Projeto de lei obriga o uso de tornozeleira eletrônica nas medidas protetivas
Este ensaio busca discutir os riscos da imposição automática de monitoramento eletrônico no contexto da lei Maria da Penha.
quinta-feira, 3 de abril de 2025
Atualizado às 13:13
1. Introdução
O PL 5427/23, de autoria do deputado Federal Gutemberg Reis (MDB/RJ), propõe uma mudança significativa na lei Maria da Penha ao tornar obrigatório o uso de tornozeleira eletrônica por homens intimados de medidas protetivas de urgência. A proposta, que também prevê um dispositivo de alerta para a vítima em caso de aproximação, tem como pano de fundo a legítima intenção de proteção à mulher. No entanto, levanta uma série de questionamentos jurídicos, sociais e éticos sobre o uso indiscriminado de uma medida extrema como a vigilância eletrônica, que compromete diretamente os direitos fundamentais da pessoa submetida a tais restrições.
Este ensaio analisa os impactos desse projeto à luz da presunção de inocência, da proporcionalidade e da dignidade humana, refletindo sobre os riscos que a banalização das medidas restritivas pode trazer à justiça e ao equilíbrio processual.
2. Desenvolvimento
A proposta de obrigatoriedade do uso de tornozeleiras eletrônicas em todas as situações de concessão de medidas protetivas gera um ponto de partida preocupante: trata-se de um dispositivo com forte carga simbólica e estigmatizante, que historicamente foi aplicado a indivíduos já condenados ou com grau de periculosidade demonstrado. Submetê-lo automaticamente a qualquer homem intimado por uma medida protetiva, inclusive nos casos em que não houve ameaça grave, violência física ou reincidência, representa uma inversão da lógica processual penal e um tratamento degradante.
Anualmente, mais de 600 mil medidas protetivas são concedidas no Brasil. Surge, então, uma pergunta prática: haverá equipamentos disponíveis para todos os casos? As instituições conseguirão monitorar todos os casos? E mais: qual será o critério para o uso do equipamento? Serão todos os homens submetidos à mesma pena simbólica, independentemente da gravidade da denúncia, da existência de antecedentes ou do risco real à suposta vítima?
A crítica central está na adoção irrefletida e generalizada do emprego da tornozeleira, sem qualquer gradação ou análise da situação concreta. Ao transformar uma medida extrema em regra, o projeto colide com o princípio da proporcionalidade e desconsidera o impacto social que tal imposição causará na vida de homens que, muitas vezes, sequer possuem passagem policial. A simples palavra da suposta vítima, ainda que deva ser considerada e investigada com atenção, não pode automaticamente substituir o devido processo legal e justificar o uso de instrumentos de punição antes da apuração dos fatos.
Além do impacto simbólico e moral - já que o uso da tornozeleira eletrônica carrega o peso da estigmatização social -, há efeitos práticos desastrosos. Um homem com tornozeleira pode perder seu emprego, ser excluído de ambientes profissionais e sociais, e ser afastado do convívio com seus filhos, ainda que nenhuma sentença penal tenha sido proferida contra ele. Em casos de guarda, pensão ou partilha de bens, essa vulnerabilidade pode ser usada de forma oportunista para forçar acordos injustos. Assim, o dispositivo de proteção à mulher pode se transformar em ferramenta de chantagem e abuso judicial.
Outro ponto nebuloso do projeto está na falta de critérios para o fim da medida. Até quando o homem deverá usar a tornozeleira? O texto legal não responde. Será por prazo indeterminado? Estará a critério exclusivo da vítima e do juiz? E como se define o fim da situação de risco? Essa indefinição legal cria um ciclo vicioso em que o controle e a suspensão da dignidade do homem ficam sujeitos à vontade unilateral da parte que se declara vítima. A falta de regulamentação abre brecha para abusos, especialmente em processos de separação litigiosa, onde a sobreposição entre esfera penal e cível é frequente.
Importante frisar que não se trata de negar a gravidade da violência doméstica ou o direito da mulher à proteção. Pelo contrário: trata-se de exigir que o combate à violência seja feito com responsabilidade, racionalidade e justiça, sem espaço para políticas simbólicas e populistas que desconsideram as consequências da restrição de direitos antes da efetiva comprovação de culpa.
Infelizmente, projetos como o PL 5.427/23 têm se tornado comuns no cenário político nos últimos tempos. A causa da violência doméstica, legítima e urgente, tem sido instrumentalizada como palanque eleitoreiro. Com o crescimento do eleitorado feminino, parlamentares tendem a propor medidas de impacto midiático e simbólico que ignoram os princípios constitucionais e o equilíbrio entre as partes. Falar em defesa da mulher virou moeda política; mas legislar com responsabilidade é outra coisa. O preço de decisões mal planejadas pode ser alto e pago por inocentes.
3. Conclusão
O PL 5.427/23, ao prever o uso obrigatório da tornozeleira eletrônica para todos os homens intimados de medidas protetivas, ignora princípios fundamentais do direito como a presunção de inocência, a proporcionalidade e a dignidade da pessoa humana. Mais do que isso, institucionaliza a estigmatização e compromete a vida social e profissional de indivíduos que ainda não foram julgados. O combate à violência contra a mulher exige seriedade e estratégias eficazes, mas também exige justiça e equilíbrio. É preciso evitar que o remédio se torne mais danoso que a própria doença. A tornozeleira eletrônica não pode ser aplicada como regra geral, mas sim como exceção, em situações graves, de reincidência ou descumprimento comprovado das medidas. Propostas populistas, ainda que bem-intencionadas, podem criar problemas sociais e jurídicos, desviando-se do verdadeiro objetivo de proteger - com equidade - todas as partes envolvidas. A política criminal não pode ser construída sobre alicerces frágeis de retórica eleitoral. É necessário cautela, responsabilidade e, sobretudo, respeito ao devido processo legal.