ele cobra custas ou taxas judiciárias aos consumidores desse serviço público (taxas) e deixa que cada um contrate o próprio defensor, ajustando o pagamento de honorário - salvo no caso de assistência judiciária. [...] A segunda linha fundamental consiste na exigência de adiantamento de despesas, como ônus a serem cumpridos pelo interessado na realização de atos ou em sua eficácia. Essa exigência completa a intenção de evitar a litigiosidade irresponsável, pondo os possíveis demandantes a pensar sobre a viabilidade de suas pretensões, sem se arriscar em aventuras a sua própria custa. [...] A terceira ordem de raciocínio apoia-se em uma premissa ética e econômica de grande valia e legitimidade, que é a de que a necessidade de servir-se do processo para obter razão não deve reverter em dano a quem tem razão (Chiovenda). A parte que tem razão e precisou adiantar as despesas da causa e contratar defensor habilitado (até porque a defesa técnica constitui explícita exigência legal: CP 36), suportaria esse desfalque patrimonial se não recebesse o reembolso do que houvesse despendido" (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2002. v. II, p. 638-639).

10 Neste exato sentido a advertência de Paulo Henrique dos Santos Lucon (ob. cit., p. 150), ao ponderar que a ausência de riscos é importante catalisador para iniciativas judiciais sem os cuidados necessários, incentivando litígios frívolos ou predatórios, que geram externalidades negativas, porque representam condutas contrárias ao bom funcionamento das instituições e ao interesse público de ter um sistema de justiça eficiente.

11 Impende ter presente, sob essa ótica, que a diretriz exegética de potencialização dos direitos fundamentais, o amplo acesso à justiça incluso, não comporta banalização, o que no caso levaria a indesejado comprometimento da essência mesma do nobre instituto da assistência judiciária gratuita, escancarando as portas da justiça sem a contraprestação tributária devida a quem não faz jus à isenção preconizada por lei, somente justificável à vista de seus pressupostos determinantes.

12 "A ausência de direitos claros de propriedade resulta no problema dos comuns. Na Inglaterra, comuns eram as áreas sem proprietários, onde qualquer fazendeiro podia levar os animais para pastarem. Nenhum fazendeiro achava que, economizando o pasto, se beneficiaria futuramente, pois outros viriam depois, trazendo seus animais para pastarem. Como resultado, os fazendeiros devastaram e destruíram os comuns. Por outro lado, um proprietário teria um incentivo para manter a terra e evitar a destruição. Assim como antigamente se abusava dos comuns, atualmente há pesca predatória nos oceanos e devastação das florestas públicas, pois sem direitos de propriedade, ninguém tem incentivo para cuidar do futuro valor desses recursos sem dono" (WESSELS, Walter. Economia. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 421-422).

13 "Bens privados caracterizam-se por serem excludentes e concorrentes no consumo (ou rivais). O primeiro atributo significa que o produtor, ao fixar um preço para o produto, pode facilmente impedir que aqueles que não pagam esse preço usufruam do bem. Já a concorrência no consumo implica que, ao desfrutar do produto, sua quantidade diminui. [...] vale citar ainda os bens públicos. Esses bens caracterizam-se por serem não excludentes e não concorrentes. É dizer: não se pode impedir determinada pessoa de usufruí-lo (o que dificulta sua exploração privada e com fins de lucro), mas, por outro lado, sua utilização não implica diminuição de quantidade. [...] Pensando analogicamente na Justiça como mercado e na prestação da atividade jurisdicional como bem em torno do qual gravitam as interações mercadológicas, acreditamos estarem nitidamente presentes as características que a qualificam como bem comum. A impossibilidade de exclusão decalca-se diretamente da Constituição Federal, seja em razão do princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5.º, XXXV), do direito de petição (art. 5.º, XXXIV, 'a'), do direito ao contraditório e à ampla defesa (art. 5.º, LV) ou do direito à assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5.º, LXXIV). A concorrência no consumo decorre da limitação financeira inerente ao Estado, que tem de prover parte dos recursos humanos e administrativos do Poder Judiciário. Quanto mais a Justiça é acessada, mais esses recursos são consumidos. Na impossibilidade de ampliação infinita da estrutura jurisdicional, a cada novo processo instaurado, diminuísse a capacidade da Justiça de processar um novo feito ou de lidar agilmente com os já existentes" (WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da justiça cit., p. 82-84 - destacamos).

14 "A tragédia dos comuns se desenvolve desta forma. Imagine um pasto aberto a todos. É de se esperar que cada vaqueiro vai tentar manter o gado do maior número possível no terreno comum. Tal mecanismo pode funcionar de modo razoavelmente satisfatório durante séculos, devendo-se às guerras tribais, à caça furtiva, e à doença manter o número de homens e animais bem abaixo da capacidade de absorção do solo. Por último, no entanto, vem o dia do julgamento, ou seja, o dia em que o objetivo a longo prazo desejado de estabilidade social se torne uma realidade. Neste ponto, a lógica inerente do que é comum impiedosamente gera tragédia. Como um ser racional, cada vaqueiro procura maximizar o seu ganho. Explícita ou implicitamente, mais ou menos conscientemente, ele pergunta: "Qual é a utilidade para mim de acrescentar mais um animal para o meu rebanho?" Esta utilidade tem um componente negativo e um positivo. 1) O componente positivo é uma função do incremento de um animal. Desde que o pastor recebe todos os lucros provenientes da venda do animal adicional, a utilidade positiva é quase um. 2) A componente negativa é uma função do sobrepastoreio adicional criado por mais um animal. Como, no entanto, os efeitos do excesso de pastagem são compartilhados por todos os pastores, a utilidade negativa para tomada de decisão (decision-making) de qualquer pastor particular é apenas uma fração de -1. Somando-se os componentes parciais de sua utilidade, o vaqueiro racional conclui que o único caminho sensato para ele seguir é o de adicionar outro animal a seu rebanho. E outro, e outro .... Mas esta é a conclusão alcançada por todos e cada pastor racional partilha de um bem comum. Aí é que se encontra a tragédia. Cada homem está preso em um sistema que o compele a aumentar seu rebanho sem limites - num mundo que é limitado. Ruína é o destino para o qual todos os homens correm, cada um perseguindo seu próprio interesse em uma sociedade que acredita na liberdade dos bens comuns. Liberdade num terreno baldio (common) traz ruína para todos." (HARDIN, Garrett. A tragédia dos Comuns, publicado na revista Science, vol. 162, No . 3859 (13 de dezembro de 1968), pp. 1243-1248, a versão utilizada foi extraída do https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7607463/mod_resource/content/1/A_TRAGEDIA_DOS_COMUNS_por_Garrett_Hardin.pdf, em julho de 2023).

15 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da justiça cit., p. 85.

16 Nesse sentido, ensina Paulo Henrique dos Santos Lucon, "Evitar o abuso do processo dialoga, portanto, com as colunas fundamentais do próprio direito, porque atinge o cerne do exercício dos direitos fundamentais e do acesso à justiça, sendo imprescindível se repensar de forma permanente o processo a partir de preceitos que coíbam a litigância predatória ou temerária, o assédio processual ou a apresentação de demandas, defesas e incidentes frívolos, destituídos de seriedade ou, ainda, eivados de espírito emulativo, doloso ou claramente irregular" (ob. cit. p. 31).

17 Emerge cristalino da dicção do art. 187 do Código Cívil, a vinculação sistemática do preceito com a diretriz da eticidade, enquanto um dos pilares fundantes da estrutura do novo Código Civil, a prestigiar a valorização dos pressupostos éticos na ação dos sujeitos de direito, seja como consequência da proteção da confiança que deve existir como condição sine qua non da vida civil, seja como mandamento de equidade, seja, ainda, como dever de proporcionalidade, conforme obtempera Judith Martins Costa ("Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro", Ed. Saraiva, p. 133).

18 Obra cit., p. 102.

Maria Rita Rebello Pinho Dias

Maria Rita Rebello Pinho Dias

Airton Pinheiro de Castro

Airton Pinheiro de Castro

Paula Lopes Gomes

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