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Como a alienação fiduciária destrói sonhos empresariais

Análise crítica e técnica dos efeitos da alienação fiduciária sobre contratos empresariais, destacando sua rigidez legal, a inadimplência pontual e o avanço dos leilões extrajudiciais.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Atualizado às 13:25

A alienação fiduciária é frequentemente apresentada como um modelo moderno e eficiente de garantia. Nesse tipo de contrato, o empresário (mutuário) continua utilizando o bem normalmente - seja um imóvel, veículo ou equipamento - mas a propriedade legal desse bem permanece com o credor (geralmente uma instituição financeira/bancária) até que toda a dívida seja quitada. Ou seja, o mutuário detém a posse direta e pode explorar economicamente o bem, mas a propriedade jurídica (domínio resolúvel) permanece com o credor fiduciário até o pagamento final. Trata-se de uma garantia em que o bem financiado "pertence" ao banco até que o contrato seja integralmente cumprido.

Mas por trás dessa aparência de equilíbrio, esconde-se um mecanismo que, para muitos empresários, é um gatilho direto para o colapso financeiro.

No cenário empresarial, em que o fluxo de caixa oscila e a previsibilidade é quase um luxo, a alienação fiduciária tem funcionado como um dispositivo automático de execução extrajudicial, sem margem para renegociação ou reestruturação real. Geralmente, quando ocorrem três parcelas em atraso, aciona-se um processo implacável: o empresário é notificado e tem 15 dias para purgar a mora - ou seja, pagar as parcelas vencidas acrescidas de multa, juros e encargos.

Nesses momentos, o não pagamento de três parcelas consecutivas não é um ato de desleixo, mas reflexo direto da realidade de quem está tentando sustentar um negócio em fase inicial, muitas vezes ainda sem geração de receita suficiente para cobrir os custos.

Ainda assim, se essa obrigação não for cumprida no prazo, ocorre a chamada consolidação da propriedade, nos termos da lei 9.514/19971. Isso significa que o bem financiado, até então em posse do devedor, passa automaticamente à titularidade plena do credor fiduciário - sem necessidade de ação judicial.

Somente após a consolidação é que o devedor é novamente intimado e, então, precisa pagar todo o saldo devedor do contrato - incluindo as parcelas vencidas e todas as vincendas - em novo prazo de 15 dias, para evitar o leilão. Caso não o faça, o bem é levado à venda pública, mesmo que o empresário já tenha quitado parte significativa do financiamento.

É assim que um atraso pontual se transforma na perda total do patrimônio financiado, levando à paralisação das operações, ao fechamento de empresas e ao desmonte de projetos que, até então, eram economicamente viáveis. A alienação fiduciária, nesses casos, não atua como uma garantia justa - mas como um atalho legal para a execução sumária e silenciosa de sonhos empresariais inteiros.

2. Consolidação da propriedade e leilão extrajudicial: O rito sumário

Como previsto na lei 9.514/1997, ao entrar em inadimplência, o empresário é primeiramente notificado para purgar a mora no prazo de 15 dias. Nesse momento, ele tem a oportunidade de regularizar a dívida pagando apenas as parcelas vencidas (atrasadas), acrescidas de multa contratual, juros de mora e correção monetária.

Caso não ocorra o pagamento dentro desse prazo, inicia-se uma etapa fundamental do procedimento: a chamada consolidação da propriedade. Isso significa que o bem financiado, que até então estava na posse direta do devedor com a propriedade resolúvel (isto é, sob condição), passa a ser de titularidade plena do credor fiduciário.

A propriedade se consolida em nome do banco, de forma automática, e sem necessidade de ação judicial. A partir desse momento, o bem deixa de ser uma garantia e passa a ser, juridicamente, um ativo do credor.

Com a consolidação concluída, o banco está legalmente autorizado a levar o bem a leilão extrajudicial, uma vez que agora é o seu legítimo proprietário. No entanto, a legislação exige um requisito formal essencial para que o leilão seja válido: o devedor (empresário) deve ser intimado novamente, com antecedência mínima de 15 dias, sobre a realização do leilão.

Essa intimação final não é uma mera formalidade - ela oferece ao empresário uma última chance para evitar que o bem vá à venda pública. No entanto, as exigências são muito mais severas nessa fase: não basta mais pagar apenas as parcelas vencidas com encargos. Para impedir a realização do leilão, o empresário deve pagar, integralmente e à vista, não só as parcelas em atraso, mas todo o saldo restante do contrato. Em outras palavras, ele terá que quitar:

1. As parcelas vencidas, com todos os encargos legais (multa, juros e correção);

2. Todas as parcelas vincendas, ou seja, aquelas que ainda iriam vencer até o fim do financiamento

Esse valor representa, na prática, a antecipação total do contrato. Mesmo que ainda restem anos de parcelas a vencer, o devedor deverá pagar à vista o saldo devedor integral, ou seja, tudo aquilo que ainda estava previsto para ser quitado até o fim do financiamento. Trata-se de uma exigência que impõe, em um único momento, o pagamento de um valor que originalmente seria diluído ao longo dos meses. Se esse pagamento não for efetuado dentro do novo prazo de 15 dias, o leilão é realizado e o bem é definitivamente leiloado para terceiros, com perda total da posse e da propriedade pelo antigo mutuário.

Trata-se de um procedimento que ignora completamente o histórico de adimplência, a boa-fé contratual e a realidade financeira de quem empreende em um país com alta volatilidade econômica.

3. Exemplo prático: Inadimplência e a inaplicabilidade do adimplemento substancial na alienação fiduciária

A seguir, um caso hipotético baseado em simulação real: um empresário firma um contrato de financiamento no valor de R$ 585.600,00, com prazo de 120 meses e  SAC - sistema de amortização constante, tendo a primeira parcela no valor de R$ 8.979,20. Ele cumpre pontualmente suas obrigações por 102 meses - ou seja, 85% do contrato - até que, por dificuldades financeiras, deixa de pagar as parcelas dos meses 103, 104 e 105.

Mesmo com esse histórico de adimplemento significativo, o empresário segue exposto à perda total do bem. Isso porque, em contratos com garantia de alienação fiduciária, o princípio do adimplemento substancial não se aplica. A jurisprudência é firme: a lei não diferencia quem pagou quase tudo de quem mal começou a pagar. A inadimplência ativa o rito legal, independentemente da proporção quitada.

A seguir, colaciona-se o julgado:

1. A teoria do adimplemento substancial é inaplicável ao contrato de alienação fiduciária em garantia. (...). 3. Para evitar a consolidação da propriedade e posse do veículo alienado em mãos do credor fiduciário, exige-se do devedor inadimplente o pagamento do valor integral contratado.

Acórdão 1215335, 07035106320188070006, Relator: FERNANDO HABIBE, 4ª Turma Cível, data de julgamento: 6/11/19, publicado no DJE: 4/12/19.

Logo, mesmo havendo boa-fé contratual e adimplemento substancial, o bem pode ser perdido. Se não houver purgação da mora no prazo legal, ocorre a consolidação da propriedade em favor do banco. Com o imóvel em seu nome, e após o cumprimento das formalidades previstas na lei 9.514/1997, o credor bancário pode levar o bem a leilão extrajudicial.

Esse leilão ocorre em formato de praça pública, ou seja, é aberto a interessados que possam arrematar o bem - termo técnico que designa a aquisição do imóvel por terceiros, mediante oferta formal durante o leilão. Uma vez arrematado, o devedor perde definitivamente o imóvel, sem qualquer reversão, ainda que tenha cumprido a integralidade do contrato.

4. Crescente número de leilões: Um reflexo alarmante

Tal modelo jurídico rigoroso não é apenas uma construção teórica - ele tem efeitos concretos e mensuráveis. O aumento significativo na retomada de imóveis por bancos evidencia os impactos práticos das rígidas disposições da alienação fiduciária. De acordo com reportagem do Estadão2, até novembro de 2024, os bancos acumularam um estoque de R$ 79 bilhões em imóveis retomados, representando um aumento de 10% em relação ao mesmo período de 2023 e de 20% em comparação ao final de 2022. Esse montante equivale a um terço do valor de todos os empreendimentos lançados no Brasil no último ano.

Na CEF - Caixa Econômica Federal, principal agente de financiamento imobiliário do país, o estoque de imóveis retomados cresceu de 20,2 mil unidades em 2022 para 34,8 mil em 2023, alcançando 50,4 mil em 2024 - um aumento de 150% no período. Esse crescimento resultou em despesas de R$ 443 milhões com encargos como IPTU e dívidas condomíniais no último ano.

Esses dados revelam a magnitude do problema: milhares de devedores, incluindo empresários que buscaram crédito para investir e operar, estão perdendo seus bens por inadimplências muitas vezes pontuais, sem oportunidade real de renegociação contratual. A alienação fiduciária tem funcionado como um mecanismo de execução patrimonial automática, insensível ao histórico do devedor e à boa-fé objetiva. O crescimento acelerado desses leilões é sintoma de um modelo contratual que favorece a liquidez dos credores, mas à custa da destruição de patrimônio produtivo, empresas em atividade e, por consequência, empregos e renda.

5. Conclusão

A alienação fiduciária, como instituto jurídico, cumpre o papel de oferecer segurança ao crédito e agilidade na recuperação de garantias. No entanto, como demonstrado ao longo deste artigo, sua aplicação na prática empresarial revela um grau de rigidez incompatível com a realidade econômica de quem empreende no Brasil.

A inadimplência pontual, mesmo após longo histórico de adimplemento, leva à consolidação automática da propriedade, à perda do bem e à alienação forçada do ativo, ainda que este represente a base operacional da empresa. Isso tudo ocorre sem qualquer espaço para ponderação judicial, mesmo quando o contrato já se encontra em fase final de cumprimento - o que confirma a inaplicabilidade do adimplemento substancial no regime fiduciário.

Mais grave ainda é o desequilíbrio estrutural do modelo: o próprio banco é quem cobra, consolida a propriedade e promove a venda do bem, acumulando funções que, no modelo tradicional, seriam atribuídas exclusivamente ao Poder Judiciário. Na alienação fiduciária, o credor atua com amplo poder em benefício próprio, sem passar pelo crivo do Estado-juiz, como se a legalidade que o limita fosse meramente formal. É por isso que a atuação técnica de um profissional especializado se mostra essencial: para garantir a análise jurídica adequada, proteger o patrimônio do devedor e restabelecer algum grau de controle e equilíbrio no processo.

A simulação prática apresentada, aliada aos dados de mercado e à jurisprudência atual, revela um cenário preocupante: milhares de imóveis sendo levados a leilão por inadimplementos episódicos, sem reequilíbrio possível. A consequência direta é a descapitalização de empresas viáveis, a fragilização da atividade produtiva e a conversão de mecanismos de crédito em instrumentos de desmonte patrimonial.

Com base em análise normativa, dados práticos e fundamentos econômicos, este artigo buscou oferecer uma leitura clara e consistente sobre um modelo contratual que, embora juridicamente consolidado, gera efeitos desproporcionais na prática empresarial. O objetivo foi contribuir tecnicamente para um debate que é urgente, necessário e estrutural - sobretudo porque seus impactos vão muito além da teoria, alcançando diretamente a viabilidade de empresas, empregos e investimentos no país.

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1 BRASIL. Lei n.º 9.514, de 20 de novembro de 1997. Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 nov. 1997. Disponível em:

2 NOGUEIRA, Célia. Bancos têm maior estoque de imóveis retomados em quatro anos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 mar. 2024. Economia. Disponível em:

Gabrielle Andretta Anzoategui

VIP Gabrielle Andretta Anzoategui

Advogada Anzoategui Advogados & Associados. Atua na área de Direito Bancário e Comercial

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