CND e a recuperação judicial: um equilíbrio estratégico entre a preservação da empresa e o crédito tributário
A jurisprudência dos tribunais tem oscilado entre a defesa da preservação da empresa e a garantia do crédito tributário, refletindo a complexidade e a importância desse tema, exigindo uma análise cuidadosa de cada caso concreto, ponderando os interesses em jogo e buscando a solução que melhor atenda ao interesse público.
terça-feira, 1 de abril de 2025
Atualizado em 31 de março de 2025 16:00
O presente tema já sofreu inúmeras alterações e ainda está nos "holofotes" dos Tribunais do Brasil ante a incerteza que vivemos no país. A exigência da Certidão Negativa de Débitos (CND) para a concessão da recuperação judicial (RJ) sempre representou um ponto de tensão no direito tributário brasileiro, materializando um conflito entre dois princípios constitucionais de igual importância, porém, por vezes, colidentes - Se assim podemos dizer. De um lado, a Lei nº 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial e Falências - LRF) assevera ante o direito à crise o princípio da preservação da empresa como forma de manter empregos, fomentar a atividade econômica, garantir o cumprimento da sua função social e estimular a livre iniciativa, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, IV, da Constituição Federal). Por outro lado, o Código Tributário Nacional (CTN) historicamente manteve a obrigatoriedade da CND, visando garantir a arrecadação, o tratamento isonômico entre os contribuintes (evitando a concorrência desleal de devedor contumaz), o cumprimento das obrigações fiscais e a sustentabilidade das políticas públicas, assegurando a capacidade do Estado de prover serviços essenciais à sociedade.
Inicialmente, o STJ reconheceu que a exigência da CND poderia inviabilizar a recuperação das empresas em dificuldades financeiras, entretanto, o STF, através do Ministro Luiz Fux, reacendeu a discussão ao sinalizar a necessidade da CND como requisito para a concessão da RJ após a aprovação do plano. O ápice desse novo entendimento reside na análise da proporcionalidade e na superação do óbice pela lei 13.043/14, que instituiu um regime de parcelamento específico para empresas em recuperação judicial, pois, conforme entendimento do Ministro Fux, o afastamento da exigência da CND pelo STJ carecia de fundamento após a edição dessa lei, que, em tese, ofereceria condições facilitadas para o pagamento dos débitos tributários, preservando a necessidade da CND como forma de assegurar o cumprimento das obrigações fiscais.
Nesse contexto, o regime de parcelamento é, de fato, suficiente para viabilizar a recuperação das empresas, considerando a sua situação econômica e financeira? Ainda, se a exigência da CND continua a ser um obstáculo insuperável, impedindo a reestruturação da empresa e a sua continuidade, o que poderia ser o chamado "meio termo"?.
É inequívoco que, não mais depender de PAES/PAEX e demais planos de parcelamento do governo, tornou a transação tributária uma ferramenta crucial e interessante para conciliar os interesses da empresa em recuperação e da Fazenda Pública, representando uma alternativa negocial que busca cenários mais constantes entre a cobrança integral dos débitos e a preservação da empresa. A lei 13.988/20 e a Portaria PGFN 6757/22 (atualizada pela Portaria PGFN 1457/24) permitem a negociação dos débitos tributários, com descontos que podem chegar a 70% de juros e multa e parcelamento em 145 meses, dependendo da capacidade de pagamento do contribuinte (classificada em A, B, C e D). A supramencionada classificação (CAPAG) considera diversos fatores, como o grau de recuperabilidade dos créditos (avaliando a probabilidade de efetivo recebimento dos valores), o histórico de adimplência do contribuinte (verificando o seu comportamento em relação ao cumprimento das obrigações tributárias) e a sua situação econômica e patrimonial (analisando os seus ativos, passivos, receitas e despesas) - Literalmente é um "raio X do caixa" da empresa.
As empresas em recuperação judicial podem se beneficiar da transação tributária, desde que atendam aos requisitos legais, demonstrando a sua real necessidade e a viabilidade do plano de recuperação. A negociação dos débitos pode permitir a obtenção da CND, viabilizando a concessão da RJ e a continuidade das atividades empresariais, com a manutenção dos empregos e a geração de renda. A Portaria PGFN 1457/24 estabelece limites à transação, como a vedação à redução do montante principal do crédito (preservando o valor original da dívida), a restrição ao uso de prejuízos fiscais (limitado a 70% do saldo remanescente, visando evitar a utilização excessiva desse benefício) e a necessidade de comprovação da capacidade de pagamento do contribuinte (garantindo que a empresa terá condições de cumprir o acordo).
Em um cenário hipotético, uma empresa com uma dívida tributária de R$30 milhões e prejuízo fiscal de R$10 milhões poderia propor ao Fisco um desconto de 65%, logo, a dívida cairia para R$10,5 milhões de reais. O uso do prejuízo fiscal está limitado a 70% desse valor remanescente, ou seja, poderia abater mais R$7,35 milhões de reais dos R$10,5 milhões. Assim, a empresa já abatendo desconto e prejuízo fiscal teria um valor remanescente de R$3,15 milhões de reais a pagar. Tal valor, hipoteticamente, parcelado em 145 vezes apenas a título de exemplo impactaria a parcela mensal no caixa de R$21,724 mil reais. Essa negociação, embora complexa, pode viabilizar a recuperação da empresa, respeitando os limites legais e os interesses da Fazenda Pública.
Ao falarmos de prejuízo fiscal, sempre devemos lembrar que a utilização dos créditos de prejuízo fiscal extingue os débitos sob condição resolutória de sua ulterior homologação. O que isso significa? A resposta é, se o Fisco identificar alguma irregularidade na utilização dos créditos, como por exemplo, fraude, simulação ou erro, poderá cancelar a transação e cobrar a dívida integralmente, acrescida de juros e multas, sujeitando a empresa a um processo administrativo ou judicial.
A Portaria PGFN 2383/21 detalha o processo da transação da RJ, estabelecendo um rito específico e exigindo a apresentação de diversos documentos. O requerimento é feito online, pelo portal REGULARIZE da PGFN, de forma acessível e transparente. A documentação exigida varia conforme o andamento da RJ: se o processamento já foi deferido, exige-se cópia da petição inicial, o valor dos débitos (sujeitos e não sujeitos à recuperação), a identificação do administrador judicial e a decisão de deferimento. Por outro lado, e não menos importante, se o processamento ainda não foi deferido, a documentação é mais simples, mas, em ambos casos a empresa deve firmar um termo de compromisso, assumindo obrigações como fornecer informações detalhadas, não utilizar a negociação de forma abusiva (como para obter vantagens indevidas sobre concorrentes), não ocultar informações relevantes e manter a regularidade no FGTS, demonstrando o seu compromisso com o cumprimento das obrigações sociais.
Adicionalmente, caso queira incluir débitos sob discussão judicial, a empresa deve desistir expressamente das ações e recursos, renunciando a qualquer alegação de direito sobre a matéria, demonstrando a sua intenção de resolver a questão de forma definitiva. Outro detalhe é que, para o pagamento à vista, é possível utilizar créditos líquidos e certos em desfavor da União, reconhecidos em decisão judicial transitada em julgado, ou precatórios federais, conforme o Capítulo VIII da Portaria PGFN n° 6.757/2022, representando uma forma de compensação de créditos e débitos com a União com deságios que podem alcançar até 50% a 70%, dependendo do preço do precatório adquirido para fazer frente a dívida.
Por fim, a segurança jurídica ou a previsibilidade dos atos da administração pública de maneira célere e eficiente validariam a transação tributária, sendo portanto, instrumento crucial, em linha com os princípios constitucionais da celeridade e da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal), evitando a demora excessiva na análise dos pedidos e garantindo uma decisão justa e fundamentada para empresa ante sua real condição financeira. A demora na análise (acima de 30 dias) e a imposição de condições onerosas podem inviabilizar a recuperação da empresa, frustrando o objetivo da lei e prejudicando a economia, com a perda de empregos e a redução da arrecadação futura - Isso não seria um "meio termo". Contudo, o pedido em si da transação antes do pedido de RJ seria uma demonstração de boa-fé da empresa para a dispensa de apresentação de CND para "validar" o pedido de RJ, sendo certo que, o pedido de transação sem a devida análise no prazo de 30 dias (artigos 48 e 49 da Lei que regula o Processo Administrativo Federal) justificaria o meio termo e dispensa de CND para o juiz conceder a Recuperação Judicial. No cenário prático brasileiro de "administrar o caos" buscarmos um equilíbrio entre a preservação da empresa e a garantia do crédito tributário é necessário para abordagem pragmática e eficiente, permitindo que a transação tributária seja um instrumento eficaz para a superação da crise e a retomada do crescimento econômico, sem comprometer a arrecadação tributária e a justiça fiscal. A jurisprudência dos tribunais tem oscilado entre a defesa da preservação da empresa e a garantia do crédito tributário, refletindo a complexidade e a importância desse tema, exigindo uma análise cuidadosa de cada caso concreto, ponderando os interesses em jogo e buscando a solução que melhor atenda ao interesse público.
Artur Ricardo Ratc
Advogado na Ratc & Gueogjian Advogados.