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Diálogo de fontes: A aplicação da lógica da recuperação judicial ao superendividado

Por que empresas têm pausa para se reerguer e pessoas físicas não? Este artigo revela a urgência de aplicar o mesmo tratamento ao consumidor superendividado.

segunda-feira, 31 de março de 2025

Atualizado às 13:12

A lei de recuperação judicial (lei 11.101/05) estabelece, como uma de suas engrenagens centrais, a suspensão das ações e execuções individuais contra a empresa em recuperação. É o famoso "stay period" de 180 dias, previsto no art. 6º. Não se trata de um capricho legislativo ou de uma benesse gratuita.

Esse dispositivo nasceu de uma lógica econômica e jurídica muito clara: sem parar o ataque individual, não há espaço para construção coletiva. O processo de recuperação, por definição, exige tempo, estabilidade e previsibilidade. Permitir que cada credor atue isoladamente significa minar a própria razão de ser da recuperação. Por isso, a suspensão é automática. Basta o deferimento do processamento da recuperação judicial para que todo o sistema de cobrança seja interrompido.

Essa suspensão não é uma proteção da empresa pelo simples fato de ser pessoa jurídica. O que se protege é a função social da atividade econômica, o emprego, a continuidade de contratos e, sobretudo, o interesse coletivo dos credores, que só terão alguma chance de receber se o todo for preservado.

A empresa é tratada como organismo vivo, que precisa ser estabilizado antes de ser reestruturado. O Poder Judiciário, ao suspender as execuções, não protege o inadimplemento. Ele protege a reconstrução.

Se essa é a lógica do sistema - e é uma lógica sólida - então por que ela não é aplicada à pessoa natural superendividada? A partir do momento em que se reconhece a existência de um estado de superendividamento, caracterizado pelo comprometimento da capacidade de pagamento do devedor de boa-fé, deveria ser automático o reconhecimento de sua necessidade de reorganização financeira.

O processo de reestruturação de dívidas de uma pessoa natural, embora não utilize a terminologia empresarial, carrega exatamente a mesma essência da recuperação judicial: reequilibrar o passivo, garantir a dignidade do devedor e preservar sua função social (que, no caso da pessoa física, se expressa no sustento próprio e familiar, na manutenção de vínculos sociais e no acesso ao crédito saudável).

O que se vê, no entanto, é uma contradição grave do sistema jurídico. O consumidor superendividado tenta reestruturar suas dívidas, mas se vê cercado por execuções, bloqueios, penhoras e leilões. Ele é estimulado pela lei a formular um plano global de pagamento, mas ao mesmo tempo impedido de fazê-lo porque os credores mais rápidos levam antes o que resta do seu patrimônio.

Essa situação gera um paradoxo: exige-se do consumidor um plano de pagamento realista, mas não se oferece a mínima condição material para que esse plano seja formulado. A estrutura jurídica, em vez de proteger o reequilíbrio, permite o esfacelamento.

Nesse contexto, a suspensão das ações e execuções individuais contra o consumidor superendividado não pode ser tratada como uma faculdade. Deve ser compreendida como uma consequência lógica da constatação da sua situação crítica. O reconhecimento do estado de superendividamento, seja pelo magistrado, seja por órgãos públicos especializados (como procons, defensorias e Ministério Público), deve ser suficiente para paralisar, de forma imediata e integral, todos os atos de cobrança judicial e extrajudicial.

Essa suspensão não é um benefício ao devedor. É uma medida de equilíbrio do sistema. Ao suspender as execuções, evita-se que os credores mais agressivos sejam premiados e que os credores cooperativos sejam prejudicados. Garante-se a igualdade entre os credores e, mais do que isso, a própria viabilidade de pagamento.

Afinal, ninguém recebe de quem já foi exaurido. A preservação da fonte de renda e do mínimo existencial do devedor é, paradoxalmente, o único caminho realista para que os credores venham a receber. O que se protege, portanto, é o próprio crédito, mas de forma ordenada e compatível com os princípios constitucionais.

O direito do consumidor, especialmente na sua vertente coletiva e preventiva, deve dialogar com as estruturas protetivas do direito empresarial, justamente para corrigir assimetrias históricas. O que se percebe, ao longo dos anos, é que o sistema jurídico brasileiro desenvolveu uma teia densa e complexa de proteção à empresa em crise, mas se manteve praticamente omisso diante da crise da pessoa física.

O advento do superendividamento de massas, alimentado por crédito irresponsável, marketing agressivo e produtos financeiros predatórios, exige uma mudança de postura. O consumidor endividado, quando busca ajuda, não está fugindo da responsabilidade. Está pedindo um novo começo. E esse novo começo só será possível se o sistema parar de tratá-lo como um mero devedor individual e passar a reconhecê-lo como alguém em estado de crise sistêmica.

É aqui que entra o diálogo de fontes. O CDC não deve ser interpretado de forma isolada, como se fosse uma ilha normativa. Ao contrário, deve ser lido em articulação com os princípios da recuperação judicial, com os valores constitucionais da dignidade humana, da solidariedade, da função social da propriedade e da defesa do consumidor como agente econômico vulnerável. A suspensão das execuções, nesse quadro, é a ponte entre o caos e a reconstrução. Sem ela, a lei do superendividamento perde densidade normativa e se torna uma promessa frustrada.

E mais: essa suspensão deve ser imediata. Não se pode exigir, como condição para paralisar as execuções, a aprovação prévia de um plano de pagamento. Esse requisito, se exigido, anula a própria lógica da repactuação. O plano só pode ser formulado com tranquilidade se o ambiente jurídico estiver estabilizado. A suspensão precisa ser o ponto de partida, não o ponto de chegada.

Por fim, vale uma provocação: se o Estado brasileiro é capaz de reconhecer que uma empresa falida merece uma segunda chance, por que não reconhece o mesmo direito a um trabalhador endividado, a uma mãe solteira sufocada por crédito rotativo, a um aposentado assediado por consignados? A recuperação não é um privilégio do capital. É um direito da dignidade.

A resposta do ordenamento jurídico a essa nova realidade não pode ser tímida. A suspensão das execuções deve ser aplicada de forma análoga, imediata e incondicional. Porque o tempo é o ativo mais precioso para quem está em crise. E sem tempo, não há reconstrução possível.

Leonardo Garcia

VIP Leonardo Garcia

Procurador do Estado do Espírito Santo; Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP; Membro do GT de acompanhamento da Lei do Superendividamento no CNJ, Autor dos livros e parecerista

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