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Inconstitucionalidade da lei Federal 15.109/25 que posterga o pagamento de custas nas cobranças de honorários advocatícios

A lei Federal 15.109/25, ao postergar o pagamento de custas nas ações de cobrança de honorários, viola a autonomia do Judiciário, infringindo a CF.

segunda-feira, 31 de março de 2025

Atualizado às 11:03

Justiça é fazer a coisa certa. A frase inicial remete à obra1 best-seller do professor Michael J. Sandel da Universidade de Harvard. O livro trata de desafio de mediar conflitos abordados em seus capítulos - casamento entre pessoas do mesmo sexo, suicídio assistido, aborto, imigração, impostos, o lugar da religião na política, os limites morais dos mercados - e propõe como uma abordagem mais segura da filosofia pode nos ajudar a entender a política, a moralidade e também a rever nossas.

É como pretendo abordar a (in)constitucionalidade da lei Federal 15.109/25, que posterga o pagamento de custas nas cobranças de honorários pelo advogado.

Nessa quadra de século, quando o dissenso polariza opiniões a parece afastar as pessoas de qualquer consenso, a certeza que temos é que os conflitos jurídicos devem encontrar sua solução na centralidade da CF e na ubiquidade de suas normas, que garantiu, no mais longevo período democrático, a solução de crises das mais diversas matizes pela atuação firme da Justiça. Justiça, além de fazer a coisa certa, é também um Poder da República, o Judiciário, responsável pela pacificação dos conflitos sociais, por isso a CF lhe deu autonomia ante a outros poderes no art. 2º e art. 99. 

O art. 2º estabelece que os poderes são independentes e harmônicos entre si, enquanto o art. 99 determina que ao Judiciário deve ser assegurada autonomia administrativa e financeira. Isso inclui a liberdade para propor gerir seu orçamento e estruturar sua organização interna, sem interferências, exceto apenas de a proposta orçamentária estiver em desacordo com a LDO - Lei de Diretrizes Orçamentárias, conforme §§1º e 4º do art. 99, o que não é o caso. 

Eis a raiz do problema. Segundo o art. 98, § 2º, "as custas e emolumentos serão destinados exclusivamente ao custeio dos serviços afetos às atividades específicas da Justiça". São um tributo que garantem a manutenção da autonomia do Poder Judiciário, que agora, com a perda de receita, sem a respectiva compensação, ficará à mercê do Poder Executivo para suplementar seu orçamento (art. 99, §5º, da CF), o que dependerá de relações políticas, e não mais de regras jurídicas constitucionais obrigatórias já postas.  

A lei surgiu do projeto de lei 8954, de 2017, de iniciativa parlamentar, com os seguintes fundamentos:

...em determinados processos, as partes se recusam a pagar os honorários de advogado, o que obriga o profissional a ingressar com nova ação, a fim de receber o que lhe é devido. De acordo com legislação em vigor, ao proceder à cobrança de seus honorários, o advogado fica obrigado a pagar as custas processuais, o que lhe acarreta prejuízos indevidos, uma vez que tal procedimento decorre da desídia da parte descumpridora de suas obrigações legais. Para afastar essa injustiça, torna-se necessário modificar a norma vigente, isentando o advogado de pagar custas processuais que decorram da execução de honorários advocatícios, de forma a restabelecer o equilíbrio das relações processuais

A lei 15.109, de 2025, acresceu ao art. 82 do CPC o § 3º, nos seguintes termos:

"§ 3º Nas ações de cobrança por qualquer procedimento, comum ou especial, bem como nas execuções ou cumprimentos de sentença de honorários advocatícios, o advogado ficará dispensado de adiantar o pagamento de custas processuais, e caberá ao réu ou executado suprir, ao final do processo, o seu pagamento, se tiver dado causa ao processo."     

No entanto, uma lei processual, que é competência da União (art. 22, I, da CF) revogou o momento de pagamento de custas e taxas judiciárias, matéria tributária, pela lei estadual 9.507, de 8/12/21, que alterou a lei estadual 3.350, de 29/12/1999, evidenciando o primeiro conflito com a lei maior.

Embora nobres os motivos, a generalização da norma aprovada pecou por desconsiderar também a capacidade contributiva (art. 145, §1º, da CF), a limitação ao poder de tributar da União sobre os Estados (art. 151, III, da CF) e a iniciativa privativa do Poder Judiciário (art. 93, art. 96, II, e art. 99, §1º, da CF).

Com efeito, não são todos os advogados que não podem recolher custas e não são todas as partes que não têm capacidade de pagar honorários. Não se ignora a análise econômica do Direito, em que tomo por referência o ensaio da professora Luciana Yeung2, a necessidade de aperfeiçoar o Poder Judiciário - como qualquer outra instituição - e sua convivência com a Justiça multiporta, que, em breve resumo, são os meios alternativos de solução de conflitos. 

Com relação a capacidade contributiva mencionada nas razões legislativas do projeto de lei, a ADIn 3629, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, que bem aborda, com a competência que é peculiar ao ministro, as limitações acima:

EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei 933/2005, do Estado do Amapá, de origem parlamentar. Concessão de isenção de taxa judiciária para pessoas com renda de até dez salários-mínimos. 3. Após a EC 45/2004, a iniciativa de lei sobre custas judiciais foi reservada para os órgãos superiores do Poder Judiciário. Precedentes. 4. Norma que reduz substancialmente a arrecadação da taxa judiciária atenta contra a autonomia e a independência do Poder Judiciário, asseguradas pela Constituição Federal, ante sua vinculação ao custeio da função judicante. 5. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. (ADI 3629, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 03-03-2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-065 DIVULG 19-03-2020, PUBLIC 20-03-2020)

Dela extraem-se os respectivos trechos:

"A primeira alegação de inconstitucionalidade a ser examinada é de ordem formal, referente à reserva de iniciativa do Tribunal de Justiça quanto à matéria, uma vez que o ato teve origem parlamentar

Registro que a legislação impugnada trata de benefício inteiramente independente do previsto no art. 98 do Código de Processo Civil (A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei). 

O caso dos autos, na verdade, configura hipótese de isenção para pagamento de custas processuais àqueles que não preenchem os requisitos para a concessão da justiça gratuita. 

(...)

A Emenda Constitucional 45/2004, cognominada de "Reforma do Judiciário", entre outras relevantes disposições, acrescentou o parágrafo 2º ao artigo 98 da CF, determinando que "as custas e emolumentos serão destinados exclusivamente ao custeio dos serviços afetos às atividades específicas da Justiça". Elevou-se assim, ao nível constitucional, a vinculação do produto da arrecadação ao custeio do serviço público prestado. 

Efetivamente, da conjugação dos três dispositivos, percebe-se uma incongruência na atribuição a um outro Poder - o Legislativo - da capacidade de determinar a dimensão financeira da taxa - as custas judiciais - relativa ao serviço prestado pelo Poder Judiciário. A prestação jurisdicional, entregue pelos órgãos judiciais segundo o planejamento e a execução do Tribunal de Justiça do Estado, terá seu custo estimado - e dimensionado - por esse órgão, que apresentará, em sua proposta orçamentária, a demanda financeira para cobri-lo. Os recursos para tal provêm tanto da receita dos impostos, alocada segundo a discrição parlamentar, como da previsão de arrecadação da taxa judiciária, necessariamente vinculada, pela nova norma, a tal prestação."

Ou seja, apesar de ser legítima a disciplina da União a respeito do alcance do benefício da gratuidade de justiça, não há suporte constitucional para lei Federal que imponha condicionantes para a percepção, pelo Estado, das custas e da taxa judiciária, tributos de sua exclusiva competência de forma que a lei Federal deverá ser aplicada apenas e tão somente na esfera da Justiça Federal e não na estadual.

Por fim, diga-se que há manifesta inconstitucionalidade na lei por violação ao princípio da isonomia, e não somente tributária. Isso porque a norma em tela privilegia categoria profissional específica, sem que haja qualquer razão plausível, em discriminação odiosa aos outros profissionais liberais e demais indivíduos que não façam jus à gratuidade de justiça, os quais continuam obrigados ao recolhimento prévio de tais valores e mais, sem qualquer previsão orçamentária ou de impacto no erário alheio.

Nesse ponto, registre-se que no julgamento da ADIn 3.260 o STF concluiu que "viola a igualdade tributária [...] lei que concede isenção de custas judiciais a membros de determinada categoria profissional pelo simples fato de a integrarem".

Não fosse suficiente, julgando a ação direta de inconstitucionalidade 6.859 - Rio Grande do Sul, o ministro Luís Roberto Barroso expressamente declarou:

9. Vício de iniciativa e violação à igualdade tributária. Esta Corte decidiu que, após a Emenda Constitucional nº 45/2004, a concessão de isenção de taxa judiciária é matéria de iniciativa reservada aos órgãos superiores do Poder Judiciário (ADI 3.629, Rel. Min. Gilmar Mendes).

10. Sobre o tema, este Tribunal também já decidiu que viola a igualdade tributária lei que concede isenção de custas judiciais a membros de determinada categoria profissional pelo simples fato de a integrarem (ADI 3.260, Rel. Min. Eros Grau).

11. Ação conhecida parcialmente e, nessa parte, pedidos julgados parcialmente procedentes, para declarar a inconstitucionalidade do art. 10 da Lei nº 15.232/2018. Tese de julgamento:

"1. Não viola a competência privativa da União lei estadual que dispõe sobre a recomposição de saldo de conta de depósitos judiciais. 

2. É inconstitucional norma estadual de origem parlamentar que concede isenção a advogados para execução de honorários, por vício de iniciativa e afronta à igualdade".

O Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que as custas judiciais têm natureza tributária (ADI 2.211, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 20.09.2019) e, nesse sentido, já decidiu que "[o]s Estados-membros também detêm competência para legislar sobre custas e emolumentos das serventias extrajudiciais nos limites de sua extensão territorial" (ADI 3.260, Rel. Min. Eros Grau, j. em 29.03.2007).

E, prossegue o ministro relator em seu voto na ADIn acima mencionada afirmando que:

No entanto, esta Corte também decidiu que, após a Emenda Constitucional nº 45/2004, a concessão de isenção de taxa judiciária é matéria de iniciativa reservada aos órgãos superiores do Poder Judiciário (ADI 3.629, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 03.03.2020).

O art. 10 da Lei nº 15.232/2018 tem origem em emenda parlamentar aposta a projeto de lei apresentado pelo Poder Executivo (Projeto de Lei nº 137/2018). Por esse motivo, com base em julgado recente do Plenário desta Corte, concluo que houve vício formal de iniciativa na sua elaboração.

E, não se diga que existe diferença entre conceder isenção e postergar o recolhimento dos emolumentos na medida em que em ambas as situações o erário deixa de arrecadar e, segundo a norma legal agora promulgada, acaba por causar uma situação de prejuízo definitivo ao Poder Público nas ocasiões em que o réu não tiver patrimônio para responder pela dívida acabando a lei, assim, por transferir o encargo que é da parte, para o erário público estadual e, no caso do Rio de Janeiro, onde as custas e taxa judiciária são arrecadas pelo Tribunal de Justiça, causando impacto direto e enorme no planejamento orçamentário do Poder Judiciário. 

A isenção das custas e emolumentos não atentou para a responsabilidade fiscal. Isso porque, o art. 14, I e II da LRF reza que  a renúncia "estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição" e também " se a renúncia de receita foi "considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias", nesse caso, a lei de âmbito dos Estados malferida pela lei Federal. 

De mais a mais, ad argumentandum tantum, a CF/88 previu a substituição tributária para o imposto do ICMS (art.150, §7º, da CF)3. É verdade que não há previsão para o diferimento de custas ou taxas. Mas, por amor ao debate o que quero destacar é que, na substituição antecedente, concomitante e subsequente, há sempre o pagamento por terceiro eleito pela lei como substituto, o que não aconteceu com a lei 15.109, de 2025, deixando o Judiciário à mercê de suplementações orçamentárias, que não dependem de decisão dos presidentes dos Tribunais. 

LOMAN - Lei Orgânica da Magistratura, recepcionada como o Estatuto da Magistratura (art. 93, da CF)4, prevê no seu art. 35, VII, o dever do magistrado de "exercer assídua fiscalização sobre os subordinados, especialmente no que se refere à cobrança de custas e emolumentos, embora não haja reclamação das partes".

Assim, embora reconheça a boa intenção da lei 15.109, de 2025, é dever da magistratura, seja pelo princípio do republicanismo ou pela defesa do Estado Democrático de Direito, zelar pelo recolhimento de custas e taxa judiciária, dever do magistrado, diante da afronta ao texto maior. Se não fosse o vicio de iniciativa, a lei 15.109, 2025, precisaria de uma declaração de nulidade, sem redução de texto, num controle concentrado de constitucionalidade5, pois a sua redação atenta contra a harmonia dos Poderes e independência do Judiciário. 

Ademais, necessário salientar que a norma em tela se refere exclusivamente a custas, não encampando expressamente a taxa judiciária que, portanto, deve ser antecipadamente recolhida nos termos do caput do art. 82 do CPC.

Mesmo que se considere que a expressão deve ser entendida lato sensu, na situação o que se tem é que, no âmbito da Justiça Estadual, a União Federal está se imiscuindo em espécie tributária cuja competência não é sua afrontando o pacto federativo.

De fato, ainda que a norma em questão não isente o advogado do pagamento por completo, que deverá ser realizado ao final, se não lograr êxito o causídico na ação, não há dúvidas de que a sua aplicação acarreta a não percepção de receitas por parte do ente público estadual em tempo oportuno e legalmente previsto, cumprindo ressaltar que, nos termos da inovação legislativa, se o advogado lograr êxito na demanda não pagará as custas, que também não serão pagas pelo vencido, se este não tiver condições de fazê-lo.

Ou seja, a lei em tela transfere o ônus do pagamento do advogado (às vezes um grande escritório) para terceiro, o que na prática pode sim representar uma isenção definitiva do pagamento a que o profissional do direito estava obrigado a realizar, como os demais profissionais de outros ramos.

Portanto, entende-se que ocorre no caso infringência ao disposto no art. 151, III, da CF/88 o que acarreta como consequência direta que o magistrado, no exercício do controle difuso de constitucionalidade, reconheça a inconstitucionalidade da lei 15109/25 e deixe de aplicá-la devendo o autor proceder ao recolhimento das custas processuais e taxa judiciária, sob pena do cancelamento da distribuição, na forma o art. 290 do CPC.

___________

1 SANDEL, Michael J. Justiça - O que é fazer a coisa certa / Michael J Sandel; [tadução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. 23ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2017.

2 Menos litigância, mais justiça. Acesso em 28/03/2025

3 Diferimento e suspensão do ICMS, mais semelhanças que diferença.  Acesso em 29/03/2025

4 Projeto de Lei Complementar PLP 144/1992, de autoria do STF, que dispõe sobre o Estatuto da Magistratura tramita na Câmara dos Deputados

5 Além dos legitimados tradicionais como as associações de classe de âmbito nacional, apenas a título de exemplo em âmbito federal, a Advocacia-Geral da União defende direitos e prerrogativas do Poder Judiciário, da Defensoria Pública e do Ministério Público. Cf. Acesso em 29/03/2025.

Mauro Nicolau Junior

Mauro Nicolau Junior

Juiz de Direito titular da 48ª Vara Cível do Rio de Janeiro

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