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A retórica acusatória como veneno da presunção de inocência

A matéria discute como a retórica acusatória afeta a presunção de inocência, comprometendo a imparcialidade do juiz e exigindo uma reflexão crítica sobre práticas no processo penal.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Atualizado às 13:14

O processo penal brasileiro tem como base constitucional o devido processo legal - princípio fundamental que garante, durante toda a persecução penal, o respeito às garantias individuais frente ao poder punitivo do Estado. Dentre essas garantias, destaca-se a presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII), cujo escopo é impedir que alguém seja tratado como culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Em torno desse princípio, desenvolveu-se um sistema de proteções processuais e materiais para coibir abusos e preservar a imparcialidade do juízo. Trata-se de uma conquista civilizatória, fruto da lenta e dolorosa evolução.

Porém, entre a clareza normativa e a obscuridade do cotidiano forense, abre-se um abismo perturbador. E é nesse precipício que se insinua, como um veneno silencioso e implacável, a mais insidiosa adversária da presunção de inocência: a denúncia retórica.

Referimo-nos àquela peça acusatória que, ao se distanciar da necessária objetividade técnico-jurídica, converte-se em um nocivo espetáculo argumentativo - uma arena onde adjetivações excessivas e juízos morais precipitados imprimem suas marcas na consciência de quem a examina.

Faz-se necessária uma reflexão meticulosa e profunda acerca desta questão de suma gravidade.

Ora, é através da denúncia que o magistrado trava seu primeiro contato com o drama penal que se anuncia. É dela que extrai a primeira percepção sobre o acusado e os fatos que lhe são imputados. Essa impressão inicial, ainda que inconscientemente, condiciona o espírito do julgador. Não por vício ético ou deformidade moral, mas pela própria estrutura da mente humana, cuja arquitetura impõe limites severos à completa neutralidade, filtrando a realidade através da lente subjetiva, que geralmente é intensificada pelas primeiras experiências.

Neste cenário, o Direito, confrontado por seus próprios limites, precisa travar um diálogo corajoso com a Filosofia para compreender o fenômeno em sua profundidade.

Merleau-Ponty, em sua Fenomenologia da Percepção, revela-nos com clareza desconcertante que toda percepção humana é inevitavelmente condicionada pela subjetividade. Não há neutralidade na percepção humana. Não vemos o mundo como ele é, mas como somos capazes de percebê-lo, condicionados por nossos valores, experiências e construções intelectuais. Daqui, avançamos com David Hume, cuja distinção entre impressões e ideias desnuda com precisão implacável o impacto decisivo da primeira impressão sobre o espírito humano. As primeiras impressões são vívidas e intensas, fixando-se profundamente na consciência. Elas se tornam âncoras quase impossíveis de remover - marcas indeléveis que condicionam, de maneira praticamente irreversível, o julgamento posterior.

Transpostas essas reflexões ao âmbito do processo penal - onde o magistrado é, antes de tudo, um ser humano sujeito aos próprios filtros cognitivos e vulnerável ao impacto decisivo das primeiras impressões -, evidencia-se que é por meio da denúncia que se imprime a primeira imagem mental sobre o acusado.

Com efeito, quando a peça está impregnada de adjetivações e juízos morais prévios, atua como uma poderosa impressão inicial. Quase indelével, essa impressão condiciona, muitas vezes de maneira irreversível, a consciência do julgador, impondo-lhe uma visão antecipada e enviesada da culpabilidade.

A questão vai além. Estudos científicos na área da neuropsicologia mostram claramente que o cérebro tende a usar atalhos e simplificações para processar informações. A denúncia retórica, combinada à sobrecarga habitual do ambiente forense, fornece exatamente esse atalho: uma narrativa pronta, um "esqueleto" interpretativo já estruturado, ao qual a instrução penal tende a acrescentar somente "músculos e órgãos".

Sob essa ótica, a defesa encontra-se diante de um desafio muito maior do que simplesmente contestar uma acusação técnica e formal. Ela precisa desconstruir uma narrativa já solidificada na mente do julgador, uma percepção prévia que, por sua própria natureza, tende a resistir fortemente a qualquer argumentação contrária.

As denúncias retóricas tornaram-se uma prática recorrente no processo penal, assumindo uma normalidade preocupante. Este fenômeno representa um grave desvio funcional que compromete profundamente o andamento e a integridade do processo. De um lado, lança sobre o Ministério Público a inevitável sombra da suspeição, pois o excesso retórico revela, além da falta de compromisso com a objetividade legal, uma perigosa infiltração de convicções pessoais no exercício institucional da acusação. Por outro lado, pode aprisionar inadvertidamente a consciência do magistrado, que, mesmo sem intenção, correrá o risco de conduzir o processo sob o peso invisível daquela primeira impressão acusatória, cristalizada e contaminada pela retórica inicial.

Acusar é um ofício que exige saber, sobretudo, acusar. E saber acusar é fazê-lo presumindo a inocência daquele que se acusa. Não há nisso paradoxo algum; ao contrário, é justamente essa aparente contradição que revela a essência lógica do diálogo entre o princípio constitucional da presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII) e o art. 41 do CPP.

Nosso sistema processual penal contempla a denúncia narrativa - aquela na qual a acusação se limita à exposição objetiva dos fatos e suas circunstâncias essenciais, na clareza cristalina que possibilitará a instrução. Foi esta denúncia narrativa que o legislador concebeu como marco inicial do processo penal. Pois, acusar narrando fatos, despido de juízos antecipados, demonstra, antes de tudo, o compromisso ético fundamental que separa a civilização penal da barbárie punitiva.

denúncia retórica é expressão eloquente da inclinação humana ao julgamento precipitado. É uma perturbadora reminiscência da barbárie primitiva infiltrada na delicada arquitetura da nossa civilização jurídica. Mais que um desvio técnico, representa uma forma refinada e sutil do antigo impulso de condenar sem julgar, de punir sem demonstrar - um eco sofisticado, porém igualmente pernicioso, daquele tempo sombrio em que a justiça não se distinguia claramente da vingança.

As alegações finais constituem o momento processual adequado para a acusação desenvolver uma argumentação mais contundente. Ainda assim, mesmo nesta fase, impõe-se o respeito à presunção de inocência como norte inafastável: cada palavra deve ser escolhida com precisão cirúrgica, preservando a dignidade do acusado e mantendo estrita aderência ao conjunto probatório construído durante a instrução.

É fundamental que o sistema de justiça penal se volte, com seriedade, ao controle rigoroso da denúncia. É necessidade urgente. Tanto o Ministério Público, ao elaborá-la, quanto o magistrado, ao apreciá-la para fins de recebimento, devem exercer esse controle de maneira incisiva, crítica e consciente.

Somente com esse rigor - que não é favor ao réu, mas imposição constitucional - será possível assegurar um julgamento justo, livre de pré-julgamentos e construído sobre provas produzidas sob o crivo do contraditório.

Não se pode olvidar que a presunção de inocência é um mecanismo para proteger o processo penal das armadilhas cognitivas das primeiras impressões. Exige-se, por isso, que julgador e acusação abandonem posturas herméticas e cultivem uma humildade intelectual permanente, capaz de sustentar a dúvida e reconhecer a plausibilidade de outras versões dos fatos.

Presumir alguém inocente é desconfiar, inclusive, daquilo que os próprios olhos acreditam ver, compreendendo que o processo não revela fatos brutos, mas narrativas em disputa entre quem acusa, defende e julga. O Direito não determina essa postura ética por si só. No entanto, proporciona institutos e garantias que funcionam como guias objetivos, direcionando a conduta humana pelo único caminho aceitável no processo penal civilizado. Nesse percurso, combater a denúncia retórica com rigor é imperativo técnico e moral. Trata-se da única barreira eficaz contra a perversão do processo penal em simulacro de justiça e antecipação disfarçada de culpa.

Wesley Souza de Andrade

VIP Wesley Souza de Andrade

É advogado desde 1998, formado pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió - CESMAC. Atualmente, é Conselheiro Estadual da OAB/AL.

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