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A ética da advocacia à luz do imperativo categórico

A advocacia deve seguir normas éticas não por medo de punição, mas por convicção moral, garantindo sua dignidade e compromisso com a justiça.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Atualizado às 18:01

"Age somente segundo uma máxima tal que possas, ao mesmo tempo, querer que ela se torne lei universal." 

(Kant, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes) 

Introdução

O Iluminismo do século XVIII confiou à razão humana um potencial de transformação das estruturas sociais, aderindo ao humanismo, isto é, à crença de que a razão levaria incondicionalmente ao progresso social e cultural da humanidade. Para o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), expoente por excelência dessa doutrina, a razão impulsionaria o homem rumo ao bem supremo, cujo apogeu seria a paz eterna2. Há, portanto, uma "fé metafísica na marcha da razão" e em uma história erigida sobre a "religião universal da razão"3. Tão influente é essa teoria, que a própria noção de direitos humanos, largamente difundida e sedimentada em todos os Estados democráticos de direito contemporâneos, é tributária do moralismo liberal e universal kantiano4

Dada a devida contextualização, do pensamento moral kantiano quero pinçar especialmente o conceito de imperativo categórico, que, como veremos, é a lei suprema e universal da moralidade em Kant. Em apertada síntese, digamos que as normas morais devem ser cumpridas espontaneamente pelo indivíduo, porque, ao contrário das leis jurídicas, não admitem coação que não seja apenas o autoconstrangimento da própria consciência. Para a vida moral, portanto, é necessário o nexo entre conduta e motivações da conduta (o conceito de máxima, que será exposto na seção a seguir). Sublinho, pois, o aspecto da obediência voluntária do cumprimento das leis morais.  

Após a hercúlea tarefa de compreender e sistematizar de maneira didática a doutrina moral de Kant, dotada de imanente riqueza, densidade e complexidade, tenciono propor uma reflexão sobre a ética profissional da advocacia à luz do imperativo categórico. É cediço que, sem prejuízo de demais regulamentações no âmbito administrativo do sistema da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, a ética da advocacia tem arrimo, em âmbito legal, principalmente na Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia e da OAB - EAOAB5) e na Resolução nº 02/2015 do Conselho Federal da OAB - CFOAB (Código de Ética e Disciplina da OAB - CED6). Ora, para cumprir fidedignamente seu mister constitucional, a advocacia - indispensável à administração da justiça em nosso Estado democrático de direito7  - não somente deve obedecer às normas estatutárias e disciplinares do sistema OAB, que submetem o infrator à jurisdição cível, penal e administrativa, como também deve obedecer espontaneamente a uma moral profissional que pode ser compreendida sob o prisma do imperativo categórico (princípio da obediência voluntária). Defendo, neste ensaio, que uma classe profissional tão primordial ao Estado democrático de direito, que reivindica, com justiça, reconhecimento social, há de pautar-se por uma moralidade que transcenda as normas jurídicas atinentes à classe. Em outras palavras: a uma moralidade de caráter universal.

Transcrevendo o que foi dito para termos filosóficos: para manter sua dignidade, a advocacia não pode depender apenas da espada (no sentido da metáfora celebrizada por Thomas Hobbes8, representativa da coercitividade das normas jurídicas, cuja violação é punível juridicamente), mas deve projetar-se, antes de mais nada, como uma classe cumpridora de uma ética racional, reflexiva e crítica. E, como veremos, o cumprimento das leis morais há de ser voluntário; há de estar entranhado na consciência de todo profissional da advocacia. A fim de elucidar essa tese, farei primeiramente um estudo crítico do conceito de imperativo categórico (seção 1) e, em segundo momento, delinearei os fundamentos das normas éticas legais e administrativas atinentes à classe (seção 2). Finalmente, à guisa de considerações finais, analisarei em que medida o imperativo categórico pode ser salutar para compreender e promover a dignidade inerente à advocacia. 

1. A moral kantiana: os pressupostos da razão, da liberdade e da autonomia

Kant foi um exímio representante do pensamento iluminista do Esclarecimento9, que floresceu na Europa no século XVIII: seu pensamento propôs uma modernidade racional, crítica e universal, fundada na crença do progresso moral humano. Alinhado a um liberalismo deontológico, Kant elaborou uma sofisticada epistemologia10 do indivíduo moderno, acreditando-o capaz de, por meio do uso crítico da razão, descobrir princípios inerentes do dever-ser. Embora o trabalho kantiano atravesse várias áreas do conhecimento11, importa, para o escopo deste ensaio, sua filosofia moral12. Com o metodismo que lhe é peculiar, Kant baseoua nestas premissas: liberdade individual, que conduz à autonomia privada, que, por seu turno, conduz ao princípio universal da moralidade: o imperativo categórico. Antes de analisar as referidas premissas, contextualizemos a filosofia moral kantiana no domínio da filosofia em geral.

A corrente do racionalismo, à qual o filósofo de Königsberg13 se filia, contrapõe-se ao empirismo14 e ao utilitarismo15. Contra o empirismo, é aduzida a capacidade humana de operar julgamentos morais transcendentes ao contexto social e cultural e de orientar sua conduta em conformidade com esses juízos. Os deveres humanos seriam antes "desvendados" pela razão do que fornecidos pela experiência social. Contra o utilitarismo, é aduzido o primado16  do certo (do justo, daquilo que possui valor em si) sobre o bem (isto é, sobre as condutas orientadas às consequências, ao benefício individual ou social, mediante um uso egoístico de uma razão calculadora17)18. Em contraponto, como preleciona o filósofo Wayne Morrison19, a evidência da razão pura em si leva à conclusão oposta: "A dignidade e a singularidade do homem encontram-se em sua capacidade de usar a razão; esta é uma capacidade que todos os homens compartilham enquanto seres racionais, e que lhes permite extrapolar os limites de seus padrões locais ou comunitários de crenças socializadas".

Antonio Oneildo Ferreira

Antonio Oneildo Ferreira

Advogado. Presidente da OAB/RR no período de 2001 a 2012. Diretor-Tesoureiro do CFOAB no período de 2013 a 2019.

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