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Regras de eficácia do contraditório e da ampla defesa

Quatro regras garantem à defesa acesso pleno e autêntico às provas, assegurando contraditório real e paridade no processo penal.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Atualizado às 11:16

No âmbito do processo penal democrático e garantista, especialmente à luz da atuação da defesa em face das provas produzidas na fase investigativa, emergem quatro regras fundamentais que estruturam o exercício do contraditório substancial, asseguram a paridade de armas e concretizam a ampla defesa. Essas regras visam garantir que o processo não se transforme em mero instrumento de validação da versão acusatória, mas, sim, em espaço efetivo de debate, reconstrução fática e controle da legalidade e da legitimidade da prova.

a) Regra da acessibilidade ampla e irrestrita

A primeira regra estabelece que o acesso da defesa aos elementos informativos reunidos durante a investigação não pode ser condicionado por filtros seletivos impostos pelos órgãos responsáveis pela persecução penal. Trata-se de uma resposta à prática - infelizmente comum - de se disponibilizar apenas os documentos considerados úteis ou convenientes pela autoridade policial ou pelo Ministério Público, normalmente aqueles que embasam o relatório final ou a peça acusatória.

Não se quer aqui somente ratificar o enunciado da Súmula Vinculante n. 14 do STF, que expressa "o direito de acesso pela defesa aos elementos de convicção já documentados pelo órgão com competência de polícia e que digam respeito ao exercício legítimo do direito de defesa".

O que se pretende é que a leitura do processo penal garantista, que tem como fundamento o contraditório eficaz, amplie a abrangência do acesso à defesa, não só aos elementos de convicção já documentados (leia-se, selecionados), mas todo e qualquer elemento, sem qualquer filtro ou fragmentação por qualquer órgão.

A lógica democrática do processo penal exige que a defesa tenha acesso integral ao acervo probatório, e não apenas à parcela filtrada pela acusação. Essa ampliação é condição para o contraditório real, pois somente o conhecimento pleno da prova permite que a defesa identifique eventuais contradições, omissões, vícios formais e materiais ou mesmo elementos favoráveis que tenham sido desconsiderados pela parte acusadora.

b) Regra da mesmidade e confiança

A segunda regra tem como pressuposto a conformidade e a autenticidade da prova acessada. Não basta garantir acesso amplo - é necessário que esse acesso seja à prova original, íntegra, não contaminada ou manipulada ao longo de sua cadeia de custódia.

Geraldo Prado1 nos apresenta a relevância de dois princípios. O primeiro é da "mesmidade" como pilares para a validade da prova no processo penal. O termo "mesmidade" (emprestado do espanhol) refere-se à exigência de que a prova analisada no processo seja rigorosamente idêntica àquela originalmente obtida, ou seja, que se trate da mesma prova, sem alterações ou fragmentações.

Entretanto, é comum que, durante a fase investigativa, a prova sofra interferências - seja por filtros, cortes ou outras formas de manipulação - por parte das autoridades responsáveis por sua obtenção e custódia. Isso compromete a fidelidade da prova apresentada judicialmente, que muitas vezes deixa de ser "a mesma" para se tornar apenas uma parte do todo, ou até mesmo algo substancialmente diverso do original.2

Outro princípio que merece atenção é o da "desconfiança", o qual impõe a necessidade de que qualquer prova (como documentos, exames de DNA, gravações, entre outros) seja submetida a um processo de verificação que comprove sua autenticidade e correspondência com o que se afirme no processo. O conjunto probatório requer a aplicação de regras específicas de "acreditação", justamente porque nem todo elemento que adentra os autos pode ser automaticamente considerado prova válida. É preciso que esse elemento seja reconhecido como legítimo, o que implica um processo que se estende desde sua coleta, passando pela análise das partes e finalizando com o juízo do julgador.3

c) Regra da dialeticidade probatória

A terceira regra ressalta que o processo penal é dialético por natureza, o que implica reconhecer que a verdade processual não é monopólio da acusação. A defesa não se limita a rebater teses acusatórias, mas também reconstrói fatos e interpretações com base nas mesmas (ou em outras) provas disponíveis.

A valoração probatória, portanto, deve nascer do confronto entre narrativas, da possibilidade de reconstrução e desconstrução argumentativa em juízo, respeitando a lógica da cooperação dialética.

A dialeticidade probatória, portanto, impõe o reconhecimento do direito da defesa de reconstruir os fatos de forma autônoma, sobre bases probatórias integrais e intactas, e não a partir do filtro analítico imposto pela acusação.

d) Regra da comunhão probatória

Por fim, a quarta regra propõe uma releitura crítica do tradicional brocardo "o que não está no processo está fora do mundo jurídico", que, em sua aplicação clássica, serve para excluir qualquer elemento que não tenha sido formalmente incorporado aos autos.

No contexto da ampliação das garantias defensivas, essa máxima deve ser reinterpretada sob a ótica da comunhão probatória, entendida como a possibilidade de a defesa valer-se de elementos existentes na fase investigativa - ainda que não tenham sido levados ao processo pela acusação - e incorporá-los validamente ao debate processual. Isso significa reconhecer que a defesa pode acessar e trazer aos autos materiais probatórios que permaneceram no "mundo da investigação", justamente para garantir a efetividade do contraditório.

Assim, aquilo que não está no processo por opção circunstancial, mas que existe nos autos da investigação, pode e deve ser resgatado pela defesa, contribuindo para o equilíbrio dialético e para a reconstrução mais completa dos fatos.

_______
 
1 PRADO, Geraldo. Ainda sobre a quebra da cadeia de custódia das provas. in Boletim do IBCCrim, n. 262, setembro de 2014, p. 16-17.

2 LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre Morais da. A importância da cadeia de custódia para preservar a prova penal. Revista Consultor Jurídico, [S. l.], 2015.  Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-jan-16/limite-penal-importancia-cadeia-custodia-prova-penal. Acesso em: 20 fev. 2025.

3 Ibid.

Clovis Volpe

Clovis Volpe

Sócio-diretor do Moisés Volpe e Del Bianco Advogados. Professor universitário. Mestre e doutor em Direito Constitucional. Especialista em Ciências Criminais. MBA em Direito Empresarial.

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