Filtro da relevância no REsp: Vicissitudes na aplicabilidade concreta
Decorridos quase três anos da entrada em vigor do filtro da relevância, disposto no §2º do art. 105 da Constituição Federal, o maior entrave à sua aplicação reside na falta de regulamentação.
quinta-feira, 3 de abril de 2025
Atualizado às 09:50
Com a promulgação da EC 125/22, introduziu-se o filtro de relevância das questões de direito federal infraconstitucional para a interposição do recurso especial. Resultado da denominada PEC da relevância, cuja tramitação teve início em 2012 nas casas do Congresso Nacional, a norma possui uma base axiológica voltada à exigência de que a matéria suscitada nos recursos transcenda os interesses meramente subjetivos das partes. Em síntese, seu objetivo é viabilizar que o Superior Tribunal de Justiça se concentre, de maneira mais dinâmica e eficaz, no cumprimento de sua missão constitucional: a uniformização da interpretação da legislação federal em todo o país.
No primeiro parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados (BRASIL, 2012), apresentado no decorrer da tramitação da proposta legislativa, a fim de justificar o fundamento valorativo da norma, estabeleceu-se um paralelo entre o então inédito requisito de admissibilidade dos recursos especiais ao requisito de repercussão geral, já exigido nos recursos extraordinários direcionados à Suprema Corte, in verbis.
De acordo com sua primeira signatária, o julgamento dos recursos especiais pelo STJ apresenta grave problema de congestionamento, semelhante ao que serviu como pretexto para o estabelecimento, nos recursos extraordinários examinados pelo Supremo Tribunal Federal, do requisito de admissibilidade da repercussão geral. A instituição de tal requisito provocou uma grande redução do número de processos distribuídos à excelsa Corte. A introdução de requisito semelhante para os recursos especiais deverá produzir o mesmo efeito no Superior Tribunal de Justiça, permitindo-lhe uma atuação mais célere e eficiente na solução das questões que lhe são apresentadas.
A introdução do critério de relevância da questão federal infraconstitucional foi inspirada no êxito da repercussão geral. Durante o Seminário Relevância das Questões de Direito Federal Infraconstitucional, promovido pelo STJ, o ministro OG Fernandes reiterou a analogia entre os dois requisitos e a finalidade perseguida com a nova condição de admissibilidade. Segundo o Ministro, após a introdução bem-sucedida da repercussão geral na Suprema Corte, houve diminuição do número de recursos em tramitação, viabilizando que o Tribunal Constitucional se concentrasse no julgamento de "questões realmente relevantes para todo o país" (STJ, 2023).
No campo da excepcionalidade da jurisdição superior, a interposição de recursos para os Tribunais Superiores ampara-se, sobretudo, no interesse da ordem pública e relevância da causa. Para Lemos (2020, p. 482), A função precípua da própria existência dos recursos excepcionais está na finalidade maior de proteger as normas federais (recurso especial) e a Constituição (recurso extraordinário), do que atentar sobre o direito reivindicado pelas partes, naquele momento do processo. Os Tribunais Superiores têm a finalidade de proteção à segurança jurídica, pacificando a interpretação da lei (cada qual com a sua competência) e a aplicabilidade desta, no âmbito dos Tribunais de segundo grau.
Logo após a incorporação do novo filtro ao ordenamento jurídico, os juristas enfrentaram dificuldades na interpretação da norma. Além das matérias dispostas no §3º do art. 105, cujas relevâncias encontram-se expressamente reconhecidas no texto constitucional, os operadores não dispunham de parâmetros objetivos para delimitar e aferir a relevância recursal disposta no §2º. Advogados passaram a incluir, em suas peças recursais, argumentos próprios para justificar a relevância da questão discutida, sem qualquer respaldo em parâmetros normativos orientadores. Paralelamente, os órgãos julgadores passaram a enfrentar argumentações heterogêneas sobre a nova exigência de admissibilidade recursal.
Diante desse cenário, no mesmo ano da introdução do filtro da relevância, a fim de sustar qualquer insegurança jurídica decorrente da fragmentação interpretativa, o Tribunal da Cidadania editou o Enunciado Administrativo n. 8, acautelando que somente após a entrada em vigor de lei regulamentadora passará a ser exigida a indicação da relevância da questão de direito federal infraconstitucional no recurso especial. Deste então, nesse sentido vem sendo o entendimento jurisprudencial:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. APELAÇÃO CÍVEL. RELEVÂNCIA DE QUESTÃO FEDERAL. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 125/2022. AUSÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO. ATO NORMATIVO N. 8 DO STJ. ALIMENTOS VENCIDOS. NATUREZA PERSONALÍSSIMA. PATRIMÔNIO MORAL DA ALIMENTADA. IMPOSSIBILIDADE DE TRANSMISSÃO. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.
1. A ausência de regulamentação da inovação trazida pela Emenda Constitucional n. 125/2022 afasta a exigência da arguição de relevância de questão federal para admissão do recurso especial, conforme o Ato Administrativo n. 8 do STJ.
2. A natureza personalíssima dos alimentos, além de seu caráter de patrimônio moral em razão de sua finalidade, torna inviável a transferência aos herdeiros em caso de morte da alimentada.
3. Agravo interno desprovido.
(AgInt nos EDcl no AREsp n. 2.412.253/RS, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 9/9/2024, DJe de 12/9/2024.)
A Corte Superior já entregou ao Presidente do Senado Federal uma primeira sugestão de anteprojeto de lei regulamentadora do filtro de relevância, inspirada na normatização da repercussão geral, com o objetivo de inserir dispositivos no Código de Processo Civil que normatizem as "questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos do processo" (BRASIL, 2022).
Sucede que, diante da ausência de movimentações legislativas significativas decorrentes da apresentação do mencionado anteprojeto, em 2024, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil encaminhou ao Congresso novo anteprojeto de lei regulamentadora, assinado por Bulhões, Coelho e Oliveira (2024). Diferentemente do anterior, este anteprojeto distingue a relevância da questão federal infraconstitucional da repercussão geral constitucional, uma vez que possuem "objeto, conteúdo e forma diferentes" (BULHÕES; COELHO; OLIVEIRA, 2024, p. 04)".
Tecendo relevantes considerações sobre o tema, os Autores (2024, p. 9) justificam que, se se pretendesse equiparar o filtro da relevância no recurso especial à repercussão geral no recurso extraordinário, com as notórias diferenças de objetos envolvidos em ambos os casos (Constituição Federal com número reduzido de artigos e milhares de leis federais vigentes no país), seguramente estar-se-ia produzindo perigoso engessamento do modelo federativo e desfuncionalizando-se o sistema de controle da legislação federal infraconstitucional atribuído pela Constituição Federal ao STJ (art. 105, III, "a", "b" e "c", da CF). De feito. A equiparação do filtro da relevância no recurso especial à repercussão geral no recurso extraordinário implicaria fazer de cada caso estimado e julgado relevante em recurso especial uma tese de efeito vinculante para todo o sistema federativo de interpretação e de aplicação do direito federal, com inequívoca repercussão sobre o papel exercido pelos Tribunais de Justiça e pelos Tribunais Regionais Federais, resultando em um verdadeiro redesenho do modelo federativo vigente, ainda que de modo oblíquo e ambíguo, sem se alterarem os arts. 22 e 24 da Constituição Federal.
Em pesquisa nos registros das casas legislativas do Congresso Nacional, foi identificado que se encontra em tramitação, a passos lentos, o Projeto de Lei nº 3.804, de 2023, tendo como casa iniciadora o Senado Federal. Este projeto se distingue das propostas elaboradas pelo Superior Tribunal de Justiça e pela Ordem dos Advogados do Brasil por apresentar um texto normativo de estrutura mais ampla e simplificada, focando na regulamentação do filtro de relevância para os recursos especiais no Código de Processo Civil, sem as especificações mais detalhadas presentes nas propostas anteriores.
Infere-se que até os dias atuais, o §2º do art. 105 da Constituição Federal, norma de eficácia contida, permanece inaplicável, condicionada à aprovação e promulgação da uma lei regulamentadora. A elaboração dessa regulamentação, que definirá os parâmetros para o filtro da relevância a ser aplicado aos recursos especiais, constitui uma tarefa de elevada complexidade. No entanto, é fundamental que esse processo seja priorizado e avance, uma vez que há uma norma constitucional aguardando a sua implementação, cuja plena eficácia depende de sua devida regulamentação para que possa produzir todos os seus efeitos.
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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 1º abr. 2025.
BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Parecer à Proposta de Emenda à Constituição nº 209, de 2012. Brasília, DF, 2012. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pec-209-2012-cd. Acesso em: 31 mar. 2025.
BRASIL. Projeto de Lei nº 3804, de 2023. Regulamenta o filtro da relevância no recurso especial. Câmara dos Deputados, 2023. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pl-3804-2023. Acesso em: 01 abr. 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Enunciado Administrativo nº 8. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Leis-e-normas/Enunciados-administrativos. Acesso em: 1º abr. 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Proposta para regulamentar filtro de relevância do recurso especial. 2022. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2022/05122022-STJ-entrega-ao-Senado-proposta-para-regulamentar-filtro-de-relevancia-do-recurso-especial.aspx. Acesso em: 01 abr. 2025.
BULHÕES, A. Nabor A.; COELHO, Marcus Vinícius Furtado; OLIVEIRA, Marcelo Ribeiro H. de. Anteprojeto de regulamentação do filtro de relevância do STJ. Brasília: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, 2024. Assinado em 9 mar. 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/405413/oab-envia-ao-congresso-regulamentacao-do-filtro-de-relevancia-do-stj. Acesso em: 01 abr. 2025.
LEMOS, Vinicius Silva. Recursos e processos nos tribunais/ Vinicius Silva Lemos - 4. ed. rev., atual. e ampl. - Salvador: Editora JusPodivm, 2020.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Especialistas debatem desafios e oportunidades na regulamentação do filtro de relevância do recurso especial. Brasília, 9 fev. 2023. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/09022023-Especialistas-debatem-desafios-e-oportunidades-na-regulamentacao-do-filtro-de-relevancia-do-recurso-especial.aspx. Acesso em: 31 mar. 2025.