As ações coletivas em matéria tributária e a "venda de coisas julgadas"
Omissão dos tribunais superiores pode incentivar a "venda de coisa julgada" das ações coletivas em matéria tributária, potencializando imbróglios aos contribuintes que se vincularem sem as devidas cautelas.
quarta-feira, 2 de abril de 2025
Atualizado em 1 de abril de 2025 16:43
Com o passar dos anos, e o advento da CF/88, os direitos coletivos, também chamados de direitos de terceira geração1, foram ganhando cada vez mais relevância; sendo objeto cotidiano de julgamentos repetitivos pelos tribunais superiores. Ainda assim, são poucos os estudos acadêmicos que se dedicam a avaliar a aplicação das tutelas coletivas na seara processual-tributária.
É este, pois, o objetivo deste texto, no qual analisa-se como a jurisprudência vem se posicionando sobre o assunto, bem como as cautelas que os contribuintes brasileiros precisam ter ao pretender se vincular a determinadas ações coletivas que, pelo que se tem notícia, vêm sendo oferecidas como "produtos de prateleira" disponíveis para venda.
Para tanto, importa destacar, desde logo, que os direitos coletivos podem ser divididos nas seguintes categorias, a teor do art. 81 do CDC e do art. 21, § único, da lei 12.016/092:
- Direitos difusos: Os que ultrapassam o individual, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato (origem comum), que só podem ser considerados como um todo. São direitos de todos, mas que não pertencem a ninguém individualmente;
- Direitos coletivos stricto sensu: Os que ultrapassam o individual, de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. São direitos de um grupo determinado, mas que não pertencem a ninguém individualmente;
- Direitos individuais homogêneos: Os decorrentes de origem comum, mas divisíveis. Cada indivíduo possui o seu direito próprio decorrente do mesmo fato gênesis.
Em âmbito tributário, embora haja certo debate doutrinário sobre o tema3, denota correto afirmar, com base em julgados recentes do STF4, que, na generalidade dos casos, tratar-se-á de direitos individuais homogêneos. Isso porque, embora os contribuintes estejam ligados ao Fisco por uma mesma relação jurídica base, o direito de suportar cobranças tributárias adequadas não é transindividual. Isto é, não pertence a uma coletividade indeterminada (ou grupo de indivíduos), já que o nascimento da obrigação tributária depende, sempre, de um ato concreto do próprio contribuinte, e, por isso, a lesão suportada por cada indivíduo é determinável e divisível.
Isso, porém, não significa dizer que há uma vedação e/ou incompatibilidade para se discutir temas tributários em sede de ações coletivas, ou mesmo que os contribuintes não possam se beneficiar de decisões oriundas de processos dessa natureza. Ao contrário, as recentes decisões proferidas pelos tribunais superiores indicam que os contribuintes podem se beneficiar desse tipo de ação, desde que, claro, algumas cautelas sejam observadas.
Os limites da tutela coletiva segundo a jurisprudência dos tribunais superiores
Em se tratando de ações coletivas, a primeira característica que precisa ser definida é se, de uma determinada ação, decorre uma relação de substituição ou representação processual. Enquanto a representação processual é a regra no ordenamento jurídico brasileiro, que ocorre quando um indivíduo defende direito alheio em nome de terceiro; a substituição processual é uma situação excepcional, na qual o legislador permite que um indivíduo pleiteie direito alheio em nome próprio.
Definir o tipo de relação processual que se tem em um determinado caso concreto é, portanto, de suma importância para saber (i) a extensão dos efeitos da referida ação coletiva; bem como se (ii) há condições especiais, que precisam ser observadas, para que esses efeitos se operem perante um determinado indivíduo. Não por outra razão, estes são os temas que nos últimos tempos foram analisados com maior ênfase pelos tribunais superiores e que, naturalmente, têm maior repercussão, quando se analisa a tutela coletiva aplicada ao microssistema processual-tributário.
A este respeito, o que se percebe da jurisprudência dos tribunais superiores é que, para definir os dois pontos anteriores, faz-se imperioso observar, em sequência, os seguintes aspectos:
(1) a qualidade do legitimado, autor da ação coletiva, para saber se há alguma regra especial (como no caso dos sindicatos - art. 8º, inc. III, da CF; ou do Ministério Público - art. 129, da CF) que permite presumir a existência de uma relação de substituição processual;
(2) o tipo de ação em trâmite, para definir se há na legislação alguma determinação especial de que o seu ajuizamento atrai, necessariamente, uma relação de substituição processual (como ocorre no mandado de segurança coletivo - art. 22, da lei 12.016/09); e, por fim,
(3) o tipo de direito em discussão (isto é, se consiste em direito difuso, direito coletivo stricto sensu ou direito individual homogêneo), já que a depender da matéria em debate, e dos demais pontos já destacados, se terá, invariavelmente, uma relação de representação processual.
De forma bastante resumida, e com ênfase nas ações mais utilizadas em âmbito tributário (v.g. mandados de segurança e ações ordinárias), assim como nos legitimados que mais se repetem em juízo (v.g. sindicatos e associações civis), podemos sintetizar o entendimento jurisprudencial sobre o assunto a partir da seguinte ilustração:
Extrai-se, do demonstrativo acima, que, quando um sindicato ajuíza uma demanda coletiva sempre haverá uma relação de substituição processual, que poderá produzir efeitos imediatos sobre o grupo substituído pela entidade sindical. Porém, se o autor da ação for outra espécie de legitimado, tal como uma associação civil, será necessário analisar o tipo de ação e/ou de direito em discussão, para se definir se dessa causa decorre uma relação de substituição ou representação processual.
A este respeito, a espécie de ação coletiva com maior privilégio (e que é comumente utilizada em âmbito tributário) é o mandado de segurança coletivo. Afinal, por meio dele, até mesmo associações civis, que não desempenham e/ou têm os mesmos privilégios constitucionais que os sindicatos, podem pleitear direito alheio em nome próprio. Essa máxima, porém, não vale para as ações ordinárias, que, se forem ajuizadas por associações civis, para pleitear direitos individuais homogêneos, como são os direitos de ordem tributária, deverão ter autorização prévia do indivíduo representado processualmente; sendo que os efeitos benéficos da coisa julgada se limitam aos indivíduos que constarem da lista anexa à petição inicial.
Em todo caso, é importante fazer o alerta de que a impetração de mandado de segurança coletivo, para a defesa de interesses de natureza tributária, não pode ser feita por todo e qualquer tipo de associação civil. Isso porque, o STF já se pronunciou no sentido de que as associações genéricas (que não defendem o interesse de uma categoria profissional ou econômica específica) não têm legitimidade para impetrar esse tipo de ação. Daí, então, que a "venda de coisas julgadas", cotidianamente feita por esse tipo de associação, seja uma situação com potencial de gerar significativos imbróglios para os contribuintes que decidirem se filiar a essas entidades. Ainda mais quando essa filiação se dá com a intenção de burlar eventual modulação de efeitos, que tenha sido determinada em julgamento repetitivo, pelo STF ou STJ, tomando por base os contribuintes que tinham decisões provisórias e individuais favoráveis (v.g. Tema repetitivo 1.079/STJ).
A extensão dos efeitos de decisões coletivas (mandado de segurança vs. ações ordinárias)
Fato é que um dos princípios do Direito Processual coletivo é o da extensão subjetiva da coisa. Ou seja, com fulcro no art. 103 do CDC5, a sentença procedente fará coisa julgada erga omnes, beneficiando todas as vítimas do dano discutido e seus sucessores. Ocorre que esta extensão não se aplica à hipótese de mandado de segurança, mas tão somente às ações ordinárias - daí é que surge a cotidiana "venda de coisa julgada".
A lei do mandado de segurança, por meio de seu art. 22, é clara ao dispor que, na hipótese de mandamus coletivo, "a sentença fará coisa julgada limitadamente aos membros do grupo ou categoria substituídos pelo impetrante". Há, portanto, uma vinculação mais restrita da coisa julgada, restando necessário entender qual seria o limite temporal para se tornar "membro do grupo ou categoria" e se beneficiar da decisão transitada.
O STF, por meio do Tema 1.119, definiu que, para o aproveitamento da coisa julgada em mandado de segurança coletivo impetrado por associação de caráter civil, é desnecessária a autorização expressa dos associados, a relação nominal destes, bem como a comprovação de filiação prévia, deixando dúvidas sobre o limite temporal para se associar e beneficiar-se do decisium. Apesar de a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional ter alegado omissão quanto a este ponto, questionando a possibilidade de aproveitamento filiando-se após o trânsito em julgado, o STF, ao julgar os EDs opostos (ARE 1293130 ED/SP), deixou de se pronunciar sobre a desnecessidade de qualquer filiação e/ou que ela pode sobrevir a qualquer tempo, em se tratando de associação coletiva - o que deu maior azo à "venda da coisa julgada".
É que, ao deixar de se pronunciar sobre essa questão, o STF abriu margem à interpretação de que a filiação poderia se dar a qualquer momento, de modo que as associações que obtiverem decisões favoráveis transitadas em julgado, essencialmente em âmbito tributário, são possibilitadas a incentivar a filiação com a venda de créditos tributários, por meio da oferta da coisa julgada. Inclusive, há artigos já publicados, cuja leitura se recomenda6, que se posicionam pela impossibilidade do aproveitamento com filiação posterior ao trânsito em julgado, mas ressalva-se que o STF se omitiu quanto a este quesito.
Possibilidade de suspender a ação coletiva vs. necessidade de desistência (ação ordinária vs. mandado de segurança coletivo)
Por fim, na linha das diferenciações entre as ações ordinárias e os mandados de segurança, importante pontuar que também há tratamento desigual quando se observa a "possível litispendência". Como se sabe, as ações individuais e coletivas não induzem a litispendência, todavia, são impostos limites para que o indivíduo que discute em âmbito individual se beneficie das decisões na seara coletiva.
Quando se trata de ação ordinária individual, deve ser observado o art. 104 do CPC7, que determina que, havendo ação coletiva sobre o tema, para que o indivíduo se beneficie dela, é necessário que ele requeira a suspensão de seu procedimento individual, no prazo de 30 dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva, sob pena de não se beneficiar do que for decidido na tutela coletiva. Nessa hipótese, caso o pedido coletivo for julgado improcedente, pode o indivíduo retomar a sua discussão individual, sem qualquer empecilho.
Diferente, em se tratando de mandado de segurança individual, consoante entendimento do STJ8, não há aplicação do art. 104 do CDC, mas sim do art. 22, §1º da lei do MS9. Este último prevê que, apesar da tutela coletiva e individual não induzirem a litispendência, o indivíduo, em seu mandamus individual, para se aproveitar do que for decidido no coletivo, terá que desistir de seu mandado de segurança, também no prazo de 30 dias, a contar da ciência comprovada da impetração da segurança coletiva. Ou seja, caso o pedido coletivo for julgado improcedente, não poderá o contribuinte retomar a discussão em sua ação individual, de modo que, caso pretenda discutir a matéria, deverá ajuizar outra ação, correndo o risco de já ter sido acometido pela decadência/prescrição.
Para tanto, imprescindível destacar que o ônus de comprovação do início do prazo de desistência do mandamus individual é do Fisco, eis que, consoante Tema 1.119 do STF, o mandado de segurança coletivo pode ser ajuizado sem concordância/anuência do substituído, sendo imaginável que existam ações concomitantes sem que o contribuinte saiba (e, portanto, sem que tenha se iniciado seu prazo de desistência).
Conclusões
Considerando tudo que foi exposto, parece seguro afirmar que, muito embora não haja muitos estudos acadêmicos que se debruçam à pesquisa das tutelas coletivas no âmbito tributário, esta matéria vem, cada vez mais, ganhando espaço nas discussões dos tribunais superiores. Assim como no dia a dia dos contribuintes, que recorrentemente são rendidos às "vendas de coisa julgada".
Percebe-se que a omissão destes tribunais sobre a extensão dos efeitos das decisões coletivas abre margem a esta constante e arriscada oferta, que pode, a qualquer momento, ser questionada - como já foi, por meio da oposição de EDs no Tema 1.119 - pela Fazenda Pública, e definida de maneira desfavorável ao contribuinte pelo STJ e/ou STF.
Por isso, parece razoável que os contribuintes se atentem aos "vendedores de coisa julgada", verificando se de fato estes os representam adequadamente e possuem pertinência temática, mitigando os riscos de eventuais autuações e questionamentos por parte do Fisco. Espera-se que, em breve, os tribunais superiores se pronunciem sobre esta limitação representativa e temporal, pondo um fim (ou, ao menos, diminuindo) a oferta, como "produtos de prateleira", da coisa julgada em ações coletivas na seara tributária.
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1 "Os chamados direitos de terceira geração têm origem na revolução tecnocientífica (terceira revolução industrial), a revolução dos meios de comunicação e de transportes, que tornaram a humanidade conectada em valores compartilhados, A humanidade passou a perceber que, na sociedade de massa, há determinados direitos que pertencem a grupos de pessoas, grupos esses, às vezes, absolutamente indeterminados. Exemplos de direitos de terceira geração: direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito à paz, ao desenvolvimento, direitos dos consumidores" (Teoria Geral dos Direitos Fundamentais - Prof. João Trindade Cavalcante Filho)
2 A primeira previsão expressa do direito coletivo se deu no art. 113, XXXVIII da Constituição de 1934, que foi replicado na Constituição de 1946 e ampliado na de 1988. Infraconstitucionalmente, a legislação pioneira que tutelou, de fato, o direito coletivo, foi o Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/1992), que é utilizado até os dias atuais como base para a regulamentação deste direito. Após, sobrevieram outras legislações, como é o caso da Lei do Mandado de Segurança (Lei n.º 12.016/2009), que, apesar de posteriores, não trouxeram alterações nos conceitos definidos por meio do CDC.
3 A título exemplificativo, Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. compreendem que a matéria tributária consiste em direito coletivo stricto sensu, já que os contribuintes são um "grupo de pessoas ligadas ao ente estatal responsável pela tributação" (Curso de Direito Processual Civil - Processo Coletivo. Vol. 4. 17ª Edição. Cap. 2. Ed. JusPodium. 2023. Pg. 113)
4 "É o que ocorre com as pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados (parágrafo único do art. 1º da Lei 7.347/1985)." (RE 643.978 / SE, Relator.: ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 09/10/2019, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 25/10/2019)
5 Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada:
I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81;
II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81;
III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.
6 Mandado de segurança coletivo: alcance subjetivo da coisa julgada.
7 Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.
8 STJ - AgInt no REsp: 1926280 RN 2021/0067601-1, Data de Julgamento: 13/02/2023, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 16/02/2023
9 § 1o O mandado de segurança coletivo não induz litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada não beneficiarão o impetrante a título individual se não requerer a desistência de seu mandado de segurança no prazo de 30 (trinta) dias a contar da ciência comprovada da impetração da segurança coletiva.
Clara Arruda de Mello Guimarães
Bacharelanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, integrante do escritório Sacha Calmon - Misabel Derzi, Consultores e Advogados, e pesquisadora do Grupo de Pesquisa de Processo Tributário do IBDT Jovem.