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Interoperabilidade no registro de imóveis: utopia ou revolução?

O artigo analisa os desafios e avanços da interoperabilidade no registro de imóveis, destacando o papel do ONR, os entraves normativos e a responsabilidade civil dos registradores.

domingo, 6 de abril de 2025

Atualizado em 4 de abril de 2025 14:15

Introdução

O sistema registral brasileiro, estruturado com base na autonomia das serventias e na organização estadualizada, sempre representou um pilar da segurança jurídica nas transações imobiliárias. Contudo, diante da crescente complexidade das relações patrimoniais, da fluidez das dinâmicas econômicas e da consolidação de um ambiente digital em expansão, esse modelo tradicional tem sido desafiado por uma exigência contemporânea inadiável: a interoperabilidade nacional dos registros de imóveis.

Enquanto em diversos países já se verifica um sistema registral plenamente informatizado e interconectado em âmbito nacional, no Brasil ainda convivemos com realidades díspares entre as unidades da federação, com sistemas heterogêneos, digitalizações parciais e ausência de um fluxo eletrônico contínuo e confiável entre os cartórios e entre estes e os órgãos públicos. Nesse cenário, surge o Operador Nacional do Registro de Imóveis (ONR) como uma tentativa de integrar, padronizar e modernizar esse mosaico cartorial.

Entretanto, o processo tem avançado de forma desigual e enfrenta obstáculos técnicos, jurídicos e culturais relevantes. Mais do que uma simples modernização administrativa, a interoperabilidade representa uma mudança paradigmática no papel dos registros públicos na era digital. A questão que se impõe, portanto, é: estamos diante de uma utopia inalcançável ou de uma revolução em andamento no Registro de Imóveis brasileiro?

Este artigo propõe-se a refletir sobre essa indagação, abordando os principais desafios da integração dos sistemas estaduais, o papel do ONR e os entraves legislativos que permeiam essa evolução tecnológica, além de analisar os contornos da responsabilidade civil dos registradores diante de falhas no ambiente eletrônico.

Desafios para a Integração dos Sistemas Estaduais

A busca pela interoperabilidade dos registros de imóveis no Brasil enfrenta uma série de desafios complexos, especialmente no que tange à integração dos sistemas estaduais. A diversidade de procedimentos, tecnologias e níveis de digitalização entre as serventias cria um cenário heterogêneo que dificulta a implementação de um sistema unificado e eficiente.

Fragmentação Técnica e Administrativa

Cada estado brasileiro possui autonomia para organizar seus serviços notariais e de registro, resultando em uma variedade de sistemas e protocolos operacionais. Essa fragmentação técnica e administrativa impede a comunicação fluida entre as diferentes serventias, dificultando a consolidação de uma base de dados nacional integrada.

Resistência Cultural e Jurídica à Padronização

A tradição de independência das serventias e as particularidades regionais geram uma resistência natural à padronização imposta por um sistema nacional. Além disso, aspectos jurídicos, como legislações estaduais específicas e interpretações diversas das normativas federais, contribuem para a complexidade do processo de unificação.

Desafios Estruturais e Orçamentários

Muitas serventias, especialmente as de menor porte ou localizadas em regiões menos desenvolvidas, enfrentam limitações orçamentárias e estruturais que dificultam investimentos em tecnologia e capacitação. A implementação de sistemas eletrônicos avançados requer recursos financeiros e humanos que nem todas as unidades possuem, criando disparidades significativas no nível de digitalização e eficiência dos serviços prestados.

Iniciativas de Integração: O Papel do SERP

Diante desses desafios, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem promovido iniciativas para fomentar a integração dos registros públicos. Uma das principais ações é a implementação do Sistema Eletrônico de Registros Públicos (SERP), instituído pela Lei nº 14.382/2022. O SERP visa modernizar e simplificar os procedimentos relativos aos registros públicos, promovendo a interconexão das bases de dados de todas as serventias extrajudiciais do país.

A efetivação do SERP representa um passo significativo rumo à unificação dos cartórios de forma online, permitindo que documentos e informações sejam obtidos eletronicamente por usuários, cartórios e pelo poder público. Essa medida busca nacionalizar um sistema historicamente operado de forma local, trazendo benefícios concretos para a sociedade e alinhando o Brasil às melhores práticas internacionais na área.  

A integração dos sistemas estaduais de registro de imóveis é um processo complexo que exige a superação de desafios técnicos, culturais e estruturais. Iniciativas como o SERP são fundamentais para promover a interoperabilidade e modernização dos serviços registrais no Brasil. Contudo, é necessário um esforço conjunto entre os órgãos reguladores, as serventias e os profissionais envolvidos para que a implementação dessas soluções seja eficaz e equitativa, garantindo um sistema registral mais eficiente, seguro e acessível a todos os cidadãos.

O Papel do ONR, a Evolução Tecnológica e os Entraves Legislativos

A consolidação da interoperabilidade nacional dos registros de imóveis passa, inevitavelmente, pelo fortalecimento e efetiva operacionalização do Operador Nacional do Registro de Imóveis (ONR) - entidade responsável por centralizar e padronizar a atividade registral imobiliária em âmbito nacional. Criado pelo Provimento nº 89/2019 do CNJ e com previsão na Lei nº 13.465/2017, o ONR representa uma das principais tentativas de superação da fragmentação histórica do sistema registral brasileiro.

O ONR como eixo de integração e padronização

O ONR possui, entre suas atribuições centrais, a criação e gestão do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI), bem como a articulação entre as diferentes plataformas e bases de dados que operam no ecossistema registral, incluindo as centrais estaduais de serviços eletrônicos compartilhados. Com o desenvolvimento da Central Nacional de Registro de Imóveis (CNR), o ONR busca oferecer uma interface única para consulta, envio e recebimento de documentos, promovendo maior eficiência e segurança nas transações.

A existência de um operador nacional é essencial não apenas para a troca de dados entre cartórios, mas também para garantir a comunicação com entes públicos como o Judiciário, a Receita Federal, o SINTER e o sistema bancário. O objetivo final é permitir que atos como registros, averbações, notificações e consultas sejam realizados de forma integralmente eletrônica, com validade jurídica plena e auditabilidade segura.

Avanços tecnológicos e desafios práticos

Os avanços tecnológicos promovidos nos últimos anos pelo setor cartorário são significativos: já é possível, em muitas serventias, realizar registros eletrônicos, emitir certidões digitais e consultar matrículas por meio de plataformas como o e-Cartório e o e-Notariado. Entretanto, essa modernização ainda não é homogênea nem plenamente integrada. A coexistência de múltiplas plataformas estaduais, cada qual com seu modelo de desenvolvimento, formato de dados e padrão de segurança, dificulta a interoperabilidade pretendida.

Além disso, o desenvolvimento da própria infraestrutura tecnológica do ONR ainda enfrenta obstáculos, inclusive no tocante à captação e gerenciamento de recursos financeiros para a manutenção e evolução da plataforma nacional.

Entraves legislativos e normativos

Embora o marco legal venha se fortalecendo - com destaque para a Lei nº 14.382/2022, que reformulou a Lei dos Registros Públicos para viabilizar o SERP e a integração nacional - ainda existem lacunas relevantes. Há ausência de uma regulamentação clara e uniforme que imponha a obrigatoriedade da interoperabilidade de forma coordenada e gradual em todos os estados.

Outro entrave legislativo diz respeito à segurança jurídica da migração dos registros para o meio digital. A responsabilidade civil dos registradores, a autenticidade dos documentos eletrônicos, o tratamento de dados pessoais e a validade das comunicações eletrônicas ainda demandam maior uniformidade normativa, especialmente em face da LGPD e da complexidade dos atos registrais.

O ONR representa um marco institucional e técnico de grande potencial, mas ainda carece de fortalecimento jurídico, técnico e político. A ausência de obrigatoriedade real da integração nacional, aliada à fragmentação histórica do setor, torna o avanço lento e desigual. O êxito do modelo dependerá não apenas da evolução tecnológica, mas também de vontade normativa e convergência institucional, além de uma mudança de mentalidade dos próprios operadores do direito registral.

Responsabilidade Civil em Caso de Falhas no Ambiente Eletrônico

A digitalização dos registros públicos representa um marco de modernização e eficiência. Contudo, também inaugura uma nova gama de riscos operacionais e jurídicos, sobretudo quanto à responsabilidade civil dos registradores de imóveis por falhas técnicas, indisponibilidades ou perda de dados no ambiente eletrônico. À medida que se amplia a complexidade do ecossistema digital, cresce também a necessidade de delinear com precisão os contornos dessa responsabilidade.

Responsabilidade subjetiva e função pública delegada

Embora os registradores exerçam função pública por delegação do Estado, o Supremo Tribunal Federal firmou a tese de que a sua responsabilidade civil é subjetiva, e não objetiva (Temas 777 e 940).

Com isso, é necessária a comprovação de culpa (negligência, imprudência ou imperícia) para que haja responsabilização. Essa orientação se aplica mesmo diante da delegação estatal, diferenciando os delegatários dos prestadores de serviços públicos típicos sob regime de concessão ou permissão.

Falhas tecnológicas e ônus probatório

No contexto eletrônico, falhas como:

  • indisponibilidade de sistema,
  • erros na transmissão de dados,
  • autenticação indevida de documentos,
  • perda de informações digitalizadas,

podem acarretar prejuízos consideráveis, inclusive com reflexos em processos judiciais ou negociações imobiliárias. Contudo, a responsabilização do registrador dependerá da demonstração da conduta culposa, cabendo ao interessado produzir prova técnica do defeito e da omissão ou falha no dever de diligência.

A culpa, nesse cenário, pode se materializar na ausência de manutenção adequada do sistema, na adoção de práticas inseguras, na falta de capacitação da equipe ou na omissão frente a alertas técnicos. Assim, o uso de tecnologias não exime o registrador de agir com o padrão de zelo compatível com a função exercida.

LGPD e dever de segurança no tratamento de dados

A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) introduziu uma nova camada de responsabilidade aos cartórios, agora qualificados como agentes de tratamento de dados pessoais. Vazamentos, acessos indevidos ou falhas de segurança podem gerar responsabilização tanto no plano civil quanto administrativo. Nesse contexto, a culpa pode decorrer, por exemplo, da ausência de políticas adequadas de segurança da informação ou da negligência na proteção de dados sensíveis.

Jurisprudência incipiente e tendência de rigor técnico

Embora a jurisprudência sobre falhas digitais específicas ainda esteja em consolidação, há forte tendência de valorização da conduta do registrador, exigindo padrões elevados de diligência técnica, organizacional e ética. A atuação preventiva, com protocolos claros de segurança e resposta a incidentes, tende a ser cada vez mais cobrada.

Perspectivas: fundos compensatórios e seguros facultativos

Frente ao aumento dos riscos digitais, discute-se a viabilidade de mecanismos como:

  • seguros facultativos ou recomendados de responsabilidade civil,
  • fundos de compensação nacionais para falhas sistêmicas, eventualmente vinculados ao ONR ou supervisionados pelo CNJ.

Essas ferramentas podem colaborar para garantir proteção às vítimas sem sobrecarregar o registrador individual diante de incidentes tecnológicos de grande escala.

Conclusão

A busca pela interoperabilidade nacional no registro de imóveis é, ao mesmo tempo, um imperativo da modernidade e um desafio institucional de larga escala. O Brasil avança em direção à unificação dos sistemas registrais, impulsionado por iniciativas como o ONR e o SERP, e amparado por reformas legislativas importantes, como a Lei nº 14.382/2022. Contudo, o processo é ainda marcado por assimetrias técnicas, resistências locais, fragilidades normativas e riscos jurídicos relevantes.

O sonho de um sistema registral nacional eletrônico, ágil, transparente e integrado não é uma utopia inalcançável, mas tampouco representa uma revolução consumada. Trata-se de um movimento em andamento, em constante construção, que depende do engajamento colaborativo entre reguladores, delegatários, desenvolvedores, operadores do direito e o próprio Poder Judiciário.

Nesse cenário, o papel do ONR deve ser fortalecido, com garantias de financiamento, autonomia técnica e apoio institucional. Os registradores, por sua vez, precisam assumir protagonismo na implantação das soluções tecnológicas, ao lado da constante qualificação técnica e da adequação aos novos padrões de segurança digital e proteção de dados.

Por fim, é essencial compreender que a responsabilidade civil no ambiente eletrônico não desaparece - apenas se transforma. À luz dos Temas 777 e 940 do STF, é certo que a responsabilização dos delegatários é subjetiva, exigindo prova de culpa. Ainda assim, a exigência de diligência tecnológica compatível com a função pública exercida é crescente e inescapável, especialmente diante da sensibilidade das informações tratadas.

A interoperabilidade, portanto, não é um destino automático, mas uma escolha institucional, política e técnica, que exigirá enfrentamento de resistências, consolidação normativa e uma cultura de cooperação interinstitucional. Trata-se, em última análise, não de uma utopia, mas de uma necessidade histórica em construção.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos.

BRASIL. Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017. Dispõe sobre a regularização fundiária e a criação do ONR.

BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

BRASIL. Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022. Altera a Lei dos Registros Públicos para instituir o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP).

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento CNJ nº 89/2019. Dispõe sobre os procedimentos de implementação do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI).

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Com SERP, integração de base de dados de cartórios aperfeiçoa serviço do Judiciário. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/com-serp-integracao-de-base-de-dados-de-cartorios-aperfeicoa-servico-do-judiciario/. Acesso em: abr. 2025.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tema 777 da Repercussão Geral. Recurso Extraordinário RE 842.846/RS. Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 19.02.2021.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tema 940 da Repercussão Geral. Recurso Extraordinário RE 1.027.133/SP. Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 24.08.2020.

CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA. Central Nacional de Registro de Imóveis (CNR) e iniciativas do ONR. Disponível em: https://www.registrodeimoveis.org.br

Gabriel de Sousa Pires

VIP Gabriel de Sousa Pires

Advogado, ex-Conselheiro Seccional e atual membro da Comissão de Seleção da OAB-DF. Especialista em Direito Contratual, Imobiliário e Empresarial. Sócio da J Pires Advocacia & Consultoria

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